Um olhar enrugado, marcado pelo tempo e registado a preto e branco olha-nos de frente, sem pudor. O rótulo com um ar propositadamente envelhecido diz respeito à nova aposta da marca Vinhos Conceito, um produtor familiar do Douro que nos tem habituado a ideias diferentes (e até “bastardas“).

Rita Marques, a enóloga e produtora, uniu-se a Manuel Sapage, também enólogo da casa, e a Luís Antunes, professor e homem versado na arte e na história do vinho, para criar os vinhos Ontem, tidos como artesanais e até naturais. As versões branca e tinta nasceram após a descoberta de vinhas votadas ao abandono na pequena aldeia de Aveloso, com pouco mais de 200 habitantes, localizada no concelho de Mêda.

© DR

A aldeia em questão está no meio de três denominações de origem, Douro, Dão e Távora-Varosa, ainda que não pertença a nenhuma delas. “Em Aveloso há castanheiros, pinheiros e granito. É fácil perceber que já não estamos no Douro”, diz ao Observador Luís Antunes, que recorda que a região vitivinícola regulamentada e demarcada mais antiga do mundo tem uma paisagem essencialmente marcada por amendoeiras e solos que derivam do xisto. Os três sócios tomaram, então, a opção deliberada em não associar os vinhos Ontem a uma Indicação de Proveniência Regulamentada que, neste caso, diria respeito a Terras da Beira. “Esta IPR em específico é muito grande e heterogénea, não achámos que fizesse sentido, sobretudo tendo em conta a identidade muito própria do terroir”, continua. Os vinhos Ontem não estão, por isso, sujeitos a nenhuma regulamentação específica — haja liberdade para criar. 

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Entre os hectares de terra descobertos pelo trio estavam (e estão) vinhas muito velhas, com mais de 100 anos, a 700 metros de altitude — como seria de esperar, os vinhos são o resultado de uma mistura curiosa e incontrolável de castas: se o Ontem Tinto 2015 (35€) encontra na sua génese tipos de uvas tão díspares como Rufete, Baga, João de Santarém, Touriga Franca, Bastardo e Tinta Roriz, o Ontem Branco 2016 (25€) nasce do casamento feliz de castas como Rabigato, Verdelho, Síria, Dona Branca e Encruzado. Branco e tinto são ainda vindimados em alturas diferentes — a data da vindima é cuidadosamente pensada com a frescura natural das uvas em mente.

© DR

Ao carisma concedido pelas vinhas velhas acrescenta-se o facto de serem vinhos que beneficiam de pouca intervenção — não se é exigido nem mais nem menos da videira. Luís Antunes fala ainda da “expressão do terroir”. “O vinho é como ele quis ser. Respeitámos as uvas e o que a região quis dar. Não há correções de acidez. Pensamos que vai envelhecer muito bem.” A população local está envolvida em todo o processo de vinificação, uma vez que a terra é dos lavradores e assim permanecerá. “Nós só compramos as uvas. Não queremos que as pessoas desistam da cultura da vinha. O vinho é que valoriza as uvas e as vinhas.”

A primeira nota  do tinto remete para uma enorme frescura. Tem um grau alcoólico relativamente elevado, uma acidez alta e um pH baixo. Há enorme leveza. É um vinho que fica muito bem à mesa. Já o provei com cabrito assado e fiquei doido”, recorda Luís Antunes.

O sentimento de exclusividade culmina na quantidade que é bastante limitada, uma vez que ao mercado vão chegar apenas 900 garrafas tanto do tinto como do branco. No rótulo criado pelo artista Paulo Humberto, conhecido na street art por Destroy Trash, pode não haver referência a região demarcada, mas há uma clara intenção em homenagear tradições associadas ao vinho. É provar hoje os sabores de ontem.