A ilha de São Miguel não está bem a ver o que a espera (nós também não estávamos). Não foi à toa que a programação do Tremor deixou Lone Taxidermist, nome artístico da britânica Natalie Sharp, para o fim. Imersa num universo que tem tanto de visual como de sonoro, a performer atua no espaço cultural Arco 8, em Ponta Delgada, na madrugada de domingo. Entre fatos de látex, pinturas corporais, bolos cremosos e um dos eletropops mais melodiosos que ouvimos nos últimos tempos, a artista monta a sua própria obra de arte total na forma de um espetáculo que, tal como o álbum Trifle, grita fetichismo. “É explorar um conceito da maneira mais aglutinadora possível, é esta espécie de hedonismo guloso com que faço as coisas. Acho que é o meu método para tudo. Combinar todos os media numa única performance — é precisamente isso que me faz feliz”, afirma Natalie, em entrevista ao Observador.
A língua alemã ajuda a resumir tudo isto numa única palavra complicada — Gesamtkunstwerk –, requisitada por Wagner no século XIX, mas também por Bowie, mais de 100 anos depois. Em agosto de 2017, Natalie lançou o primeiro álbum. Trifle é, na verdade, o nome da sobremesa caseira que, durante anos, a mãe lhe preparou. A disposição em camadas e as cores — vermelho e amarelo — serviram de base à identidade visual da obra discográfica. “A partir daí, comecei a olhar para a cultura digital, sobretudo para o YouTube. Uns amigos mostraram-me uma coisa chamada wet and messy, um fetiche. Comecei a ver pessoas a sentarem-se em cima de bolos e quis incorporar isso no meu vídeo”, conta a artista. As imagens fazem parte da performance que vai levar aos Açores, mas também do vídeo que serviu de teaser, ou de amuse-bouche se preferir, do disco.
De um lado, uma taça de frutas e creme servida num almoço de família, do outro, vídeos de pessoas besuntadas em chantili, maçapão e creme de pasteleiro. A mistura inusitada concretiza-se na performance, uma de muitas peças que compõem o espetáculo que, como já dissemos, é total e passa também por um guarda-roupa elaborado e uma caracterização a rigor. Afinal, antes da música, Natalie já tinha explorado as artes da maquilhagem e da pintura corporal. “Desde os 13 anos que pinto pessoas e coisas. Depois da universidade, mudei-me para Manchester e aí comecei a fazer música, foi como um ritual de passagem. No início, era tudo bastante básico. Passei por algumas bandas de garagem e usava o meu portátil com um microfone, tipo do it yourself. Há sete anos, voltei para Londres e comecei a maquilhar num nível mais profissional. Sempre tive vontade de combinar as duas coisas num único grande espetáculo. É a melhor coisa que já fiz”, explica.
Mas antes de tudo isso, houve um percurso musical alternativo, responsabilidade, mais uma vez, da mãe da artista. Parece que, além de doces inspiradores, também tinha por hábito inscrever a filha em pequenos concursos locais de karaoke. “Ela sempre foi uma mãe muito insistente”, conclui Natalie.
Em 2015, começou a dar nas vistas com o projeto Record Store Day. Através de pintura facial, a artista recriou capas de álbuns de Talking Heads, Kraftwerk, Grizzly Bear, Primal Scream, Nirvana e Joy Division, entre outros. O nome Lone Taxidermist foi mais longe, mas esse seria o último projeto da artista, antes de começar a aliar maquilhagem e música. Hoje, concebe a imagem dos seus videoclips, mas também os looks extravagantes com que atua. “Continuo a fazer a minha própria maquilhagem, não quero que ninguém toque na minha cara. Nisso, sou um pouco control freak, acho eu”, admite. Basicamente, no início, quis deitar mão a tudo, mas percebeu depressa que maquilhar os 12 performers que a acompanham era logisticamente difícil, no mínimo. Agora, são as máscaras de látex, desenvolvidas de propósito para o espetáculo, que montam o resto do cenário. Isso e os fatos de látex, os figurinos que se transformam camada sob camada e o plástico transparente com que embrulha a plateia, tal como a película aderente protege o trifle no frigorífico, mas com um quê de “subversão sexual”, nas palavras da artista.
É inevitável olhar para o aparato criado por Lone Taxidermist sem recordar o estilo singular de Peaches. “Acho-a maravilhosa”, admite. Mas as inspirações mais diretas vêm sobretudo do universo das artes plásticas e da performance, entre elas o artista australiano Leigh Bowery. Eartha Kitt foi um primeiro amor. Depois dela vieram Grace Jones, Scott Walker, Freddy Mercury, Madonna e Billy Mackenzie. Mais do que a música que fizeram, Natalie fascinou-se com as personagens que foram em palco.
“Nunca fiz nada para ser um statement ou para ser feminista, simplesmente sou o que sou. Acho que as letras têm a ver com o meu estado de espírito num determinado momento, não são declarações sobre nada, é tudo bastante mundano, na verdade”, explica. As referências chegam de todo o lado. Para o videoclip de “Knicker Elastic”, single de estreia do álbum, o conceito surgiu depois de ver “Aves do Paraíso”, episódio da série documental Planeta Terra, de David Attenborough. Caótica? Talvez, mas numa versão relativamente controlada. “É como estar à beira de um penhasco, mas saber que não vou cair. Quando atuamos, sobretudo eu, ponho-me um bocado em perigo, fisicamente. Gosto dessa sensação de adrenalina, de estar completamente fora de controlo, mas também de saber que há segurança à minha volta”, conclui.