A comissão de inquérito à Caixa Geral de Depósitos continua a ser palco de episódios dignos de uma novela. O episódio desta tarde de quinta-feira teve a ver com um aparente volte-face dos partidos da esquerda que, há 15 dias, travaram o acesso aos emails enviados por António Domingues para o Ministério das Finanças. Esta tarde, num recuo inesperado, os partidos da esquerda acederam a um requerimento do CDS permitindo que esses mesmos documentos e emails (que já estão na posse do Parlamento há cerca de um mês) pudessem de facto ser disponibilizados aos deputados. Afinal, a esquerda permite o acesso dos deputados aos documentos, mas só para os lerem. Não é suposto fazerem parte do relatório final ou conclusões.

O equívoco gerou tal confusão ao fim da tarde desta quinta-feira, que Hugo Soares, do PSD, acusou o PS de se comportar “como uma criança numa loja de brinquedos”, sublinhando o “ridículo” da situação. O CDS classificou a situação como “absurda”, dizendo que se os deputados consultarem os emails só por consultar, sem os poderem usar nos trabalhos parlamentares, então isso é “devassa”. A história fez subir ainda mais a tensão no Parlamento entre esquerda e direita.

Esquerda recua e permite consulta de emails de Domingues

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Tudo começou quando o PCP, em resposta a um requerimento do CDS onde voltava a solicitar a Domingues o envio da troca de correspondência, sugeriu que se contornasse a situação distribuindo os documentos e emails aos deputados.

“Não faz sentido voltar a requerer documentação que já foi entregue ao Parlamento, por isso sugiro a distribuição dessa documentação pelos deputados”, disse o deputado comunista Paulo Sá durante a reunião, sublinhando que a documentação “não deve ser tornada pública, mas deve ser acessível a todos os membros desta comissão para que possa ser consultada”. O BE acompanhou a decisão, e o PS não se opôs.

Perante isto, o PSD e o CDS congratularam-se pela “cambalhota” e pela “evolução de pensamento” dos partidos da esquerda que, finalmente, iam concretizar a “missão da comissão”. Hugo Soares, coordenador do PSD, chegou mesmo a dizer, durante a reunião, que agora sim “os documentos devem ser consultados pelos deputados, e pelo relator, e as suas informações devem constar do relatório”.

O que se depreende daqui? Que, com este novo gesto, a esquerda permitira, afinal, ao contrário do que fez até aqui, que a troca de correspondência entre Domingues e as Finanças pudesse ser admitida na comissão de inquérito, usada pelos deputados e incluída no relatório final, ainda que os emails não pudessem ser divulgados ao público. O mesmo já aconteceu noutras comissões de inquérito, em que a parte dita “sigilosa” constava do acervo da comissão e do relatório final — mas era omitida do relatório público. Foi este o entendimento dos partidos da direita e foi isso que a comunicação social, presente na sala, relatou. Mas não foi esse, viria a saber-se depois, o entendimento dos partidos da esquerda.

Durante a reunião, o deputado bloquista Moisés Ferreira limitou-se a dizer que, uma vez que os documentos em causa já tinham sido entregues por Domingues ao Parlamento, a questão era apenas “discutir a forma de acesso”. Do lado do PS, João Paulo Correia fez uma declaração curta a concordar com o entendimento dos parceiros da esquerda sobre o alargamento a todos os deputados, justificando ser “inútil endereçar o mesmo pedido de acesso informação” a António Domingues. Mas sobre a questão da admissibilidade ou não dos documentos nem uma palavra. Nem quando as notícias que davam conta do volte-face da esquerda começaram a sair nos jornais.

Documentos só podem ser consultados por “curiosidade”? Então é “devassa”

Se do PCP e do BE não se ouviu mais nenhuma palavra, o PS esperou que o PSD saísse da reunião — e falasse aos jornalistas — para, só no final, desfazer o “equívoco”: dizer que o entendimento de que os documentos não eram admitidos no objeto da comissão de inquérito se mantinha. “A documentação continua fora do objeto da comissão de inquérito, continuamos a rejeitar a admissibilidade dos documentos”, disse João Paulo Correia aos jornalistas, já depois de a direita se ter congratulado com o recuo. Mais: questionado sobre se, então, os deputados iriam consultar os emails apenas por “curiosidade”, sem os poderem usar depois, o deputado socialista respondeu “exatamente”. “Os 17 deputados têm igual direito de acesso, quer a documentação seja aceite ou não”, reforçou.

Instalada a confusão, também BE e PCP disseram que mantinham essa versão — apenas tinham permitido a consulta dos emails por parte dos deputados. Para o PCP, a “questão da admissibilidade dos documentos não foi posta em discussão”, tendo-se discutido apenas a proposta do PCP de permitir o acesso dos documentos a todos os deputados da comissão à boleia do requerimento do PCP.

Antes disso, o deputado do PSD Hugo Soares já se tinha congratulado perante os jornalistas pelos partidos da esquerda terem “decidido voltar atrás e dizer que os documentos que ontem não cabiam no objeto da comissão de inquérito hoje já cabem e já podem ser distribuídos aos deputados”. Afinal, aquilo que parecia ser não era. Confrontado com o facto de a esquerda ter um entendimento diferente, ao Observador o deputado social-democrata reforça:

Disse lá dentro que o deputado relator devia ter acesso aos documentos para que constassem do relatório e ninguém contestou isso. O PS comporta-se como uma criança numa loja de brinquedos”, disse ainda Hugo Soares, sublinhando o “ridículo” da situação.

Para o CDS, a jogada da esquerda é “um absurdo completo“. Fonte centrista nota que nem PS, nem BE, nem PCP evocaram a questão da admissibilidade na reunião, “nem sequer na reunião de coordenadores”, que decorreu à porta fechada. “A reunião serviu apenas para delimitar o acesso aos documentos por parte dos deputados”, ressalvando-se que o conteúdo dos documentos não será público. Mas para os democratas-cristãos resultava claro que, ao permitir o acesso, a esquerda permitia a admissibilidade dos documentos. “Não faz sentido nenhum os deputados poderem consultar e não servir para nada”, diz fonte do CDS, acrescentando que “ou a consulta se faz no exercício do mandato, e é para usar, ou então é apenas devassa”.

Entendimento semelhante teve o estreante presidente da comissão, o deputado social-democrata Emídio Guerreiro. Ao Observador, lembrou que não conhecia o conteúdo dos documentos, que, de resto, “estão admitidos na comissão”. Mas sublinhou que “a admissibilidade não foi discutida” em concreto na reunião desta quinta-feira. Certo é que é a maioria que decide. E a maioria entende que, mesmo podendo consultar a troca de correspondência, os deputados não podem usar o seu conteúdo no decurso dos trabalhos parlamentares.