A boa relação entre Portugal e a Rússia não é uma invenção da “geringonça” nem teve como episódio único a não expulsão de diplomatas. Portugal é um dos 9 nove países dos 27 que optaram por não expulsar quaisquer diplomatas russos, mas chamou a Lisboa o embaixador português em Moscovo. A aproximação à Rússia, explicam fontes governamentais e diplomáticas ao Observador, começou no Governo de José Sócrates, manteve-se durante o mandato de Pedro Passos Coelho e continuou a crescer durante o Executivo de António Costa.

Nos últimos anos, Portugal até foi forçado a tirar algumas vezes os caças da base de Monte Real para mostrar a porta de saída do espaço aéreo a bombardeiros russos, mas as situações foram sempre resolvidas com serenidade. A eleição de Guterres e a boa relação que Augusto Santos Silva tem mantido com o seu homólogo Sergey Lavrov — com visitas a Moscovo — têm ajudado Portugal a reforçar os laços com a Rússia.

A dívida por Guterres e o desejo de eleger Vitorino

Quando Portugal lançou a candidatura de António Guterres a secretário-geral das Nações Unidas havia um grande obstáculo: a Rússia de Putin. Pela normal rotação na ONU, o secretário-geral deveria ser europeu, mas de Leste. E a Rússia — como qualquer um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança (os chamados P5) — tinha uma palavra decisiva. E foi adiando a decisão até que ela fosse tomada durante a sua presidência do Conselho de Segurança, para que ficasse claro que a palavra russa era decisiva. A diplomacia portuguesa começou então a sedução a Moscovo, a mais difícil das aproximações.

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Em setembro de 2016, numa comitiva que incluía o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o ex-Presidente Jorge Sampaio e o primeiro-ministro António Costa, os portugueses aproveitaram uma sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas para colocarem em curso uma operação de charme aos russos. Guterres deu uma entrevista à agência russa Sputnik e Augusto Santos Silva teve um encontro bilateral com o ministro dos Negócios dos Estrangeiros russo, Sergey Lavrov. Não se sabe o que Portugal ofereceu em troca, mas um antigo governante que tutelou a pasta da política externa diz ser “justificável” que, na sequência desta negociação diplomática, Portugal tenha adotado uma posição “mais moderada” e “não hostil” à Rússia.

Um facto é que, semanas depois, a 5 de outubro, o presidente do Conselho de Segurança da ONU (o embaixador russo junto das Nações Unidas, Vitaly Churkin) anunciava que havia “um claro favorito“: António Guterres. No dia seguinte, António seria aclamado como o novo secretário-geral da ONU. A conquista não dependeu só da Rússia, mas o facto de Moscovo não exercer o direito de veto foi fundamental.

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O agradecimento português por Guterres não se fez esperar. Além da Grécia de Tsipras — quase isolada na União Europeia a criticar as sanções à Rússia –, apareceu outra voz contra a posição dominante entre os 28 de impor sanções a Putin. Duas semanas depois da eleição de Guterres, António Costa subia o tom para defender Moscovo, afirmando que Portugal tinha “entendido” que se devia “passar mais para a fase da cooperação do que para a fase da sanção”. E acrescentou, em mais um piscar de olho:

As sanções, aliás, têm tido uma eficácia bastante duvidosa, e, no que nos diz respeito, têm sido penalizadoras de vários setores económicos. Não é nossa ambição que se mantenham as que existem, muito menos que sejam alargadas novas sanções.

Há outros cargos, porém, aos quais Portugal é candidato que dependem da diplomacia portuguesa. Em novembro de 2017, Portugal oficializou a candidatura de António Vitorino a diretor-geral da Organização Internacional das Migrações. A Rússia só tem o estatuto de observador na OIM, mas, mesmo assim, Augusto Santos Silva foi a Moscovo pedir o apoio da Rússia.

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No final de uma reunião na capital russa, há apenas um mês, Augusto Santos Silva confessava o encontro teve como um dos temas a candidatura de Vitorino: “A Rússia tem um estatuto particular na OIM, é observadora, mas não vota. Mas fiz questão de apresentar a razão de ser dessa candidatura e de apresentar também o nosso candidato a um país cuja influência política é de todos conhecida.”

Na perspetiva do Governo, estes dois argumentos não fazem sentido por duas razões: primeiro, Guterres já está eleito; segundo, seguindo a mesma lógica de ganhar os votos da Rússia para Vitorino, ao não alinhar com os aliados, Portugal estaria a alienar estes votos. No entanto, vários ex-governantes e diplomatas ouvidos pelo Observador concordam que Guterres e Vitorino são fatores que “têm influência” na decisão de Portugal adotar uma atitude mais suave em relação aos russos.

Posição diplomática moderada do PS ao PSD/CDS

As relações com a Rússia começaram em 1799, no tempo de D. Maria I, que nomeou o primeiro embaixador português no Império Russo. Mas desde o século XIX que vão sofrendo altos e baixos. A situação atual é moderada. Um governante do executivo de Passos Coelho explica que, em termos históricos, “há cinco países do sul da Europa, Portugal, Itália, Malta, Chipre e Grécia”, que têm “melhores relações com os russos” — isto apesar de “a Itália até ordenado a expulsão de diplomatas.” Além disso, explica a mesma fonte, “a Rússia sempre falou com Portugal como um antigo império e nunca deixou de respeitar essa condição e a grandeza da história do país. Portugal, obviamente, retribui a cortesia.”

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Portugal tem tido uma estratégia de aproximação a Moscovo desde os tempos de José Sócrates. Com Durão Barroso, que era profundamente atlantista, as relações esfriaram quando Portugal promoveu a cimeira das Lages e apoiou a Guerra no Iraque. Mas, quando os socialistas chegaram ao poder, retomou-se a aproximação. “Há mais de dez anos que Portugal tem procurado uma relação diferente com a Rússia”, conta ao Observador uma fonte diplomática. Como consequência dessa aproximação, “nos momentos críticos a tendência tem sido uma grande tensão com a Rússia, Portugal tem tido uma posição mais recuada em relação aos aliados“.

Portugal tem tido assim, segundo um  diplomata, “alguma prudência em relação à dinâmica de confrontação instalada”, o que até ajuda o país a ter uma posição mais relevante na plano diplomático. “O facto de Portugal ter uma posição mais recuada, ajuda-o a ter relevância, já que pode intervir na situação como interlocutor”, explica um socialista que conhece bem os meandros da diplomacia. Portugal vive muito do “soft power” e, em virtude de ser um país pequeno sem grande capacidade militar, tem uma “forte necessidade de diferenciação na política externa em relação aos movimentos mais bruscos dos seus aliados”.

Um antigo governante do executivo de Passos Coelho assume que “Portugal sempre teve uma posição muito leve em relação à Rússia e uma posição também muito estável, independentemente de o Governo ser de esquerda ou de direita.” Neste plano, explica, “é muito importante a posição do corpo diplomático”, uma vez que o ministro dos Negócios Estrangeiros “respeita, normalmente, os conselhos dos diplomatas.”

Apesar das boas relações diplomáticas, do ponto de vista militar há sempre uma desconfiança quanto à Rússia e Portugal nunca esquece as suas obrigações no quadro da NATO. No final de outubro de 2014, caças F-16 portugueses foram obrigados a descolar da base de Montereal para intercetar dois bombardeiros russos. Em nenhum momento houve manobras hostis dos aviões russos, mas ficou a provocação e  voos civis chegaram a ter de desviar as rotas.

O ministro dos Negócios Estrangeiros de então, Rui Machete, desvalorizou a situação quanto ao efeito que teria nas relações entre Portugal e Rússia: “Não digo que abalem [as relações entre Portugal e Rússia]. Não é um fenómeno muito simpático, mas também não vale a pena exagerarmos no seu significado.”

Rui Machete sempre foi muito moderado quanto à Rússia, mas teve um secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Bruno Maçães, que era “anti-Rússia” e tomava “posições públicas contra o País”. Segundo fonte do Governo PSD-CDS, pelas posições que tomava publicamente contra os russos — chegou a participar numa manifestação na Ucrânia contra Moscovo devido à crise da Crimeia — Maçães chegou a “levar um puxão de orelhas” de Rui Machete.

Dois anos depois, voltou a repetir-se: dois bombardeiros russos sobrevoaram espaço aéreo sob jurisdição portuguesa e tiveram de ser intercetados por caças da Força Aérea Portuguesa. Já os russos limitaram-se a justificar, mais uma vez, que estavam em espaço aéreo internacional. E, de facto, estiveram em espaço aéreo internacional sob jurisdição portuguesa. Quando são navios russos que atravessam território marítimo português, a Armada segue os vasos de guerra, como aconteceu recentemente com um porta-aviões e respetiva escolta em Lisboa.

A curta representação diplomática em Moscovo

O Governo português admite mudar de atitude, mas para já a única medida de retaliação que tomou relativamente à Rússia foi chamar o embaixador em Moscovo. O Presidente da República tem dado cobertura ao Governo nesta matéria, dizendo que esta é uma “posição forte“, apesar de Portugal ser dos poucos países da União Europeia que não expulsou diplomatas russos na sequência do alegado ataque ao antigo espião russo. A embaixada britânica disse, em resposta ao Diário de Notícias, que a decisão de Portugal de chamar o embaixador “foi bem acolhida pelo Reino Unido.”

A secretária de Estado dos Assuntos Europeus, Ana Paula Zacarias, utilizou como um dos argumentos para a decisão portuguesa o facto de Portugal ter uma pequena representação diplomática na Rússia: “Nós temos três diplomatas em Moscovo. Se expulsamos diplomatas ficamos sem ninguém lá“, explicou Ana Paula Zacarias, defendendo que os portugueses têm de ser “pragmáticos” nesta matéria. Retirar os diplomatas significa que não são substituídos e que o país fica com menos diplomatas credenciado.

O chefe da diplomacia britânico, Boris Johnson, chegou a agradecer a Portugal “a solidariedade” para com o Reino Unido, destacando” a seriedade” da decisão de chamar o embaixador português em Moscovo após o ataque ao ex-espião russo no Reino Unido: “Não subestimo nem por um momento a seriedade desta decisão. Aprecio profundamente as vossas ações e a vossa solidariedade para com o Reino Unido”, escreveu o governante britânico numa mensagem ao homólogo português.

Ainda assim, Portugal pode mudar a posição, já que, segundo a governante, este é “um processo evolutivo“. Ana Paula Zacarias antecipa que pode haver mais novidades depois da reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros de 16 de Abril e no Conselho Europeu de Junho. Isto porque Portugal pode ter acesso a mais provas sobre o envolvimento russo. “Pode haver mais matéria de prova. Há investigações em curso e haverá com certeza mais matéria para avaliar. Na reunião de 16 de abril, haverá mais decisões”, explicou a governante.

A economia: da carne de porco aos Vistos Gold

Um dos argumentos de Costa quando defendeu que deviam acabar as sanções à Rússia foi, precisamente, o facto destas punições estarem a prejudicar a economia de alguns países europeus, como Portugal. O primeiro-ministro alertou, à saída da cimeira de líderes de outubro de 2016, que as sanções “têm sido penalizadoras de vários setores económicos [dos países da UE].” A suinicultura, por exemplo, sofreu quando em 2014 a Rússia decidiu decretar um embargo à carne de porco vinda da União Europeia, como consequência das sanções aplicadas a Moscovo. Quando os preços da carne de porco desceram no final de 2015, a Associação Portuguesa das Empresas de Distribuição (APED) culpabilizou o “embargo russo aos produtos europeus” pela redução dos preços.

Portugal tem feito, em matéria de relações económicas, uma aproximação à Rússia. Que tem dado frutos. Quando Santos Silva esteve há um mês na Rússia, foi divulgado que em 2017 (face a 2016) as exportações portuguesas para a Rússia aumentaram 23%, enquanto as importações de produtos russos aumentaram 30% também face ao ano anterior.

Outra fonte diplomática recorda a “questão dos vistos gold”. Na atribuição de vistos, o que envolve sempre investimento em Portugal, a Rússia é o quarto país que obteve mais vistos especiais. Segundo dados do SEF citados pelo Público, a seguir à China (3.709 vistos até fevereiro), Brasil (507) e África do Sul (234), a Rússia (206) é o país que mais vistos obteve.

Os parceiros de “geringonça”

Fontes diplomáticas e antigos governantes concordaram que a chamada “geringonça” terá pesado pouco ou nada na decisão portuguesa. A diplomacia portuguesa é estável e não mudou com o atual Governo. Aliás, as relações externas estão fora dos acordos de governação entre o PS e os partidos à sua esquerda e — em mais de dois anos de Governo — foram poucas as posições que agradassem a PCP e Bloco de Esquerda. Isso não significa que Costa não aproveite a situação para ganhar créditos junto dos parceiros

O eurodeputado Paulo Rangel foi dos primeiros no PSD a denunciar que poderia estar em causa uma cedência do PS aos parceiros da “geringonça”. Vice-presidente do Partido Popular Europeu Rangel afirmou que a “primeira coisa” que lhe ocorreu é que, “sendo o Governo sustentado por dois partidos que são contra a integração europeia, que são contra a integração de Portugal na NATO, o Governo está a fazer jogo ideológico com uma matéria que é fundamental para a geopolítica portuguesa”. No dia seguinte, foi a vez do líder parlamentar do PSD, Fernando Negrão, veicular a posição oficial do partido, dizendo que “a única explicação” que encontrava “num PS que foi sempre atlantista, é de se sentir condicionado pela aliança com PCP e BE.”

Embora o PCP já não tenha a ligação a Moscovo de outros tempos e seja crítico do “capitalismo” russo, aplaudiu a posição. Jerónimo de Sousa começou por dizer que “a Constituição da República é amiga da paz” e que, nesse sentido, “se o Governo a ler e cumprir, está no caminho certo.” O Bloco de Esquerda, através do líder parlamentar Pedro Filipe Soares, também apoiou a decisão do Executivo de António Costa, dizendo que “o Governo agiu de forma correta ao pedir a opinião do embaixador para ter mais conhecimento sobre o caso” e por “não acompanhar a escalada de tensão que tenderá a não ter bons resultados no futuro”.

Com Vítor Matos