Em Myanmar, os confrontos entre as autoridades e os paramilitares rohingyas já fizeram milhares de mortos. Há décadas que a minoria muçulmana é perseguida, torturada e assassinada na ex-Birmânia e o conflito agravou-se nos últimos dias: em duas semanas, mais de 123 mil rohingyas fugiram do país rumo ao Bangladesh para escapar à violência. Em março, a ONU já falava numa “limpeza étnica“. Organizações como a Amnistia Internacional também já se manifestaram para que seja feita uma investigação.
De um lado um lado temos um governo que se recusa a reconhecer uma etnia fortemente presente no país; do outro, temos um milícia — que não representa a população rohingya — que exige um “Estado muçulmano democrático” onde já existe um país: Myanmar.
Quem são os rohingyas?
Os rohingyas pertencem uma etnia minoritária que existe em Myanmar há séculos. Atualmente, mais de um milhão de pessoas de etnia rohingya vive no país, nomeadamente no estado de Rakhine, no oeste. Têm uma linguagem própria, que não é reconhecida pelo Estado. Os confrontos entre grupos rohingyas e as autoridades são uma constante. Em Rakhine, a etnia rohingya representa mais de um terço da população e, ainda assim, entra em choque com outros grupos da região, predominantemente budistas.
Com uma história tão enraizada em Myanmar, a origem dos rohingyas é mais difícil de analisar do que o governo leva a crer. Do lado do Estado, argumenta-se que os rohingyas descendem de grupos de agricultores naturais do Bangladesh. Contudo, chegaram à região no séc. XIX, quando Myanmar era uma província ultramarina britânica, dentro da região administrativa da Índia. Os rohingyas foram para lá levados enquanto mão-de-obra barata. Muitos Rohingya garantem ser descendentes de mercadores muçulmanos. Mas, no fundo, são um misto de etnias.
Uma grande comunidade de refugiados rohingyas vive atualmente no Bangladesh e na Malásia, onde acabam a trabalhar ilegalmente ou desviados para redes de escravatura.
Como surgiu o conflito?
Primeiro é preciso entender que o governo recusa reconhecer os rohingyas como cidadãos de pleno direito de Myanmar, alegando que são naturais do Bangladesh. O órgão das Nações Unidas para os refugiados e outros grupos defensores dos direitos humanos já acusaram os dirigentes de Myanmar de “limpeza étnica”, com base na violência e assassínio de aldeias inteiras.
Quando Myanmar se tornou independente em 1948, os rohingyas foram autorizados a candidatarem-se para receber cartão de cidadão, o que lhes garantiria alguns direitos. Alguns chegaram mesmo ao Parlamento. Mas um golpe de estado militar em 1962 fez com que os rohingyas perdessem este estatuto e fossem considerados estrangeiros — assim, receberam todos um cartão de cidadão específico para estrangeiros.
O golpe de estado de 1962 levou ao poder o general Ne Win, que tinha sido primeiro-ministro da Birmânia (atual Myanmar), e que viria a ocupar o cargo mais duas vezes até passar a ser o chefe de Estado. Ne Win levou a cabo uma série de reformas quando chegou ao poder, marcadas por políticas de extremo nacionalismo, marxismo e budismo, apesar de ele próprio rejeitar interesses em ideologias e religião. Criou um partido, O Caminho Birmanês Para o Socialismo (CBPS), que em 1964 foi formalmente declarado o único partido legal no país.
Em 1982 foi aprovada uma nova lei de cidadania. Entre outras coisas, dizia que os rohingyas só podiam preencher o formulário para ter cartão de cidadão caso conseguissem falar uma língua oficialmente reconhecida e provassem que os seus antecessores viviam no país antes da independência. Mas a maioria nunca sequer teve acesso à papelada necessária para satisfazer os requisitos e foi considerada apátrida.
A economia foi inteiramente nacionalizada com base numa política de autosuficiência que levou o país a um isolacionismo político e económico. Como em todas as economias fechadas, o mercado negro cresceu para responder às necessidades da população e, a rápido passo, o governo caiu em bancarrota. A dívida pública da então Birmânia atingia os 3,5 mil milhões de dólares (2,9 mil milhões de euros) e as reservas do país tinham no máximo uns 35 milhões de dólares (29 milhões de euros).
Em 1987, Ne Win retirou de circulação as notas de 100, 75, 35 e 25 quilates e deixou apenas em circulação as de 45 e 90, por serem os únicos números divisíveis por 9, o número que o próprio considera dar sorte. Por esta alteração fiduciária, milhares de estudantes universitários perderam as poupanças que tinham para as propinas. Seguiram-se protestos por todo o país, que culminaram na demissão de Ne Win.
Mas o que começou por ser um movimento estudantil acabou por mobilizar todos os setores da população. Em setembro, as forças armadas retomaram o poder e revogaram a Constituição de 1974. Foi instaurado um Conselho de Restauração da Lei e Ordem.
“Quando o exército dispara, não tem por hábito disparar para o ar. Dispara para matar”– Ne Win
O objetivo das forças armadas, “em defesa dos interesses da população”, era impor medidas mais drásticas para pôr fim aos protestos, tal como a lei marcial. As tropas do general Saw Maung (que agora governava o país) patrulharam cidades de norte a sul, disparando indiscriminadamente contra qualquer um que protestasse.
Não se sabe ao certo quantas pessoas terão morrido porque muitos dos corpos eram cremados. Estima-se que só na primeira semana foram mortos cerca de 1000 estudantes, monges e crianças, e outras 500 pessoas à porta da embaixada norte-americana. No fim do mês de setembro eram já 3000 mortes estimadas.
Qual a posição de Aung San Suu Kyi?
Oficialmente, Aung San Suu Kyi é Conselheira de Estado de Myanmar, mas é considerada a líder de facto e a cara da nação. Estudou na Índia e no Reino Unido e acabou a viver em Nova Iorque, onde trabalhou nas Nações Unidas. Acabaria por voltar a Myanmar em 1988, coincidindo com a queda do general Ne Win. A 26 de agosto de 1988, discursou perante meia milhão de manifestantes na capital, exigindo um governo democrático. Contudo, em setembro a junta militar tomaria poder.
Nesse mês, ajudou a fundar a Liga Nacional para a Democracia, de onde seria expulsa por ser demasiado emotiva nos confrontos, apesar de a mesma rejeitar a violência e apregoar valores budistas. Foi colocada em prisão domiciliária em 1989.
As suas visões políticas e os textos que escrevia apelando ao voto democrático e transparente chamaram a atenção da oposição. Em 1990, a mesma junta militar convocou eleições legislativas, de onde a Liga Nacional para a Democracia saiu vencedora. No entanto, a junta rejeitou os resultados e anulou as eleições. A atenção internacional estava captada, de tal forma que a postura pacífica de Suu Kyi lhe valheu o prémio Nobel da Paz em 1991. Essa postura serviu de alavanca para a sua posição política. Em 2007 admitiu: “Eu não sigo a não-violência por razões morais, mas por razões políticas e práticas”.
Ao longo de 21 anos, esteve detida em prisão domiciliária um total de 15 anos, até ser libertada em 2010, um ano depois de o então presidente norte-americano, Barack Obama, ter pessoalmente apelado à libertação de todos os presos políticos, especialmente de Aung San Suu Kyi. A libertação, contudo, foi efetivada dias depois de uma eleição legislativa que voltava a garantir o governo da junta militar. As eleições de 2012 garantiram-lhe um lugar no parlamento — e o seu partido ocupou 43 dos 45 lugares disponíveis.
Toda esta postura pacífica tem sido colocada em causa por ativistas e líderes internacionais, exatamente porque Aung San Suu Kyi evita tocar no tema da etnia rohingya.
Depois dos protestos em Rakhine em 2012 e mais tarde no início da crise de refugiados rohingyas em 2015 (e até hoje), Suu Kyi reforçou em conferências de imprensa que “não tinha a certeza” se os rohingyas podiam ser considerados cidadãos de Myanmar. Numa entrevista dada à BBC, não condenou a violência contra a minoria étnica e rejeitou que fossem vítimas de “limpeza étnica”, além de insistir que as tensões eram causadas por um “clima de medo causado pela perceção mundial de que o poder islâmico é muito real”.
Perante estas posições, Dalai Lama chegou a apelar a que Suu Kyi fizesse “mais pelos rohingyas em Myanmar”, após duas reuniões privadas com ela.
A milícia islâmica
Aung San Suu Kyi alega que a violência “vem dos dois lados”, mas que é “em resposta aos grupos extremistas”. Refere-se ao Exército Arakan Rohingya (ARSA), uma mílicia insurgente estabelecida no estado de Rakhine que surgiu após os protestos de 2012. O grupo reivindicou vários ataques contra forças estatais, mas garante que o seu único objetivo é “estabelecer um estado muçulmano democrático” onde hoje existe Myanmar.
Apesar de algumas reformas no início do governo de Suu Kyi, os rohingyas continuaram a ser uma etnia não reconhecida no país, ao contrário do que acontece com outras 135 etnias. Não conseguem ter acesso aos mesmos recursos e serviços a que os cidadãos budistas têm, nem sequer podem abandonar as suas aldeias em Rakhine sem autorização prévia do governo.
As estimativas colocam o número de refugiados rohingyas no Bangladesh entre as centenas de milhares. A primeira-ministra do Bangladesh, Sheikh Hasina, garantiu à BBC que a sua posição é muito clara: “Eles [governo] deviam considerar esta situação com humanidade porque estas pessoas, as crianças, as mulheres… Estão a sofrer”.
“Estas pessoas pertencem a Myanmar, há 100 anos ou mais que estão lá. Como podem negar que são cidadãos?”, perguntou Hasina
A Amnistia Internacional fala em meio milhão de rohingyas deslocados e não documentados. O governo bengali autoriza, por vezes, que os rohingyas vivam em tranquilidade perto das fronteiras em campos improvisados. Outras vezes, contudo, deporta-os para Myanmar, onde a violência os espera.
Os outros países da região também não são uma solução. A Indonésia, por exemplo, chegou a proibir os pescadores de ajudar os rohingyas nas travessias de barco. Porém, chegou a haver manifestações no país — a maior nação maioritariamente muçulmana no mundo — em apoio aos rohingyas.
Myanmar não facilita a saída dos rohingyas do país. As fronteiras estão cobertas de minas desde a década de 90 e os acidentes com rohingyas feridos ou mortos por minas têm aumentado. O Bangladesh diz que o exército de Myanmar enterrou mais minas recentemente — uma alegação que os militares negam.
Têm surgido vários apelos nas Nações Unidas para a resolução do problema, em especial do Bangladesh e dos Estados Unidos. A primeira-ministra do Bangladesh, Sheikh Hasina, tem visita agendada a um campo de refugiados rohingyas e já fez saber que espera que “Myanmar resolva o problema que causou”. Já a Casa Branca apelou para que Myanmar respeite a lei internacional e acabe com a crise humanitária antes que ela se agrave.
Esta quarta-feira, 13 de setembro, soube-se que Aung San Suu Kyi vai faltar à Assembleia Geral das Nações Unidas, no mesmo dia em que o exército de Myanmar volta a defender que só ataca insurgentes islâmicos e não civis diretamente. O Conselho de Segurança deve reunir ainda durante a tarde desta quarta-feira para discutir a situação.