Já não há debates parlamentares aborrecidos. A vida política portuguesa é uma casa animada. A tarde desta terça-feira só não foi surpreendente, porque já se conheciam as posições de todos os intervenientes no debate quinzenal. A isto chama-se geometria política variável. Os partidos que apoiam António Costa — Bloco de Esquerda, PCP e PEV — estiveram unidos contra o Governo por causa da redução da Taxa Social Única (TSU), decidida para cumprir uma promessa que o Governo fez a esses mesmo partidos para aumentar o salário mínimo nacional. O PSD, o maior partido da oposição, também se manifestou contra a medida cujo modelo em tempos implementou, apesar de se ter abstido em 2016 quando a mesma solução foi aplicada. Colocou-se assim ao lado da esquerda que apoia o Governo, contra o Governo.

E o CDS? Assunção Cristas insuflou o plenário com a carga dramática da tarde, acusando o primeiro-ministro de “mentir”, por à hora do debate não ter sido ainda assinado o acordo de concertação social, enquanto um estafeta andava por Lisboa a correr os parceiros sociais a recolher assinaturas.

A líder do CDS começou a sua intervenção com uma pergunta simples:

“O acordo de concertação social já está assinado por todos os parceiros e o Governo?”.

António Costa respondeu: “Sim”.

Assunção Cristas insistiu: “Houve alguma assinatura escondida entre a uma da tarde e as três? Estive com dois parceiros esta manhã e nenhum tinha assinado o acordo. Quer manter a sua resposta?” A líder do CDS tinha-se reunido com a UGT e com a CAP antes de almoço.

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Costa pareceu hesitar, mas respondeu: “Bom, combinámos que não haveria nenhuma cerimónia [pública] e que o decreto circularia e todos assinaríamos, portanto está assinado”.

Foi o momento do debate. “Acabou de mentir a esta câmara. Mentiu. Vamo-nos habituando porque mente cada vez que aqui vem. O acordo não está ainda assinado.”

A controvérsia da TSU e os papéis trocados

Quando o debate começou, os papéis habituais ainda não estavam invertidos. António Costa anunciava que o défice será de 2,3% em 2016, quando a Comissão Europeia previa 2,5%, contrariando “todas as antevisões de desgraça, contra todos os prognósticos de planos B, C ou Z” da direita. E acusou o PSD e o CDS: “Erraram na aritmética e erraram na política”, argumentando que “afinal havia mesmo alternativa. E uma alternativa com melhores resultados”.

Pedro Passos Coelho desta vez interveio no debate para contrariar António Costa, ao dizer que teria sido impossível alcançar estes resultados sem um plano B. “Não queira atirar poeira para a cara das pessoas ao dizer que cumpriu as metas sem medidas extraordinárias porque não é verdade”, afirmou o líder do PSD. “O senhor primeiro-ministro não fez nenhum milagre, até descobriu que para atingir as suas metas era preciso descobrir medidas extraordinárias”. E deu exemplos, como os cortes no investimento, os “cortes cegos nas despesas do estado” (as cativações) ou o programa de perdão fiscal, que fez arrecadar receita extra para o Estado. António Costa respondeu-lhe com uma tirada direta para Maria Luís Albuquerque: “A anterior ministra das Finanças, com uma impagável arrogância intelectual, mostrou que era aritmeticamente impossível ficar abaixo dos 2,6%, dos 2,5% e agora temos um défice de 2,3%”.

Quanto ao tema da tarde, o líder do PSD levantou a pergunta que ainda não tem resposta:

O senhor primeiro-ministro fez um acordo com a esquerda para aumentar o salário mínimo nacional, depois foi à concertação social expor esse acordo e assumiu um compromisso com os parceiros sociais, sabendo atempadamente que os seus parceiros da esquerda não concordavam com a contrapartida. Porque é que entendeu que devia fazer esse compromisso com os parceiros sociais sabendo que não tinha apoio no Parlamento para fazer esse compromisso?”

Debaixo de fogo ao longo de toda a semana — Marques Mendes até disse que não se abster na TSU era o maior erro político de Passos Coelho — o líder do PSD justificou o voto contra o desconto na taxa dos patrões. O ex-primeiro-ministro social-democrata acusou o Governo socialista de contar com o PSD para resolver um “problema quando os seus parceiros não estão disponíveis”. Explicou o sentido de voto da sua bancada porque reduzir a TSU vai “institucionalizar um desconto” criado para aliviar os patrões de “um esforço combinado com o PCP e o BE”. De acordo com o presidente do PSD, esta redução da contribuição para a Segurança Social, acaba por significar uma “política de rendimentos de incentivo ao salário mínimo nacional”. Este seria também um dos principais argumentos do PCP. Uma rara concordância.

Jerónimo de Sousa havia de deslocar a discussão para o tema central. “Quem tem calos não se mete em apertos: o PSD que se desengome da situação que criou. Mas o problema não está no senhor deputado Passos Coelho nem no PSD, nem na trapalhada em que se meteu, está no Governo que decidiu a redução da TSU em prejuízo do orçamento da Segurança Social e do OE”.

Quando o secretário-geral comunista começou a falar, foi distribuído o pedido de apreciação parlamentar do PCP ao diploma que foi publicado esta terça-feira, e que reduz a TSU paga pelos patrões como compensação pelo aumento do salário mínimo. O Bloco de Esquerda havia de fazer o mesmo no fim do debate. “Porque é que é tão mãos largas para o capital e tão seco para os trabalhadores?”, questionou Jerónimo. Costa respondeu com mais benefícios para os trabalhadores, dizendo que até ao final do mês “o ministro do Trabalho apresentará um diploma relativo à proteção das carreiras mais longas”, uma exigência antiga do PCP.

De acordo com o PCP (e com o PSD), mas contra o Governo, o Bloco de Esquerda procurava discordar do Governo e ao mesmo tempo distanciar-se da estranha convergência com os sociais-democratas. “O BE votará contra a redução da TSU porque tem princípios e o PSD votará contra porque não tem nenhum princípio”, disse Catarina Martins, líder do Bloco de esquerda. Acusou Passos Coelho de “cambalhota”, e alegou que o PSD foi sempre contra a redução da TSU e contra o aumento do salário mínimo.

A rematar o debate, Carlos César, líder parlamentar do PS, havia de voltar a concentrar-se nos ataques ao PSD, acusando o maior partido parlamentar de “crise de credibilidade”. Estiveram todos contra todos, os que se apoiam e os que se combatem (mesmo concordando no ocaso de hoje), mas ficou uma pergunta por responder: porque assinou o Governo um acordo que sabia que morria no Parlamento? Os próximos dias devem trazer essa resposta.