Dois anos depois do atentado contra o Charlie Hebdo, o semanário satírico francês continua a “combater os fundamentalismos religiosos”, disse à Lusa uma das desenhadoras e sobreviventes do ataque.
“No Charlie [Hebdo] vamos continuar a lutar pelos valores em que acreditamos, nomeadamente a laicidade, e a combater os fundamentalismos religiosos, sejam eles quais forem”, afirmou Corinne Rey, conhecida no meio artístico como “Coco”.
A capa da edição n.º 1276 desta semana é ilustrada pelo desenho de um rosto que olha pelo cano de uma espingarda empunhada por um homem de barba preta e túnica branca, sob o título 2017, finalmente o fim do túnel, uma frase “irónica”, concordou a desenhadora.
“Ao fim de dois anos, apercebemo-nos que as coisas não mudaram muito. Em França, fala-se de fundamentalismo laico. Colocam-se as vítimas como as culpadas pelo que lhes aconteceu e há muita gente que pensa que o Charlie é responsável pelo que lhe aconteceu. É completamente aberrante ouvir isto hoje dois anos depois. Para mim os únicos culpados são os [irmãos] Kouachi, o Islão radical ou o Islão simplesmente”, disse.
A redação do Charlie Hebdo está atualmente num edifício protegido por altas medidas de segurança e o novo endereço é secreto, mas a desenhadora sublinhou que os colaboradores “não vivem numa prisão nem estão como reclusos” e que “é normal ter um grande dispositivo de segurança depois do que aconteceu a 7 de janeiro [de 2015]”.
“Hoje vivemos com este dispositivo de segurança que entrou na nossa rotina, habituámo-nos. A nossa liberdade está na nossa cabeça, nas nossas ideias, no que metemos no jornal. Quando chegamos à redação, é verdade que passamos por um dispositivo que talvez seja impressionante, mas depois estamos bem, é luminoso, trabalhamos todos juntos e temos uma vida de redação normal”, indicou a desenhadora.
Quanto às ameaças de morte, “Coco” adiantou “que surgem quando alguns desenhos não são compreendidos e fazem polémica”, ainda que considere que “é um fenómeno que não afeta só o Charlie”.
“Hoje, as redes sociais são de uma violência tal que o Charlie não é o único a sofrer ameaças. As redes sociais são um viveiro de gente violenta. É verdade que quando um desenho gera polémica ou não é compreendido, as pessoas têm tendência a ameaçar logo, mesmo com ameaças de morte”, disse, acrescentando que depois do atentado a equipa apresenta “sistematicamente queixa das ameaças de morte”.
A 7 de janeiro de 2015, Chérif e Saïd Kouachi, armados com kalashnikovs, irromperam no edifício do jornal à hora da reunião da redação e mataram 12 pessoas, nomeadamente os caricaturistas históricos Cabu, Charb, Honoré, Tignous e Wolinski que são regularmente evocados numa redação “reconstruída e sólida”.
“É verdade que este não é um período fácil porque as comemorações trazem tudo à tona, mas é normal. Trabalhar ajuda, estarmos juntos também. É humano, depois do que vivemos, estarmos, por vezes, mais em baixo. Foi um drama, sobrevivemos, mas é uma coisa que está sempre presente e que não podemos esquecer”, desabafou “Coco”.
Entre assinaturas e vendas nos quiosques, o jornal vende atualmente mais de cem mil exemplares por semana contra os cerca de 30 mil que escoava antes do atentado e lançou uma edição na Alemanha, “uma fase teste” que poderá abrir novos caminhos porque “o importante é poder continuar a falar livremente em França e lá fora”.
“Estou muito contente que possamos estender a aventura Charlie à Alemanha porque é um belo desafio, tivemos muito apoio na Alemanha e é a primeira vez que um jornal impresso se exporta. Vamos ver se funciona, gostaríamos de ter um ou dois desenhadores alemães. O objetivo é poder encontrar outros colaboradores e outras pessoas que partilham as nossas ideias. Isso é que é interessante e porque não em Portugal? Veremos”, concluiu a desenhadora.