O fisco não processou cerca de 80% do montante total transferido para offshores entre 2012 e 2014. Comparando o valor total das transferências efetuadas neste período para paraísos fiscais (territórios com regime de tributação favorável), conclui-se que só pouco mais de 20% terão sido na altura objeto de processamento e controlo pelo fisco. É nesses três anos – que correspondem à governação do PSD/CDS e à tutela de Paulo Núncio sobre a máquina fiscal -, que se concentra o grosso dos quase dez mil milhões de euros de transferências para paraísos fiscais que ficaram de fora das estatísticas e do tratamento da Autoridade Tributária (AT).
A falha no tratamento de 20 declarações de instituições financeiras foi detetada pelo Ministério das Finanças em 2016, tendo dado origem a uma investigação da Inspeção-Geral das Finanças, tal como o Público noticiou esta semana. Essas declarações reportaram à administração fiscal a saída de 9.800 milhões de euros para offshores e regime de tributação privilegiada entre 2011 e 2014.
Em resposta ao Observador, fonte oficial do Ministério das Finanças detalha a distribuição das declarações e dos valores em causa por ano, o que permite concluir que quase todo o montante que ficou fora das estatísticas iniciais se refere aos anos de 2012 (3.381 milhões de euros), 2013 (2.976 milhões de euros) e 2014 (3.363 milhões de euros). Em 2011, o valor por reportar foi residual: apenas 13 milhões de euros. E, em 2015, não foi detetada qualquer falha.
Cruzamento de dados: o que falta?
O Observador cruzou estes valores com os montantes totais transferidos nesses anos para offshores, já de acordo com as estatísticas corrigidas, divulgadas pela AT no final do ano passado. E concluiu que os montantes que ficaram fora do radar representam percentagens muito relevantes dos valores totais declarados pelas instituições financeiras nestes três anos — percentagens que variam entre 71,5% em 2013 e mais de 88% em 2014.
Considerando todas as transferências para territórios com fiscalidade favorável nestes três anos, verifica-se que o valor por tratar, no montante de 9,7 mil milhões de euros, representa 78,7% do total transferido, que ascendeu a 12,3 mil milhões de euros. Segundo o Ministério das Finanças, as operações reportadas nas 20 declarações em causa só foram “processadas informaticamente e objeto de controlo apenas recentemente”.
O antigo diretor-geral de Impostos, que esteve no cargo entre 2007 e 2014, contraria este entendimento. Em declarações ao jornal Eco, Azevedo Pereira assegurou que o fisco efetuou “em devido tempo, quer o tratamento e o acompanhamento inspetivo que lhe competia, quer a preparação dos elementos necessários à efetiva divulgação pública dos elementos em causa“. Azevedo Pereira será uma das personalidades chamadas ao Parlamento para explicar esta polémica. O PSD quer ouvir todos os antigos diretores gerais de impostos. Estão já agendadas para a próxima quarta-feira as audições do ex-secretário de Estado, Paulo Núncio, e do atual, Fernando Rocha Andrade.
Os dados remetidos pelo Ministério das Finanças indicam, ainda, que houve uma grande concentração de montantes por declaração que ficou fora do registo inicial. Em 2012, os 3.381 milhões de euros em falta correspondem apenas a duas declarações de bancos. No ano seguinte, três declarações por tratar abrangiam transferências de 2.976 milhões de euros. O ano de 2014 foi o que teve mais declarações por tratar: 12 com operações de 3.363 milhões de euros.
O Ministério das Finanças refere que, entre 2011 e 2014, ficaram por processar 20 declarações de instituições financeiras com fluxos financeiros para offshores, mas este número não permite saber quantas operações ficaram de fora do controlo, nem quantos contribuintes terão escapado ao cruzamento de dados pelo fisco. Cada declaração do Modelo 38 permite a um banco reportar várias operações e transferências ordenadas por diversos contribuintes. Não foi ainda possível saber, junto das Finanças, quantos contribuintes foram excluídos deste processamento.
No entanto, os contribuintes estão identificados na declaração e a Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, liderada por Fernando Rocha Andrade, já deu ordens à administração fiscal para as processar e controlar informaticamente. A ausência inicial de registo sobre estes movimentos pode não significar, necessariamente, que tenha havido fuga aos impostos, mas indicia que o fisco não exerceu um dos mecanismos de controlo disponíveis para combater a evasão fiscal.
Segundo esclarecimento dado pelo Ministério das Finanças, as declarações processadas são sujeitas a um controlo automático, cruzando aquela informação com os dados constantes das bases de dados da Autoridade Tributária. No caso de haver discrepâncias, são distribuídas para análise da Inspeção Tributária (dando origem a inspeções tributárias e/ou inquéritos crime). Este é um controlo que passa, sobretudo, pela unidade de grandes contribuintes.
Os dados constantes das declarações processadas ficam disponíveis para serem trabalhados pela Inspeção Tributária, designadamente para o cruzamento de dados com os resultados apurados noutras inspeções.