O Observador republica este domingo este artigo, publicado originalmente a 13 de maio de 2017, sobre o bispo de Leiria-Fátima que foi nomeado cardeal pelo Papa
Em Fátima, é ele o “dono da casa” que recebeu o Papa Francisco a 13 de maio de 2017. D. António Marto, bispo da diocese de Leiria-Fátima, esteve ao lado do pontífice durante toda a peregrinação, incluindo durante os percursos no papamóvel. Foi ele também quem fez o pedido formal de canonização dos pastorinhos Francisco e Jacinta no início da missa de dia 13 de maio, depois de presidir à procissão de entrada da celebração, enquanto o Papa visitava os túmulos dos pastorinhos. No início do mês de maio de 2017, deu uma longa e rara entrevista de vida ao Observador, na qual revelou detalhes surpreendentes sobre a sua vida antes de chegar à diocese.
Era cético de Fátima e da religiosidade popular. D. António Marto considerava-se um “racionalista” quando terminou o seu doutoramento em teologia, em Roma, e quando voltou para Portugal recusava muitas das expressões populares da fé católica, como peregrinações ou procissões. Em entrevista ao Observador, o bispo de Fátima revelou que até recusava rezar o terço com a sua família. Relativamente a Fátima, de que hoje é bispo, nem sequer pensava muito no assunto. “Eu conheci a mensagem como criança e ficou essa imagem de criança. Não via grande interesse”, contou o bispo, detalhando que o fenómeno não lhe “despertava grande interesse”.
Foi aluno do cardeal Joseph Ratzinger (que viria a ser o papa Bento XVI) num curso de preparação para o doutoramento em Roma. “Era um ótimo professor”, recordou na mesma entrevista, admitindo que se inscreveu na sua cadeira por saber falar alemão e porque “toda a gente gosta de ser aluno de um professor com fama”. Lembra o professor Ratzinger como um homem “muito acessível, muito delicado, muito atencioso”, recordando um episódio em que, depois de lhe pedir ajuda para a sua tese, o cardeal lhe apareceu no quarto e se pôs a tocar piano, antes de lhe dar as explicações. Mais tarde, já como Papa em visita ao Santuário de Fátima, D. António ouviu da boca de Ratzinger as seguintes palavras: “Não há nada como Fátima em toda a Igreja Católica no mundo”.
Abandonou o racionalismo e aceitou a piedade popular depois de o seu pai lhe ter pedido para se confessar. “Ó meu filho, eu queria-me confessar, tenho um padre em casa, porque é que hei de andar a procurar outro?”, disse-lhe o pai. Inicialmente, o então padre António Marto começou por recusar. Mas tanta foi a insistência que acabou por aceitar ouvir a confissão do seu pai e foi nesse momento que viu “a delicadeza de consciência daquele homem”, lembra. “Não tinha essa delicadeza nem essa autenticidade. Era mais racionalista, mas depois na prática da vida não tinha. Isso foi como cair as escamas dos olhos”, admite. E foi a partir daquele momento que passou a dar importância e a respeitar a religiosidade popular.
Trabalhou durante um ano numa fábrica de metalurgia para saber como era a vida dos operários. Tudo porque António Marto terminou a licenciatura com 22 anos e a idade mínima para ser ordenado padre era de 24. Por isso, ele e dois colegas decidiram aderir à missão dos padres operários, um movimento iniciado em França que tinha como objetivo a recuperação dos fiéis entre a classe operária, entretanto perdidos para o marxismo. Enquanto esperava pela ordenação, foi fazer peças para motores de automóveis e aviões, o que lhe valeu uma lesão permanente num dedo. A experiência na fábrica, recorda hoje, ajudou-o “a perceber os problemas dos operários, do mundo do trabalho, do mundo sindical”.
Converteu-se a Fátima depois de ter sido convidado para dar uma conferência no santuário. Apesar de já ter abandonado o racionalismo militante, ainda não dava grande importância às aparições de Nossa Senhora em Fátima, mas decidiu “aceitar o desafio” e preparar uma conferência sobre a Eucaristia na mensagem de Fátima. Para se preparar, leu as Memórias da Irmã Lúcia, livro em que a vidente relata as aparições e a sua vida com os primos, Francisco e Jacinta Marto. “Fiquei de facto impressionado. Impressionado pela seriedade do que tratava a mensagem, que era a grande causa da paz e da humanidade ameaçada na sua sobrevivência”, recordou ao Observador. “E isso convenceu-me. Pensei que estávamos ali diante de algo muito sério, muito mais sério do que eu imaginava”, acrescentou.
D. António Marto: “Representava melhor o diabo do que o anjo, ironia do destino”
Andou de papamóvel com o papa Bento XVI, durante a visita do pontífice a Portugal em 2010. “É um espetáculo, é um espetáculo! Ir junto do Papa e de vez em quando dizer ao Santo Padre, porque ele às vezes olhava só para um lado para saudar, e eu dizia-lhe “ó Santo Padre, neste lado também está gente'”, lembrou ao Observador. Agora, tornou a ser companheiro de viagem do papa Francisco no seu percurso de papamóvel em Fátima, uma vez que é o anfitrião da visita.
Foi ele quem convenceu o papa Francisco a vir a Portugal, tendo recorrido a algumas estratégias. Primeiro fez o convite formal, logo em 2013, quando Jorge Bergoglio foi eleito Papa. Contudo, para ter uma resposta mais formal, decidiu pedir uma audiência ao Papa em 2015. Na reunião privada, renovou o convite, e ouviu o Papa dizer-lhe: “Quero ir a Fátima. Só com uma condição: que eu tenha saúde e vida”. Para garantir uma certeza maior, insistiu: “Santo Padre, posso dizer isso à comunicação social lá fora?” E o papa Francisco respondeu: “Podes, com esta condição”. “A partir daí, eu soube que ele ia. Porque dando uma autorização de dizer à comunicação social, ele mesmo se comprometia”, explica hoje o bispo. Mas a estratégia não ficou por ali, porque o Papa estava determinado a vir apenas um dia — chegava na manhã de dia 13 e depois de almoço ia embora. Numa última tentativa de convencer o Papa a estar dois dias em Fátima e assistir à procissão das velas, D. António Marto e a equipa de gestão do santuário decidiram convidar, para as cerimónias do 12 e 13 de outubro, o secretário de Estado do Vaticano, o cardeal Pietro Parolin. O objetivo era claro: que Parolin ficasse deslumbrado com a cerimónia das velas, falasse dela e convencesse Francisco a chegar a Fátima no dia 12. Dito e feito.