Num país que nos últimos 41 anos foi governado apenas por um partido; que só agora se prepara para ir pela quarta vez a eleições; que é considerado pelos rankings como um regime autoritário e um dos mais corruptos do mundo; onde grande parte dos media não arriscam sair da linha traçada pelo Governo; podemos acreditar que existem eleições livres e justas?
Quando esta pergunta é feita, os especialistas contactados pelo Observador recorrem a diferentes tipos de resposta. Porém, nenhum responde com um rotundo e claro “sim”.
“Dizer que há eleições livres e justas é um exagero”, diz ao Observador Paulo Inglês, investigador angolano na Universidade de Munique. “Primeiro, porque eu acho que só podemos dizer isso depois das eleições. Segundo, porque já há elementos que indicam que o Governo deve manipular a contagem destas eleições”, refere numa entrevista por telefone. “O Governo está a fazer uma manobra assim um pouco arriscada.”
À medida que as eleições se aproximam, as notícias que apontam para situações alarmantes têm vindo a amontoar-se:
- Em finais de julho, após o Governo angolano ter recusado assinar um memorando com a União Europeia, ficou estabelecido que Bruxelas não enviaria observadores internacionais;
- A 4 de agosto, a Comissão Nacional Eleitoral (CNE) anunciou que, após fechadas as urnas, estas seriam transportadas para centros municipais e os votos contados ali — ao arrepio da lei, que prevê que a contagem seja feita em cada assembleia de voto;
- A 19 de agosto, apesar de estar prevista a publicação dos cadernos eleitorais uma quinzena antes do acto eleitoral, surgem vários casos de angolanos que ainda não sabiam onde iam votar — e outros vieram a descobrir que a sua assembleia de voto era noutra cidade e por vezes até noutra província, a mais de mil quilómetros;
- A apenas quatro dias das eleições, a oposição acusava a CNE de atrasar o credenciamento dos delegados de cada partido nas assembleias de voto e de não ter à data transferido os 250 milhões de kwanzas (quase 1,3 milhões de euros) que estavam destinados aos seus partidos que vão a votos;
- Na antevéspera das eleições, o jornalista e ativista Rafael Marques de Morais escreveu que há zonas do país onde as urnas e os boletins de voto estão guardados nas casas de sobas — líderes de uma comunidade, geralmente o ancião — com ligações ao MPLA.
Para Paulo Inglês, estas “manobras” acontecem de forma “casual”. “Se apenas uma destas coisas acontecesse num país organizado, nem sequer havia eleições, eram logo anuladas”, sublinha.
Ao telefone com o Observador, o diretor do jornal Expansão, o economista e jornalista Carlos Rosado Carvalho, recusa deslegitimizar totalmente o processo eleitoral. Ainda assim, reconhece com frontalidade: “As eleições são livres, no sentido em que cada um vota em quem quiser. Justas é que não são. Não são, nem nunca foram”.
Para Carlos Rosado Carvalho, existe em Angola uma “batota eleitoral” instituída para benefício do MPLA. “Em termos de meios, da desproporção, da utilização dos meios e bens do Estado para a campanha”, refere. De acordo com o site Club-K, João Lourenço tem usado um avião da Casa Militar do Presidente da República para se deslocar em campanha.
“Eu costumo dizer que estamos a ver uma partida de futebol em que uma das equipas está sempre a fazer faltas nas barbas do árbitro, que neste caso é a CNE, e ninguém diz nada”, explica o diretor do Expansão.
Ainda assim, Carlos Rosado Carvalho não acha provável que haja uma “fraude generalizada”. “Eu não alinho muito na questão da manipulação dos resultados e da contagem. Angola é, enfim, um país com problemas. Mas também as outras democracias mais jovens têm problemas”, refere. “Não alinho. A fraude, no sentido da contagem de votos e colocação de urnas falsas, não acredito e não vou por aí.”
Seja como for, defende que a oposição “podia e devia ser mais bem organizada” na altura de denunciar eventuais irregularidades. “Deviam unir-se para assegurar que há pelo menos um delegado de cada lista nas mesas, para estarem presentes na contagem e na elaboração da ata. Hoje em dia, com qualquer telemóvel, conseguimos fotografar uma ata”, exemplifica. E, caso haja uma situação de fraude, Carlos Rosado Carvalho passa para a oposição o ónus de apresentar os seus números. “Eu creio que facilmente a oposição pode fazer uma contagem paralela, nem que seja só em Luanda, e divulgar essa contagem paralela. Não pode é dizer que houve fraude e depois não dizer qual foi.”
Ex-preso político cria aplicação para denunciar casos de fraude eleitoral
Uma das maneiras que os cidadãos, e a oposição, têm para denunciar situações de potencial fraude eleitoral é através da plataforma Zuela — palavra kimbundu, que significa “fala” em português. Disponível online e também em aplicação para iPhone e Android, a aplicação permite a cada pessoa fazer denúncias anónimas que apontem para irregularidades antes, durante e depois do fecho das urnas. Basta fazer um post — que pode ter vídeo, fotografias, som ou apenas texto — e submetê-la.
A analisar cada uma delas estará Domingos da Cruz, jornalista e ativista que ficou conhecido por ser um dos principais membros do grupo 15+2, condenado a prisão por ler um livro que discutia métodos pacíficos para derrubar um regime ditatorial. A aplicação nasceu de uma parceria da ONG Friends of Angola, sediada em Washington D.C., com uma equipa de estudantes de informática da George Mason University. O financiamento partiu do National Endowment for Democracy, um fundo privado, em parte financiado pelo Congresso norte-americano, que apoia iniciativas democráticas fora dos EUA.
“A prudência aconselha a gravar um som, a escrever um texto e, se houver condições, fazer fotografia ou vídeo, mas de forma muito discreta”, refere Domingos da Cruz ao Observador, numa entrevista por Skype. “Qualquer pessoa pode fazer o post, que vai para a base central da Zuela. Depois, a pessoa recebe uma mensagem de retorno a dizer que o seu post chegou.”
Quando idealizou o sistema da Zuela, Domingos da Cruz quis garantir que este podia ser usado de forma anónima. “Estamos num contexto de perseguição, em que as pessoas não estão seguras”, explica. “Por questões políticas, podem ser inviabilizadas nas suas vidas, até podem ser mortas, então preferimos adequar-nos ao contexto. Os seus posts estão completamente seguros, não há maneira de a polícia saber quem fez a denúncia.”
Na altura de reportar uma situação, o utilizador pode deixar a sua identificação — mas não é obrigado a fazê-lo. Além disso, cada utilizador só pode ver as próprias denúncias, e nunca as que foram feitas por outras pessoas. “O Zuela é completamente confidencial”, sublinha. “Quem postar alguma coisa, sabe que a informação vai para a base de dados do Zuela, mas nenhuma outra pessoas saberá se o António ou o Francisco postou alguma coisa.”
O objetivo da Zuela, explica Domingos da Cruz, é no final reunir todas as denúncias e de seguida analisá-las — processo que contará com a participação da Amnistia Internacional. “Queremos fazer a confrontação dos dados e depois elaborar relatórios, que serão divulgados a seu tempo”, explica.
“A primeira fase para ultrapassar um regime é descredibilizá-lo”
Sobre as eleições desta quarta-feira, Domingos da Cruz não admite a hipótese de que estas sejam justas. “A lógica de uma aplicação desta natureza demonstra claramente que não confiamos nesse processo eleitoral e nas instituições angolanas. A possibilidade remota, diria mesmo impossível, de haver eleições livres, justas e transparentes é que nos motivaram a isso”, refere.
Domingos da Cruz garante que não vai votar — a única vez que o fez foi em 2008, tendo depois renunciado ao voto em 2012, por achar que as eleições eram uma “brincadeira”. “Se alguém ainda acredita nestas eleições, eu tenho de respeitar, mas é difícil compreender que alguém minimamente racional acredite que são eleições normais e aceitáveis. Não são”, garante.
Porém, o ativista rejeita que o trabalho desenvolvido na plataforma Zuela seja um esforço inglório. “Enquanto cidadão, ou aquele que quer ser cidadão, porque numa ditadura somos apenas pessoas, estamos a lutar para que os nossos direitos se possam concretizar”, diz. “Se temos a pretensão de fazer de Angola um país diferente, a primeira fase para ultrapassar um regime como o angolano é descredibilizá-lo. Depois da descredibilização total do regime, aí há a possibilidade de dar o golpe final.”