Tudo parecia tirado do cenário de um filme do 007: militares fardados e cheios de medalhas, seguranças, mulheres com vestidos de gala, um ou outro smoking e empregados de laço pintavam a cena. Estávamos na residência oficial do Embaixador dos Estados Unidos e o motivo por trás de todo este imaginário Ian Flemingiano prendia-se com algo bastante simples. Conflitos diplomáticos? Super-vilões com planos de destruir o mundo? Nada disso. A resposta estava na nossa mão e tinha o formato de um copo baixo de fundo pesado. Whiskey. Nessa noite, as portas daquele palacete na zona da Lapa, em Lisboa, abriram-se para dar a conhecer o líquido dourado que relacionamos à Escócia ou à Irlanda mas que, neste caso específico, vinha dos EUA — o bourbon.
A representação diplomática norte-americana em Portugal promoveu este encontro com o intuito de dar a conhecer esta que é a bebida nacional dos EUA mas que muitos não conhecem bem (tirando o exemplo do Jack Daniels, que já se tornou parte do imaginário pop Ocidental). No total, 14 produtores (uns já com distribuição em Portugal, outros não) apresentaram o seu bourbon e tentaram mostrar que há algo de real e bastante interessante na bebida que vemos tantos cowboys do cinema a “deitar abaixo”.
No meio de toda a gente que se passeava de copo na mão, um homem destacava-se. “Paulo Ramos, muito gosto!”, disse um sujeito que vestia um colete castanho e uma boina de ardina. Depois de uns dedos de conversa descobria-se que era bartender há mais de 30 anos, que trabalhou em bares norte-americanos (“em Las Vegas, Miami, Nova Iorque, Chicago”) durante um quarto de século, que serviu celebridades como Morgan Freeman, Sylvester Stallone ou Phil Collins e que conhece de cor e salteado tudo o que há para saber sobre o bourbon. Quem melhor, portanto, para explicar ao certo que bebida é esta. Depois de uns minutos de conversa, o resultado a que se chegou aparece resumido nas alíneas que se seguem.
Quais as diferenças entre o bourbon e os restantes whiskeys?
“O whiskey divide-se em várias categorias que se traduzem em produções diferentes de país para país. A grande divisão será entre os escoceses e depois os norte-americanos: mais especificamente, dentro desse lote, existem os bourbons (esses tem como grande especificidade o facto de virem do estado do Kentucky). A principal diferença entre eles também a ver com o cereal base que é utilizado na sua produção. Enquanto os escoceses são essencialmente feitos com centeio, os norte-americanos são feitos a partir do milho. Um bourbon para se poder chamar bourbon tem de ter no mínimo 51% de milho. Esta é a regra principal. Como curiosidade posso dizer também que outro whiskey característico do continente norte-americano é o do Canadá, que é feito com rye, ou seja, é centeio. Depois há outras diferenças no capítulo das faculdades organolépticas [sabor, cheiro, etc…]. Os bourbons costumam ser sempre mais doces, por exemplo. Já existem, porém, bourbons que ganham outras características deste género, muito por culpa do processo de envelhecimento, que é feito em barricas de vinho do Porto (isto dá-lhes ainda mais notas de cheiro e sabor) Tawny ou Rubi. Lá fora há marcas muito interessantes, que ainda não têm distribuidor em Portugal, como a Iron Fish, a Breaker ou a Angel’s Envy.”
Mas os bourbons normais costumam ser envelhecidos de que forma?
O bourbon convencional costuma ser terminado em barrica de carvalho americano. No caso destes que falei, que ficam a estagiar em barricas de vinho do Porto, muda o tipo de carvalho, que passa a ser francês. A diferença pode parecer insignificante, mas isto muda completamente o produto final.
Como é que se faz um bourbon?
Depois do milho ser colhido, passamos à fase da maceração [processo de extração dos princípios ativos de determinado ingrediente através da moagem, primeiro, e depois com um solvente] do milho, depois ele vai a fermentar. Os outros cereais são adicionados neste momento, podendo ser tudo fermentado ao mesmo tempo ou em separado, depende da vontade do produtor. As leveduras, substância que potencializa o processo de fermentação, também vão variando de marca para marca. Finalmente chega-se à filtragem, etapa onde já temos algo semelhante ao whiskey que conhecemos, uma aguardente feita do milho. Esse material depois é depositado numas estruturas de cobre — esta é a forma mas tradicional de fazer, mas há quem já o faça de forma diferente –, os alambiques, e dá-se a destilação. A mistura é aquecida de forma a soltar os seus vapores que depois voltam ao estado líquido noutro recipiente, já “purificados”. Tudo termina com o envelhecimento. Cada marca, durante todos este processos, vai fazendo a coisa à sua maneira: há quem faça a filtragem através de carvão, por exemplo, e há as diferenças muito importantes que vêm da água utilizada… A água é muito importante em todo este processo, muitos produtores têm a sua própria nascente. Outro pormenor interessante é o facto de as barricas americanas serem sempre novas. O whiskey deve lá ficar, no mínimo três anos, mas pode lá ficar muito tempo, não há limite.
Quais são as principais alterações de cheiro e sabor que acontecem durante o estágio?
As madeiras têm propriedades que se vão imiscuindo no whiskey, como no vinho. Os master blenders — que são as pessoas que fazem a mistura dos cereais, determinam as quantidades de cada ingrediente e até definem quais são os materiais extra que são adicionados, como caramelo, por exemplo — são quem define o tempo que o produto fica no barril porque já sabem quanto tempo é preciso para que o produto final atinja a meta que eles tinham idealizado.
Mas há outros whiskeys feitos nos EUA que não são bourbon, certo?
Certíssimo. O Kentucky é como se fosse uma região demarcada para o bourbon, mas faz-se whiskey em várias partes dos Estados Unidos. Da Califórnia ao Oregon, passando pelo Michigan ou o Texas — a diferença é que eles não são considerados bourbon.
A que é que sabe um bourbon?
É mais adocicado que um whiskey escocês, ligeiramente. Depois pode ter notas de maçã assada, outras mais abaunilhadas, alguns caramelos, uns elementos mais picantes… Muita coisa diferente que varia ainda mais consoante a marca.
E qual é a melhor forma de beber bourbon?
O bourbon, regra geral, bebe-se puro, sem gelo. Mas também é comum usar duas ou três pedras de gelo. Os americanos têm o ritual de pedir um copo de água com o seu bourbon e bebem-no no fim, chama-se a esse ritual water back. Isto serve para limpar os aromas que ficam na boca, o hálito, por outras palavras. O típico americano só bebe desta forma: neat, que é sem gelo nenhum, puro; ou on the rocks, com umas pedras de gelo que acabam por ir diluindo um pouco o whiskey. Foi assim que se começou a beber o bourbon, mas mais tarde começaram a surgir alguns cocktails com esta bebida. Alguns dos mais interessantes são, por exemplo, o Old Fashioned ou o Manhattan.
As provas de bourbon também são ligeiramente diferentes das provas de vinho, certo?
Sim. O bourbon deve ser provado num copo baixo, daqueles que normalmente chamamos de “copo de whiskey”, ou num copo de prova parecido com os cálices de vinho do Porto. Alguns destes até têm tampa, para preservar melhor os aromas.
Mas como é que o bourbon surgiu?
Quem levou o whiskey para os EUA foram os emigrantes irlandeses e escoceses. Eles, no início, dedicaram-se muito à agricultura, especialmente ao cultivo de cereais. Ora a América do Norte era um terreno muito fértil, grande e com condições climatéricas favoráveis, mas o tipo de plantações a que estavam habituados — centeios, trigos, cevadas — não era o que melhor se dava lá. Em vez disso havia o milho. E foi assim: eles descobriram que também dava para fazer whiskey a partir do milho, como eles costumavam fazer com o centeio, por exemplo, e surgiram os primeiros bourbons. Estes imigrantes foram os mentores e inventores deste tipo de bebida.
E aquela ideia de que o bourbon é a bebida dos cowboys, é verdadeira?
É sim. Toda aquela zona do Sul dos EUA acaba por ser muito influenciada pela figura do cowboy. Claro que os filmes também ajudaram muito a solidificar essa ideia. Mas toda a gente bebe bourbon, atenção.
O bourbon pode-se beber a acompanhar uma refeição?
O whiskey, por ser um produto com as características que tem, é muito versátil. Se você for um fã desta bebida, pode consumi-la em qualquer altura. Aliás, até existem receitas de comida que levam bourbon! Molhos barbecue, por exemplo… Acho que de qualquer forma, este seria um hábito muito mais palpável nos Estados Unidos, não na Europa. Aqui olhamos para o whiskey mais na perspectiva do aperitivo ou digestivo. Aquilo é o produto nacional deles, a bebida de bandeira, faz sentido que o consumam com mais frequência que nós.