Acalmia. Apesar de tudo, das mortes, do sobressalto, do temor, era acalmia que se sentia. Ao final da tarde, e com quase todos os acessos (tanto para partir como para chegar) a Pedrógão Grande cortados – o fogo lavrava em localidades vizinhas e cercava a cidade, deixando sobre ela uma cortina de fumo que tornava o ar quase irrespirável –, os muitos voluntários (particulares, empresas ou associações) que tentavam chegar com os donativos para bombeiros e militares tardavam.

São centenas os voluntários que fazem a separação dos bens alimentares no quartel. Do quartel estes seguem para os bombeiros na frente de fogo (Créditos: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

Por fim apareceram. Já era noite – o clarão do fogo, um clarão que o vento afastava para cada vez mais longe, iluminava o céu de escarlate como se de dia fosse –, em frente ao quartel dos Bombeiros Voluntários de Pedrógão Grande. Estacionados na estrada, sobre os passeios, em toda a parte, acumulavam-se automóveis, estendendo-se a fila até à rotunda a poucos metros de distância, chegando até a contorná-la e condicionando o trânsito. À vez, entravam uns, saíam os outros, descarregando prontamente tudo o que traziam. E traziam de tudo, absolutamente tudo: bebidas, comida pré-feita, alimentos frescos que são depois congelados nas arcas improvisadas do quartel, fruta, bolachas, arroz, roupa, cobertores, sacos-cama, produtos de higiene, peluches.

O que é bem alimentar é depositado no lugar (agora vago) dos camiões que combatem o fogo há várias horas. São distribuídos a quem está no terreno ou, quando rendido no quartel, procura por fim uma refeição. Os restantes bens são acomodados em sacos no salão nobre e, depois, distribuídos a quem ficou sem nada ou quase nada.

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O escuteiro Francisco Santos foi “polícia sinaleiro” por uma noite: “O espaço não é muito e a ajuda não tem parado esta noite. É preciso fazer uma triagem…” (Créditos: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

À entrada, um escuteiro entre dezenas que por estes dias passam noite e dia no quartel. Francisco Santos coordena um grupo de sete, vindos de Pombal. Carro a carro, respeitam a sua ordem de paragem, estacionando onde Francisco aponta. “O que é que estou a fazer? A triagem. É preciso fazer uma triagem, porque há pessoal que vem entregar coisas, há pessoal que só vem comer qualquer coisa, o espaço não é muito e a ajuda não tem parado esta noite. Em princípio vai chegar esta noite uma cozinha de campanha da Marinha e é preciso organizar o espaço.”

Não é a primeira vez que Francisco, como chefe dos escuteiros de Pombal, é convocado para ações desta natureza. Mas nunca Francisco viu uma ação como esta. E explica: “Houve um pedido a nível nacional de várias entidades para ajudar. E a ajuda tanto chega de particulares como de empresas. Habitualmente, e como somos da Proteção Civil – os escuteiros estão encarregados da parte logística, na retaguarda –, estamos habituados a apoiar os bombeiros durante os incêndios. Mas vou ser honesto: nunca vi uma mobilização como esta. A ajuda não tem parado de chegar e não temos mãos a medir, seja aqui [no exterior do quartel] ou lá dentro a distribuir refeições.”

— Não quer um bolinho? Coma! A sério: coma… — atira Elisabete, escuteira, quarenta-e-muitos anos, para um militar que timidamente a observa a separar comida sobre uma mesa de plástico.
— [O militar sorri, mais envergonhadamente do que antes. É recruta. Os oficiais riem-se e este não responde.]
— Faça assim: leve. Se não gostar não coma. — conclui, entregando-lhe dois salames embrulhados num guardanapo, tão prontamente que o militar não tem como recusar a oferta.

Um “vizinho” solidário e de ouvido sempre na rádio (porque a tragédia bate à porta)

O trânsito adensa-se no centro de Pedrógão. Do interior de uma carrinha sai, em passo acelerado, quase uma dezena de crianças. O motorista aguarda-as. A noite toda, até que mais nenhuma refeição fique por distribuir.

O presidente da Junta de Freguesia da Sertã foi a Pedrógão ajudar. Mas a cabeça (e, sobretudo, os ouvidos) estavam em “casa” (Créditos: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

Mas não é um “motorista” apenas, é o presidente da Junta de Freguesia da Sertã. Tem o rádio sintonizado nas notícias. José Simões teme que a tragédia chegue aos seus, pois o fogo ronda a Sertã àquela hora. “Estou aqui, daqui a nada até vou ajudar os escuteiros com as refeições — vim cá trazê-los porque eles me vieram pedir –, mas estou preocupado com o fogo que está em Cernache do Bonjardim — e mais um bocadinho chega à Sertã. Esta calamidade afeta-nos a todos.”

A pergunta impõe-se, sendo José Jardim um responsável político: um incêndio desta dimensão (e com o desfecho trágico deste) era evitável com medidas de prevenção? “Na Sertã, todos os anos é feita a limpeza dos caminhos e das bermas das estradas. Para que não haja propagação dos fogos e, caso haja, os bombeiros possam lá chegar. Mas este foi um caso muito particular, não havia muito a fazer. Foi uma trovoada seca, depois um vendaval, e resultou no que se vê; não há culpados.” Agora, explica o presidente da junta, é tempo de agir. E ter fé. “Deus nos ajude! Porque os bombeiros — que são uns autênticos heróis — bem precisam. Isto está a ser tudo arrasado. Na Sertã, já disponibilizei meios para, porta a porta, alertarem a população caso o fogo se aproxime. Deus nos ajude…”

— Olhe: tire-me aqui uma fotografia com o cachecol. Vocês são d’onde? Observador? Certo, certo.

Apresenta-se como “presidente da assembleia geral da Casa do Futebol Clube do Porto de Cantanhede”. Alípio Barbosa traz consigo milhares de garrafas de água, que descarrega às paletas para a garagem do quartel. “É aquilo de que os bombeiros mais precisam agora: água. Comida há aí muita. A minha casa foi mandatada pelo clube [FC Porto] para ajudar. A Unicer foi solidária connosco e deu-nos oitocentos e tal litros de água.”

Para o presidente da assembleia geral da Casa do Futebol Clube do Porto da Cantanhede o tempo não é de discutir e-mails nem arbitragem: “Nestas alturas não há clubes” (Créditos: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

Os dias têm sido conturbados no futebol em Portugal. Alípio deixa o “diz que disse” de parte nesta hora. “O que tenho a dizer-lhe é que isto é flagelo que deveria ser tido em conta por parte da classe política, a classe política devia trabalhar no sentido de fazer uma prevenção mais eficaz. Todos os anos vivermos esta tragédia — é preocupante. Mas nestas alturas não há clubes nem há qualquer tipo de partidarismo; o que há é uma resposta que precisamos de dar. Todos: Porto, Benfica, Sporting, todos.”

Ao final da noite, o clarão escarlate foi-se do céu, o ar era menos enfumarado e mais respirável, o fogo afastava-se do centro de Pedrógão. O apoio continuava a chegar sem dar pelas horas. Noite dentro. A ministra da Administração Interna, Constança Urbano Rodrigues, reagiria, apelando à acalmia da solidariedade por agora. “Existe uma enorme vaga de solidariedade que é de louvar, mas queria fazer um apelo: o facto de as pessoas estarem a enviar muitos mantimentos, alimentação, está neste momento a causar-nos algumas dificuldades de logística, porque ficamos com excesso de alimentação. As necessidades estão cobertas, seria necessário que se suspendesse esta vaga. Neste momento não são necessários mais bens alimentares para não termos dificuldades de armazenamento”.