Nestes dias em que Portugal se inflama a discutir o sentido de livros, cadernos e cores para meninos e meninas, há um brinquedo que, desde a sua invenção, em 1947, nunca deu azo a discussões sobre a educação das crianças, ou o género a que se destina: o Lego. Provavelmente porque os tijolos de plástico encaixáveis que permitem replicar mundos reais e materializar mundos imaginários se alojam naquilo que há de mais fundamental no humano: a sua apetência para, com as mãos, construir coisas. Sabemos que tudo começou há milhares de anos, com as mãos humanas a lapidarem, cortarem, repartirem, a criarem utensílios para caçar, comer, vestir. Não sabemos e não importa saber se foram mulheres ou homens. Somos herdeiros e continuadores de tudo isto: do caminho que vai do sonho à mão e da mão ao objeto. Isto mesmo terá intuído Ole Kirk Christiansen, um carpinteiro dinamarquês, que se lembrou de fazer para as crianças uma peça primordial: um tijolo (símbolo por excelência do ato de construção) de plástico (matéria que permite replicar tudo o que existe). Juntou o tijolo com encaixes ao plástico e, sem saber, tinha o mundo nas mãos.
Mas tudo começou antes. Mais precisamente em 1932 quando este carpinteiro abre, na cidade dinamarquesa de Billund, uma carpintaria para fazer brinquedos de madeira (ainda hoje muito cultivados nos países escandinavos), de animais a carrinhos. Em 1934 inventou um concurso para criar um nome para os brinquedos. Ele mesmo participou e acabou por ganhar o concurso juntando e contraindo duas palavras. De “legt” e “godt”, cujo significado é “brincar bem”, nasceu a palavra mágica: Lego.
A trabalhar em madeira, Ole atravessou todos os anos da II Guerra Mundial. Só em 1947, quando passou a haver facilidade na obtenção de plástico, o carpinteiro começou a fabricar brinquedos com este material. Não podemos esquecer que ali perto na Alemanha tinha surgido a Bauhaus, a escola que desenvolveu o design, e a criação de objetos ubíquos estava no ar do tempo. Há quem diga que Ole se limitou a copiar a criação do inglês Hilary Harry Fischer Page. O que é certo que que foi ele que desenvolveu o sistema de encaixe que tornou o brinquedo verdadeiramente versátil. E, em 1949, lança no mercado os “Automatic Binding Bricks”, com quatro, seis e oito encaixes. Apenas um anos depois, muitos jardins de infância da Dinamarca já tinham adotado o brinquedo.
No ano de 1951 já se constroem tijolos com 20 encaixes (ou botões) e surgem os primeiros brinquedos Lego, todos ligados ao mundo do trabalho: um trator, uma ambulância e depois a casa com as respetivas portas e janelas. Em 1958 Ole experimenta fazer os tijolos em ABS, consegue um modelo mais estável e regista a patente. Estava oficialmente criado o famoso tijolo Lego. Mas já em 1954, numa viagem a Inglaterra, o carpinteiro tornado empresário é instigado a criar um brinquedo mais eclético. Surge então o Sistema Lego, já não apenas tijolos soltos mas um brinquedo específico que pudesse ser recriado por várias faixas etárias. As primeiras caixas do Sistema Lego são exportadas para a Suécia, depois para a Alemanha, França e Bélgica. No final da década a empresa já tinha 140 empregados e estava a cativar crianças de todas as idades.
Um brinquedo para crianças tranquilas
Quando, em 1968, é criada em Billund a Legoland, os tijolos já eram vendidos em 42 países, já tinham 57 cenários, 25 veículos e 218 peças diferentes. O sucesso do brinquedo era tal que só no primeiro dia a cidade de legos foi visitada por 3.000 pessoas e esse número nunca mais parou de crescer. A ideia de explorar o mundo exterior e interior das crianças estava patente na declaração dos 10 princípios da marca, declarados em 1963. Entre esses princípios estavam: ser um brinquedo de “potencial ilimitado”, “unissexo”, “destinado a brincadeiras saudáveis e tranquilas”, à “promoção da imaginação” e a “longas horas de entretenimento”. Na mesma década surge a versão Duplo, com tijolos grandes destinados a crianças até aos cinco anos.
É certo que os tijolos de plástico que prometiam criar mundos eram particularmente apreciados por crianças de temperamentos mais calmos e solitários. Foi o brinquedo preferido de muitos filhos únicos, crianças tímidas ou pouco sociáveis. Nesses anos em que não havia uma pressão para a socialização e as crianças tinham tempo para ficarem entregues a si mesmas o Lego permitia viver incomensuráveis aventuras. É isso que conta, ao Observador, Paulo Ribeiro, 43 anos, informático, que brincou com legos até tarde e é, até hoje, um colecionador de brinquedos:
Eu ficava horas a brincar sozinho (que remédio). A inventar tudo e mais alguma coisa. Com 10 anos até ganhei um prémio num concurso organizado por uma papelaria. Os meus filhos têm oito e 14 anos e ainda hoje sou eu que lhes monto os legos. Apesar de atualmente haver muita variedade, no fundo [os tijolos] dão menos liberdade. Dão para recriar muitas coisas mas sinceramente acho que não resulta tanto em brincadeiras. As caixas com ‘xis’ peças compridas e quadradas, para que cada um faça o que lhe apetecer, estão cada vez menos na moda. Os miúdos querem os sets dos filmes que viram ou que estão na moda. Bem…eu próprio gostava de ter a estrela da morte do Star Wars que tem uns milhares de peças e custa 500 euros.”
1973 marca o ano da entrada da Lego em Portugal (embora já fosse possível adquirir a marca antes disso). De qualquer forma, são as gerações que cresceram nessa e nas décadas seguintes que mais brincaram com legos. Rapazes e raparigas, casas, naves espaciais, carros dos bombeiros, mas sobretudo a possibilidade de materializar lugares, objetos, imaginários. Havia quem usasse os barcos para levar a passear as bonecas como a Tucha, quem os misturasse com os Playmobil, quem trocasse peças com os vizinhos, quem chorasse amargamente a perda daquele tijolo triangular, fundamental para acabar um telhado. Depois havia, claro, o prazer de destruir tudo e construir outra coisa. Aqui os tijolos Lego são imbatíveis: nada há que lhes seja impossível.
Na década de 70 a Lego fura a Cortina de Ferro e chega à República Checa e à Hungria, surge a “família Lego” e o carro com caravana a darem conta dos novos valores sociais. A psicóloga alemã Karin Grossmann publica o primeiro estudo científico sobre o efeito educativo e psicológico do Lego nas crianças. É compreendida a importância do jogo no “pensar com as mãos” e consequente desenvolvimento das capacidades de linguagem, pensamento prático e resolução de problemas. Recentemente foi criado em universidades e empresas o “Lego Serious Play”, em que durante algumas horas adultos utilizam legos para comunicar, desenvolver estratégias de trabalho, desenvolver o pensamento criativo. A própria Lego instituiu um dia e hora em que todos os empregados em todas as fábricas e escritórios do mundo param e durante quatro horas apenas brincam com legos. Luísa Santos, professora do Ensino Especial, afirma ao Observador que a magia destes tijolos é serem “altamente intuitivos e todas as crianças saberem, à partida, brincar com eles”.
Dos carpinteiros-inventores aos designers de produto
Nos anos 80 já 70% das famílias da Europa ocidental tinham legos em casa. A empresa tornou-se uma das maiores do mundo e em 1985 cria o Prémio Lego para o desenvolvimento infantil e começa a colaborar com o MIT. Mas, como sabemos, a década de 80 marca também a passagem do analógico para o digital, as mãos perdem importância para os olhos, o táctil cede lugar ao visual. Nos anos 90 os legos entram para os ecrãs dos jogos de vídeo, apesar de continuarem a fazer as delícias de muitas crianças que recordam o furor de ter um set do Robin dos Bosques, dos Piratas ou da ilha Paraíso, cujos tijolos cor-de-rosa são hoje muito cobiçados por colecionadores.
A entrada no novo milénio marca também a crise na Lego. Pela primeira vez desde a sua fundação, a empresa entra em défice, apesar da sua entrada na China, em 1994. O mundo está a mudar. As crianças passaram de tranquilas a hiperativas, o grande fascínio já não é construir na realidade mas nos ecrãs de computador. Têm cada vez menos tempo e paciência para atividades minuciosas e demoradas. A marca desdobra-se, cria a linha de roupas, uma editora de livros e revistas, jogos virtuais. A estratégia passa por fazer sets cada vez mais complexos a reboque de filmes, séries de TV, livros e, mais recentemente, réplicas de “famosos”. Pelo meio há, claro, todo um esforço para continuar a ser educativa: criam-se cenários evocativos de momentos da História, réplicas de cidades, a “Lego Factory”, onde cada um pode criar o seu próprio set Lego. Houve até a colaboração com o artista plástico polaco, Zbigniev Libera, para fazer um cenário que replicava o campo de concentração de Auschwitz, como uma alusão à importância das lições da História.
Em 2008 bateu-se um recorde ao ser construída uma réplica do Taj Mahal com 5.992 peças. A Lego ganha os direitos de fazer as personagens da Disney e da Pixar. Dos carpinteiros, dos construtores de casa e de cidades passou-se às princesas Disney. Paulo Ribeiro lamenta a perda da inventividade: “Hoje a Lego vem com folhetos de instruções e monta-se como se fosse um móvel do Ikea. Depois arruma-se na estante e compra-se outro.” Dos construtores que inventavam mundos a Lego tornou-se o território dos designers de produto que impõem modas.
Mas nem todos são pessimistas. Há muitas famílias que retratam serões onde adultos e crianças se juntam para fazer sets ou inventar coisas. Como este cenário que foi enviado para o Observador por Eduardo Amado, 13 anos, de Coimbra:
Este ano, em que a empresa se viu envolvida na polémica contratação e despedimento em tempo recorde (seis meses) de Bali Padda, alegando a falta de juventude do CEO britânico, também tem sido um ano de recuperação com o sucesso do filme Lego, os sets de Indiana Jones, Harry Potter e Star Wars. Mas os mais vendidos são mesmo as miniaturas do Batman. Quão longe estamos já do tijolo de plástico que foi considerado um dos objetos do século XX?
A “Casa Lego”
Oitenta e cinco anos depois do seu nascimento na cidade de província Billund, a Lego convidou um dos arquitetos mais carismáticos da atualidade, Bjarke Ingels, para voltar às origens e construir uma “Casa Lego”, que inaugura dia 28 deste mês de setembro. A casa de sete mil metros quadrados imita uma construção feita com os icónicos tijolos Lego e estará aberta ao público para exposições e atividades ligadas ao brinquedo.
Dir-se-ia que a Lego está a apostar mais no grande e aparatoso e menos no simples que foi a razão do seu sucesso. Os tijolos de plástico eram fragmentos do mundo a construir, apelavam ao agir livre, à invenção, ao inesperado, ao imperfeito, coisas fundamentais na educação. Hoje, em plena pressão social e económica para o entretenimento, as recriações da Lego parecem deixar pouco espaço para a imaginação. Há quase 70 anos que os legos permitem essa aventura que é as crianças imitarem e recriarem o mundo dos adultos. E se há brinquedo que tem tido plasticidade suficiente para assumir as transformações sociais, morais, familiares é a Lego. Porque Ole engendrou um brinquedo que pode transformar-se em tudo ele será certamente capaz de continuar a acompanhar o caos fulgurante que brota do inconsciente de cada um, contra tudo e contra todos, num maravilhamento sem fim.
Algumas curiosidades sobre a Lego
- Existem 2.400 formatos diferentes de tijolos Lego.
- Mais de 400 milhões de crianças já brincaram com produtos Lego.
- Existem 62 peças de Lego para cada um dos seis biliões de habitantes da Terra.
- São fabricados por ano 306 milhões de pneus para os carros e tratores Lego.
- Os tijolos são tão versáteis que a Lego calcula que com apenas seis tijolos de 2 x 4 podem-se obter 915.103.765 combinações diferentes.
- A Lego produz 19 biliões de componentes por ano, ou seja 2,16 milhões por hora, ou 36.000 unidades por minuto.
- Já foram produzidos 400 biliões de tijolos Lego desde 1949.
- Os tijolos Lego vendidos durante um ano eram suficientes para dar a volta ao planeta cinco vezes.
- 40 biliões de tijolos empilhados chegariam a lua.
- A série Star Wars é a linha mais bem sucedida de toda a história da Lego.