A teoria até foi, recentemente, colocada em causa – mas a maior parte dos médicos continua a pedir aos pacientes que tomem o antibiótico até ao fim, sob pena de a terapêutica regredir e o doente ter uma recaída. Na alta finança europeia passa-se algo parecido: após quase dois anos e meio de intervenção inédita (e controversa) por parte do Banco Central Europeu com a compra de dívida pública nos mercados, sabe-se que o programa de quantitative easing não pode durar para sempre — mas todos percebem que o desmame tem de ser feito “com pinças”, caso contrário a turbulência pode voltar aos mercados financeiros, e em força.

No final da reunião do Conselho do Banco Central Europeu (BCE) esta quinta-feira, Mario Draghi deverá anunciar uma redução do ritmo mensal das compras de dívida (pública e, também, privada). Em contraponto, é provável o anúncio de uma extensão do programa por mais seis meses, pelo menos, a contar do início de 2018.

Até agora, o BCE tem vindo a “criar” 60 mil milhões de euros por mês para comprar dívida nos países, na proporção que cada país tem no capital do banco central. O valor mensal chegou a subir para 80 mil milhões, mas foi reduzido no final de 2016 — perdão, não foi uma redução: segundo o BCE, foi uma extensão do programa de compras no tempo, só que a um valor mensal menor do que até então.

A confirmar-se a redução das compras, a anunciar esta quinta-feira, não será a primeira diminuição mas é a primeira que baixa o nível mensal para um montante inferior aos 60 mil milhões iniciais (e atuais) — daí o simbolismo da decisão.

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Em termos formais, o quantitative easing deveria terminar no final deste ano. Mas a expectativa mais consensual entre os analistas é de uma extensão do programa por mais seis meses — até junho, portanto — com uma redução das compras mensais para 40 mil milhões de euros. Mas os economistas do Morgan Stanley, em nota a que o Observador teve acesso, apontam noutro sentido: uma redução mais drástica, para 30 mil milhões, mas uma extensão por nove meses, até setembro.

No fundo, o banco norte-americano acredita que o BCE vai preferir uma abordagem “menos por mais tempo”, em detrimento de “mais por menos tempo”. “A diferença é que, com esta opção, o BCE fica com maior flexibilidade” e, por outro lado, nada impede que o programa se prolongue por ainda mais tempo, notam os economistas do Morgan Stanley Daniele Antonucci e João Almeida.

O que não se coadunará tanto com o estilo habitual do BCE é uma redução decrescente, a um ritmo pré-definido, das compras mensais de dívida. Essa foi a opção tomada pelos norte-americanos da Reserva Federal — a certa altura, definiu-se uma trajetória com pequenas reduções a cada mês, até se chegar a zero. A julgar pelos métodos habituais deste BCE, liderado por Mario Draghi desde 2011, um compromisso numérico tão rígido não é a opção mais provável.

“O BCE está consciente dos efeitos adversos de um desmame prematuro”

A redução das compras de dívida será um passo histórico no sentido da normalização da política monetária na zona euro, que trouxe uma maior serenidade aos mercados após a crise. Uma serenidade que foi conseguida muito à custa de uma medida inédita como é ter um banco central autónomo, proibido pelos seus estatutos de financiar Estados, a comprar vastos milhares de milhões de euros em dívida desses mesmos Estados. Essa compra não é feita diretamente aos países, mas no mercado — não obstante, as compras no mercado ajudam a que os juros baixem e os países possam emitir nova dívida a taxas mais reduzidas do que a dívida que vai vencendo.

Os mais ortodoxos defendem que esta é uma forma encapotada — e, já agora, ilegal — de um banco central financiar défices públicos, mas o programa de compra de dívida tem conseguido superar o escrutínio legal, em várias instâncias.

O programa começou na primeira de 2015 e, ao longo de 2017, o Eurossistema comprou milhares de milhões de dívida, com a meta indicativa de 60 mil milhões por mês mas com claras dificuldades em cumprir o objetivo porque, com tanta dívida comprada, em muitos casos — incluindo em Portugal — é, por vezes, difícil comprar toda a dívida que se pretende porque se esbarra na limitação auto-imposta pelo BCE que é não ter mais do que 33% de cada linha de obrigações de um dado país.

Com a “calibração” desta quinta-feira,o que está em causa é uma “mudança da maré”, escrevem os analistas do ING. “Não será uma mudança de maré súbita mas, sim, muito cautelosa e suave. O BCE está perfeitamente consciente dos possíveis efeitos adversos que podem surgir se existir um desmame prematuro“, escreve o banco holandês, acrescentando que “por muito robusta que pareça a retoma na zona euro, não só riscos externos como internos (basta pensar na Catalunha ou na falta de reformas estruturais) podem muito facilmente perturbar a recuperação económica“.

A taxa de inflação está a aproximar-se de 1,5% — e é, recorde-se, para animar a inflação que o BCE sempre justificou este programa, porque ter a inflação perto de 2% é o seu único mandato. Com a retoma a ganhar vapor, apesar dos riscos, é cada vez maior a pressão sobre o Conselho do BCE para que se trilhe o caminho da normalização — o agora ex-ministro das Finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, foi o último a avisar que os estímulos dos bancos centrais podem acabar por virar-se contra nós.

Wolfgang Schäuble avisa para risco de nova crise financeira a nível global

Numa entrevista recente, o economista-chefe do BCE, Peter Praet, reconheceu essa pressão. E pediu “paciência”. “As pessoas estão constantemente a perguntar-me se está na altura de começar o desmame. Mas a inflação subjacente continua muito baixa. Temos de ser pacientes e temos de continuar a seguir a nossa política — ainda é necessário um nível significativo de estímulos”, afirmou Peter Praet. E há outra questão, deixada clara pelo economista-chefe do BCE: “toda a gente concorda que temos de garantir que a redução dos estímulos é feita de forma ordeira, sem quaisquer choques excessivos”.

Uma das formas concretas de atenuar o golpe será o reinvestimento das obrigações que vão vencendo, o que é um estímulo adicional que tende a ser desvalorizado mas que é relevante. Com toda a dívida que foi adquirida, muitos títulos estão a ser reembolsados na data prevista — ou seja, os devedores reembolsam o capital em dívida ao detentor dos títulos, o que em muitos casos é o BCE. O que está em causa aqui é que cada euro que o BCE recebe em reembolsos é gasto na compra de novos títulos.

Caso isto não acontecesse, o que teríamos era uma redução do balanço total do BCE — o conjunto de ativos que estão nos livros do banco central — e isso, sim, equivaleria a uma inversão e um aperto real da política monetária. Este efeito tende a ser esquecido mas, segundo informações dadas à Bloomberg no mês passado, estamos a falar de uma média de 15 mil milhões por mês em dívida antiga que vence e cujo encaixe o BCE usa para comprar novos títulos.