As mais recentes alterações à lei do financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais foram desenhadas e acordadas num consenso parlamentar pouco habitual nesta legislatura entre PS, PSD, PCP, BE e PEV, em nove reuniões de um grupo de trabalho realizadas à porta fechada (entre abril e outubro deste ano). No entanto, não existem registos — nem sequer atas — sobre as discussões, nem mesmo informação sobre quem propôs cada uma das medidas ou até por que motivo as alterações foram além do que estava inicialmente estipulado. As dúvidas sobre a “transparência” do processo legislativo levam Pedro Bacelar Vasconcelos (independente pelo PS), presidente da Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais a revelar “alguma apreensão” e admitir “averiguar os procedimentos” depois de ter tido conhecimento do que se passou através da Comunicação Social, como admitiu ao Observador.
O próprio Presidente da República afirmou esta terça-feira que ia “olhar para o texto” das alterações legislativas “à noitinha”. Marcelo Rebelo de Sousa é sensível a este tema: quando liderou o PSD na oposição, foi da sua iniciativa o fim do financiamento partidário por empresas e a forte limitação dos donativos privados. Marcelo até queria que os partidos fossem totalmente financiados pelo Estado. Um próximo do Presidente admite que o veto presidencial em casos como este é sempre uma possibilidade sobretudo pela forma como o processo ocorreu, com os partidos a legislarem em causa própria sem que qualquer debate transparente na sociedade.
O Presidente da República afirmou que “havia uma alteração que era preciso fazer, fundamental, que era uma alteração de fundo pedida pelo Tribunal Constitucional (TC) para cumprir a Constituição na fiscalização das contas”. Marcelo Rebelo de Sousa não disse de que alteração estava a falar. Mas o reforço de meios para a fiscalização dos partidos proposto pelo presidente do TC não foi contemplado pelo grupo de trabalho nem está entre as medidas aprovadas. “Depois, se há mais algumas alterações de pormenor, eu vou ver”, disse o Presidente.
Presidente da República vai analisar alterações à lei do financiamento partidário esta noite
No âmbito da comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, em março passado, foi decidida a constituição de um grupo de trabalho que pretendia dar resposta aos problemas e propostas do Tribunal Constitucional sobre as dificuldades na fiscalização das contas partidárias — desenvolvida pela Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, que funciona na orla do TC. Mas acabou por ir além disso, com os partidos a aproveitarem também para mexer em pontos sensíveis do financiamento partidário, como o fim do limite para a angariação de fundos, a possibilidade de pedirem restituição do IVA pago na “totalidade de aquisições de bens e serviços” e ainda que pessoas singulares possam pagar despesas de campanha, a título de adiantamento.
Angariações de fundos ilimitadas
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Na legislação em vigor, os partidos estão limitados a registar 631 mil euros anuais através de ações de angariação de fundos — o que corresponde a 1500 vezes o valor do IAS (Indexante de Apoios Sociais). A partir de agora não há limite. Era uma reivindicação antiga, sobretudo do PCP por causa da receita gerada pela Festa do Avante!. Uma angariação de fundos pode ser uma festa em que se paga bilhete, um concerto, um leilão de obras de arte ou um qualquer ação em que o participante paga sabendo que a receita reverte para um partido. Não confundir com os donativos individuais, que mantêm as restrições de 25 IAS por doador (10,5 mil euros).
O grupo de trabalho sobre o financiamentos dos partidos — que numa das suas sessões chegou a ouvir o presidente do Tribunal Constitucional, Manuel da Costa Andrade — não tem atas ou registos escritos do que foi dito nesses encontros, segundo o Observador confirmou com várias fontes parlamentares. Da mesma forma que não se percebe o processo através do qual chegaram os deputados àquelas decisões, não é possível identificar que partidos propuseram o quê no guião com as propostas de alteração. As mudanças aos vários artigos da lei, segundo apurou o Observador, estavam identificadas através de letras, por ordem alfabética, e não através das siglas dos partidos que as estavam a sugerir à Assembleia da República. Aliás, vários deputados experientes explicam que o habitual é os partidos fazerem questão de identificar bem as suas propostas de alteração legislativa — mesmo havendo consenso — até para terem ganhos políticos posteriores e poderem reclamar a autoria das medidas.
[Veja no vídeo os auto-elogios dos deputados quando aprovaram a lei do financiamento de partidos. E os 7 passos do negócio secreto]
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Este não foi o caso. Um dos deputados que fez parte do grupo de trabalho terá dito numa das reuniões que só avançava com as propostas do seu partido caso a proveniência destas não fosse identificada.
Os registos que haverá desse processo legislativo são os emails trocados entre os deputados que compunham o grupo de trabalho e pouco mais. Segundo foi possível apurar, o fim dos limites à angariação de fundos terá sido da iniciativa do PSD, PCP, PEV e BE, por volta do início de junho. No final do mesmo mês, o PS terá colocado em cima da mesa a clarificação da norma relativa à devolução de IVA nas atividades de gestão corrente dos partidos. O CDS foi contra estas decisões e terá inviabilizado a intenção de se aprovarem estas alterações a tempo de estarem em vigor na campanha eleitoral das autárquicas.
As alterações foram aprovadas em plenário da Assembleia da República no passado dia 21 de dezembro, com os votos contra do CDS e do PAN. Os centristas — que esta quarta-feira ao meio-dia vão fazer uma conferência de imprensa sobre o assunto –, pediram a votação isolada dos artigos referentes ao IVA e à angariação de fundos, e foi por serem contra as alterações e o respetivo processo que votaram contra todo o pacote de alterações. Do ponto de vista dos conservadores, não haveria problemas quanto à falta de atas, caso o grupo de trabalho se tivesse limitado a ajustar a lei às preocupações do Tribunal Constitucional e não fosse tão longe nas alterações.
Bacelar Vasconcelos diz que teve conhecimento do processo pela comunicação social
A primeira reunião aconteceu a 26 de abril deste ano, como se pode ver no site do Parlamento, com um ponto único: “Apreciação dos problemas e propostas de solução identificados no documento enviado pelo Tribunal Constitucional sobre fiscalização das contas dos Partidos Políticos e das campanhas eleitorais, bem como de outros pontos que os Grupos Parlamentares entendam suscitar”. Ao contrário do que acontece com outros grupos de trabalho de relevo (o da dívida é um exemplo disso mesmo), não há registo de qualquer audição, nem mesmo a do Presidente do Tribunal Constitucional.
A "clarificação" do IVA
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Os partidos já tinham direito a algumas devoluções de IVA: em ações de propaganda “que visem difundir a sua mensagem política ou identidade própria” — segundo a letra da lei em vigor –, mas também em ações de angariação de fundos. Um deputado que integrou o grupo de trabalho diz que se trata apenas de “uma clarificação” porque a Autoridade Tributária não tinha um critério uniforme para avaliar estas devoluções de IVA. Assim, passa a ser tudo.
O presidente da comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, Pedro Bacelar Vasconcelos, diz agora ao Observador que “se os grupos de trabalho não observarem exigências elementares de transparência, há que refletir e alterar a sua forma de funcionamento”. O deputado (independente eleito pelo PS) diz que tomou “conhecimento dos reparos quanto à transparência dos procedimentos que conduziram à aprovação das alterações à lei pela comunicação social” e que “se a situação for como a descrita, haverá motivo para refletir e alterar procedimentos para defender o valor da transparência”.
A forma como o processo foi conduzido causa até alguma perplexidade mesmo entre os deputados dos grupos parlamentares que aprovaram as alterações. Ao Observador, uma fonte social-democrata explica que “não é tão frequente assim existirem reuniões de grupos de trabalho à porta fechada” e “muito menos não existirem atas” desses trabalhos.
“As atas funcionam como um registo histórico. Podem não ser públicas, mas existem sempre. E essas atas fixam as posições que os partidos vão assumindo. O mais certo é que os deputados dos vários grupos parlamentares tenham acordado que assim fosse”, explica a mesma fonte.
Mais: é normal que não sejam conhecidas as posições que os vários partidos assumiram sobre o tema, mesmo antes de fechado o texto conjunto? “Não é comum”, sublinha a mesma fonte do PSD. “Talvez pela delicadeza do tema e pelas eventuais repercussões mediáticas, se tivesse optado por esta forma de trabalhar. Mas não é muito comum”, assegura.
As comissões (ou reuniões dos grupos de trabalho) à porta fechada são regra comum, por exemplo, quando tratam de assuntos relativos à Defesa Nacional ou à Segurança Interna, onde são analisadas informações muitas vezes de carácter classificado — algo que não aconteceu neste caso. Um dos pressupostos usado para justificar o carácter reservado deste processo foi o facto de ter contando, desde o início, com a participação de Manuel da Costa Andrade, presidente do Tribunal Constitucional. A iniciativa de levar o tema à Assembleia da República foi do próprio magistrado, que, em julho de 2016, substituiu Joaquim Sousa Ribeiro no cargo.
Toma lá, dá cá
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Apesar de o espírito da lei ser de restrição do financiamento por privados, uma alteração aprovada admite que um particular possa avançar com dinheiro para pagar parte de campanhas. Por exemplo, um empresário paga a impressão dos cartazes e mais tarde o partido devolve-lhe essa verba através da conta bancária. A prática comum é, antes das campanhas eleitorais, os partidos pedirem um empréstimo bancário que cubra as despesas eleitorais e que seria depois é pago quando a subvenção estatal chega. O problema é que por vezes os partidos traçam expetativas muito otimistas e a seguir a subvenção é mais baixa do que o empréstimo contraído.
No grupo de trabalho estiveram sentados representantes de todas as forças parlamentares. No caso do PS e do PSD, a representação foi mesmo ao mais alto nível. De um lado, a secretária-geral adjunta socialista Ana Catarina Mendes e do outro, o secretário-geral social-democrata José Matos Rosa. Além disso, o PSD tinha ainda o coordenador do grupo, o deputado José Silvano e o PS a colaboração do deputado e jurista Jorge Lacão. Os restantes partidos tinham um representante cada: António Filipe do PCP, José Luís Ferreira do PEV, António Carlos Monteiro do CDS e Jorge Costa do Bloco de Esquerda (este nome não consta na composição disponibilizada no site do Parlamento, mas Bacelar Vasconcelos garante que o BE teve assento). O Observador tentou contactar representantes de todas as bancadas parlamentares, durante esta terça-feira, mas sem sucesso.
“A expectativa inicial era que a legislação estivesse em vigor antes das autárquicas de forma a ainda enquadrar as eleições deste ano”, revela o presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais. De acordo com o que o Observador apurou, o CDS inviabilizou esta possibilidade.
Depois de terem chegado a um consenso no grupo de trabalho, os partidos apresentaram um texto na comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, no dia 18 de outubro de manhã, e foi posto à discussão. Segundo Bacelar Vasconcelos, “não suscitou objeções de qualquer grupo parlamentar”, pelo que o projeto lei com as alterações à lei dos financiamentos partidários avançou para ser debatido e aprovado no plenário da Assembleia da República. Esteve à espera até à semana antes das férias de Natal por existir, depois da paragem parlamentar devido ao processo orçamental, “uma acumulação de projetos para votação”, argumenta o deputado do PS.
A escolha do modelo parlamentar de um grupo de trabalho para fazer uma discussão não é necessariamente motivo para deduzir que haverá menor capacidade de escrutínio, argumenta o deputado socialista Vitalino Canas. Isso é definido por cada grupo de trabalho, que tem autonomia para decidir de que forma funcionará, explica advertindo, no entanto, que “os grupos de trabalho não têm competência deliberativa. Essa é da comissão competente”. No final, a responsabilidade é da comissão da qual dependem.
Os grupos de trabalho são constituídos quando os deputados querem “garantir que os processos correm mais depressa e são mais eficientes”, acrescenta Bacelar Vasconcelos, já que permitem maior agilidade, tendo representações dos partidos que não têm de ser proporcionais às das comissões parlamentares. Nos grupos de trabalho, normalmente, cada grupo está representado por um único deputado (desejavelmente o que mais domina o tema em causa) e podem ser dispensadas gravações ou convocatórias com antecedência, exemplifica o presidente da comissão de Assuntos Constitucionais que diz que “existe menor formalidade”.
Afinal, o que pedia o Tribunal Constitucional aos partidos?
Pouco tempo depois de tomar posse como presidente do Tribunal Constitucional, Costa Andrade fez questão fazer chegar ao Parlamento as suas preocupações relativamente à “notória” falta de meios da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos para fiscalizar as contas apresentadas pelos partidos. Depois de uma audiência com Eduardo Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, Costa Andrade era mesmo taxativo:
É uma tarefa muito exigente porque é preciso fiscalizar as contas dos partidos em todo, com uma análise de minúcia e de pormenor muito grande, isso é um trabalho imenso, é um processo que se estrutura em muitos milhares de folhas e muitos milhares de páginas. A falta de meios é tanto em termos de pessoal como de espaços físicos”, alertava o presidente do Tribunal Constitucional.
Meses depois, já em março de 2017, Costa Andrade levou à Comissão dos Assuntos Constitucionais um documento com as dificuldades já antes denunciadas sobre a aplicação da lei de controlo das contas dos partidos e campanhas. Essa reunião decorreu à porta fechada, mas os deputados manifestaram publicamente a vontade de adotar as recomendações do Tribunal Constitucional e rever a lei.
Em maio, era a vez de o jornal Público dar conta de que os deputados se preparavam para reforçar os poderes da ECFP, dotando-a de reais poderes de fiscalização e exigindo maior transparência aos partidos políticos. “O presidente do TC trouxe-nos preocupações urgentes que os partidos ouviram com atenção e logo foi criado este grupo de trabalho para tentar resolver alguns desses problemas”, resumia o social-democrata Jorge Silvano, o coordenador daquele grupo de trabalho.
Em outubro, novos avisos, desta vez de Figueiredo Dias, que entretanto tomou posse como presidente da ECFP: havia “escassez de meios qualificados em face do crescente volume de trabalho” e os prazos legais de cumprimento da lei eram “irrealistas”. Um dos passos mais relevantes passava por dotar a ECFP de autonomia para passar a aplicar as coimas por irregularidades nas contas partidárias e das campanhas eleitorais, retirando essa missão ao Tribunal Constitucional.
Já a 19 dezembro, a agência Lusa fazia notícia com os primeiros resultados do grupo de trabalho, que deveria levar as alterações à lei daí por dois dias. Segundo fonte parlamentar, o Parlamento estava a preparar uma alteração “cirúrgica” à lei de financiamento dos partidos, dando seguimento às recomendações do Tribunal Constitucional.
A 21 de dezembro, o diploma conhece finalmente a luz do dia e é aprovado na Assembleia da República, com votos contra de PAN e CDS, que fez questão de alertar para a “falta de transparência” com que tinha decorrido todo o processo. PS, PSD, Bloco de Esquerda, PCP e PEV votaram favoravelmente, numa soma pouco comum.
Em relação às recomendações do Tribunal Constitucional, o diploma confere, de facto, poderes sancionatórios à ECFP, que vai passar a poder investigar eventuais irregularidades nas contas dos partidos e a aplicar coimas se for caso disso. Acontece que, pelo menos publicamente, o Tribunal Constitucional nunca fez referência a às alterações introduzidas em relação ao IVA e ao fim do limite imposto às angariações. Aliás, no prêambulo do diploma não há qualquer referência às alterações extraordinárias introduzidas. “São alterações pontuais cuja introdução se revelou necessária”, justificaram PS, PSD, Bloco de Esquerda, PCP e PEV.
A questão colocou-se quase como uma oportunidade imperdível — “já que agora estavam a discutir as recomendações do Constitucional, aproveitavam e tratavam do resto…”, ouviu o Observador de um deputado. E o resto nunca foi publicamente mencionado pelo Tribunal Constitucional. E quanto ao reforço de meios, que Costa Andrade e Figueiredo Dias tanto pediram? “Não nos competia a nós legislar sobre isso. É uma matéria exclusivamente orçamental e ficou assim decidido desde o início dos trabalhos”, diz uma fonte envolvida no processo.