Depois de vários atrasos, foram finalmente conhecidos, no final de março, os resultados provisórios das candidaturas ao apoio da Direção-Geral das Artes (DGArtes) para o período 2018-2021. Contudo — e apesar das expectativas dos profissionais do sector que contavam que a situação mudasse para melhor com este Governo — os resultados ficaram muito aquém do esperado. O teatro, que sempre recebeu o maior bolo dos apoios governamentais, foi o mais prejudicado. De fora do programa de financiamento ficaram companhias de teatro com várias décadas de carreira que vêm agora a sua situação dificultada. Alguns municípios, como Coimbra ou Évora, viram as suas estruturas serem totalmente excluídas do programa da DGArtes. Até 2021, não vão receber qualquer ajuda do Ministério da Cultura.

Os resultados provocaram a indignação dos profissionais, que já prometeram uma manifestação para esta sexta-feira em vários pontos do país. Para acalmar os ânimos, o Governo anunciou um aumento no financiamento. Este, contudo, está longe de resolver os problemas de um setor tantas vezes atirado para segundo plano. Além disso, aqueles que ficaram de fora vão continuar a não ser abrangidos pelo Programa de Apoio Sustentado às Artes cujo novo modelo, aprovado no ano passado, arranca em 2018. A situação está longe de estar resolvida.

O que é que se passa com os apoios da DGArtes?

A polémica estalou ainda antes de os resultados provisórios das candidaturas ao Programa de Apoio Sustentado às Artes terem sido divulgados. O período de candidaturas ao financiamento atribuído pela Direção-Geral das Artes (DGArtes) — que, para o quadriénio de 2018 a 2021, tinha inicialmente um valor global de 64,5 milhões de euros para apoiar as atividades ligadas ao circo contemporâneo, artes de rua, dança, artes visuais, cruzamentos disciplinares, música e teatro — arrancou a 24 de outubro do ano passado e terminou a 6 de dezembro. Passados três meses do final do prazo e do início do período abrangido pelo concurso, ainda não havia resposta, o que levou um grupo de atores a subscrever um comunicado contra o atraso da divulgação dos resultados.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Como noticiou o Observador na altura, estes profissionais queixavam-se de que, apesar de a formação de uma Secretaria de Estado de Cultura no Governo de António Costa os ter enchido de esperanças, a resposta governamental ficou aquém das suas expectativas. “Aguardámos, na nossa precariedade, que o ano de 2017 servisse para uma remodelação efetiva dos apoios às artes. Continuámos em 2017 a mesma situação de miséria que se instalou no quadriénio anterior. E nada sabemos sobre 2018, 2019, a não ser que não temos vencimentos ‘por agora’”, referia a nota, divulgada através das redes sociais. Lamentando os “atrasos incompreensíveis”, o grupo de atores admitiu continuar dependente “de concursos que atrofiam estruturas” e “impedem a contratação de profissionais e o assegurar de remunerações dignas pelo trabalho dos seus artistas”.

Quase duas semanas depois da divulgação do comunicado, começaram finalmente a chegar as primeiras respostas do Ministério da Cultura. Os grupos de dança, circo contemporâneo e artes de rua foram os primeiros a serem informados. De acordo com um comunicado emitido a 19 de março pela DGArtes, das 24 entidades que se candidataram, 21 foram admitidas “com um crescimento financeiro de 38%, no valor de 1,7 milhões de euros, face ao ciclo anterior”. Dessas, oito nunca tinham recebido qualquer ajuda da parte da DGArtes ou tinham sido agora reintegradas no programa de apoio. Apenas uma, a Ação Total — Centro de Educação pela Arte, viu o seu financiamento ser reduzido (em 5%). No teatro, que sempre recebeu o grande bolo do financiamento, o cenário já era mais preocupante.

“Situação insustentável”. Atores revoltados com atraso do Governo no apoio às artes

A ata do projeto de decisão do Concurso ao Programa de Apoio Sustentado, comunicada aos candidatos e consultada pela Agência Lusa, revelou que 39 das 89 candidaturas na área do teatro não vão receber qualquer ajuda durante o período de 2018 a 2021. Entre estas incluem-se várias companhias e grupos que tinham recebido o apoio do Estado no ano passado, nomeadamente as duas companhias profissionais com sede em Coimbra (O Teatrão e Escola da Noite), o Centro Dramático de Évora, o Teatro das Beiras, na Covilhã, e o Teatro de Animação de Setúbal. Isto significa que, nos próximos quatros anos, nenhuma das companhias de teatro de Coimbra e Évora receberá ajuda. Só no Porto foram deixadas de fora quatro grandes estruturas artísticas — o Teatro Experimental do Porto, a Seiva Trupe, o Festival Internacional de Marionetas e o Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica. O Teatro Experimental de Cascais  também ficou de fora. É a primeira vez que isso acontece.

Em resposta aos protestos, o Ministério da Cultura decidiu anunciar um reforço de dois milhões de euros no montante disponível até 2021, sobretudo na área do teatro. Numa nota publicada esta terça-feira no seu site, a DGArtes justificou o aumento com o “elevado número de candidaturas consideradas elegíveis pelas comissões de apreciação para as quais, por limitações nas dotações, não foi possível atribuir financiamento”. Contudo, este acréscimo não irá resolver em nada os problemas financeiros de algumas companhias de teatro que, depois de divulgados os resultados provisórios, vêm a sua situação complicar-se. Além disso, deixa de fora estruturas mais pequenas, que não são capazes de corresponder aos critérios definidos pelo Ministério da Cultura.

O que dizem as estruturas artísticas?

Os resultados provisórios divulgados pela Agência Lusa no final de março provocaram a indignação de companhias de teatro e criadores que se dizem desiludidos com um Governo que assumiu, desde o início, a cultura como uma das suas prioridades. Numa primeira reação, Carlos Avilez, diretor do Teatro Experimental de Cascais, que tem mais de cinco décadas de atividade, admitiu estar em “choque” e que toda a situação era “inenarrável”. Classificando os resultados da DGArtes como “uma falta de respeito”, Avilez explicou que era “impensável” que a sua companhia não pudesse vir a ser subsidiada. “Então vamos ter uma sala nova e acabam connosco?”, questionou em declarações à Lusa, sublinhando que o TEC “não é um museu” e que nunca se atacou o teatro desta forma em Portugal.

Jorge Silva Melo, diretor dos Artistas Unidos, admitiu à SIC que tinha esperança de que este Governo fosse “melhor, mais amigo dos candidatos”. Questionado sobre os apoios da DGArtes e a polémica que se instalou, Silva Melo considerou ter-se perdido “uma oportunidade” que, a seu ver, é “grave. “Estou triste”, confessou, salientando que um dos problemas do novo modelo de financiamento, que entrou em vigor no ano passado, é o preenchimento dos novos formulários digitais que acompanham as novas linhas de financiamento. Segundo o diretor dos Artistas Unidos, um dos campos de preenchimento obrigatório diz respeito às equipas que constituem cada estrutura. “Tenho de provar a adequação da equipa ao projeto em causa, tenho de provar a minha adequação a encenador naquele projeto. Como é que isso se prova?”, questionou.

Estruturas artísticas criticam resultados provisórios

A adequação da entidade e equipa candidata é um dos critérios que está na base da ponderação feita pelas comissões da DGArtes responsáveis pela seleção dos grupos artísticos que têm direito ao apoio governamental. Diz a Portaria n.º 301/2017, que aprovou o  Regulamento dos Programas de Apoio às Artes, que o “historial, mérito e adequação” são aferidos “pela relevância estratégica da organização no plano profissional, social e territorial, e pela competência e qualificação dos recursos humanos afetos ao plano de atividades”. Estes têm um peso de 15% na pontuação final, que permite a candidatura da entidade. Nesta ponderação, é também tido em conta o plano de atividades, a sua qualidade artística e relevância cultural. Ponto que leva a atriz Maria João Luis a interrogar-se sobre como é que pode explicar no formulário que tem de preencher “como é que vai ser o espetáculo” que vai fazer “daqui a dois ou três anos”. “Como é que posso dizer quais são os atores que vão entrar, o porquê daqueles atores, se eu ainda não sei o que vou fazer? Tenho a ideia do projeto, mas não tenho de saber o que é que vai ser”, disse à SIC.

Em comunicado, O Bando, teatro com sede em Palmela que recebeu cortes no financiamento, disse que “o que vem sendo anunciado não corresponde a uma retoma das condições pré-troika”, considerando que os resultados da DGArtes são ”um ataque violento ao meio artístico português, ao eliminar estruturas de criação espalhadas um pouco por todo o país”. Já o centro dramático de Évora, o CENDREV, um dos que viu a sua candidatura ser rejeitada pela Secretaria de Estado da Cultura, afirmou ter sido defraudado pelo Governo. “Dependemos de pequenas estruturas de produção com quem gostamos de trabalhar, mas que nos últimos anos têm vindo a ser insistentemente subalternizadas”, afirmou o centro, citado pela Lusa.

O que dizem os outros partidos?

A resposta também não tardou por parte da oposição. José Carlos Barros, coordenador do PSD na Comissão Parlamentar de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto, considerou que os resultados das candidaturas aos apoios culturais são “mais um episódio no fracasso da política cultural do Governo”. “Já nem vale a pena chamar o senhor ministro da Cultura [ao Parlamento], pois ele não responde absolutamente nada relativamente aos grandes desafios da criação artística, do cinema e do audiovisual e remete, sistematicamente, para o secretário de Estado, que também já não tem respostas para dar”, disse, acrescentando que também o secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado, “esgotou a sua capacidade de diálogo com as estruturas artísticas”.

Referindo-se à falta de apoio em algumas zonas do país, como Coimbra ou Évora, o PCP disse saltar à vista “um flagrante desequilíbrio territorial na distribuição das verbas a concurso e uma evidente insuficiência de verbas destinadas ao apoio público ao teatro”. “Dos 6,9 milhões de euros a concurso, 79,21% são destinados à Área Metropolitana de Lisboa e à região Norte, ficando o remanescente para o resto do país“, apontaram os comunistas, defendendo que “bastavam apenas 3.144.885 euros para apoiar as candidaturas elegíveis que ficaram de fora na totalidade do montante solicitado pelas estruturas para o ano de 2018”.

O partido, que entretanto pediu uma audiência urgente do Ministro da Cultura para esclarecer toda a situação, considerou ainda que, “no caso do teatro, aparentemente, são obliterados os percursos de companhias e estruturas que ao longo de anos tiveram e têm um papel incontornável na vida cultural” portuguesa, “várias com um historial de verdadeira descentralização cultural que tem de ser valorizado e não pode ser esquecido”. Contudo, o PCO considera que os “problemas que se reduzem apenas a um caso pontual dos apoios ao teatro”. “Também no caso das áreas do circo, da dança, das artes plásticas e dos cruzamentos disciplinares se verifica uma gritante escassez de verbas que dita a exclusão de candidaturas elegíveis e não permite uma resposta adequadas às necessidades de desenvolvimento do país.”

DGArtes. Comunistas convocam ministro da Cultura com urgência ao parlamento

Questionada sobre a polémica, Catarina Martins, coordenadora do Bloco de Esquerda, afirmou que o ministro da Cultura fez “erros muito graves” no dossier dos concursos ao Programa de Apoio Sustentado e pediu a reposição dos valores de 2009. Para a líder bloquista, o “Governo errou clamorosamente”. “É bom que o ministro da Cultura reconheça o erro. É grave que tenha errado e devia ter prevenido. Lembro que para toda a cultura [o valor] é 0,2%, o que arredondado dá zero.” Defendendo que não “é preciso inventar a roda”, mas sim “não deixar” que se “fechem as portas” às “estruturas que trabalham com escolas, fazem as agendas culturais” ou “fazem com que cada um tenha acesso ao conhecimento, à arte ou poder pensar sobre si próprio”, Catarina Martins exigiu que o problema fosse resolvido “o mais depressa possível”.

Como é que é feita a apreciação das candidaturas?

Em entrevista à SIC, o secretário de Estado da Cultura garantiu que o problema não está no modelo de financiamento, mas naquilo “que são dificuldades ainda de financiamento”. De acordo com Miguel Honrado, este “corresponde às indicações” que o Ministério da Cultura recebeu “do sector”, ouvido durante cerca de um ano. Mas como é que funciona exatamente a apreciação e seleção das candidaturas?

O processo de apreciação das candidaturas é demorado e tem em conta uma série de critérios que têm de ser ponderados e somados pelos membros das diferentes comissões responsáveis. Estas são nomeadas pelo Ministro da Cultura (ou membro do Governo responsável pela pasta) “sob proposta fundamentada da DGArtes” e “compostas por consultores ou especialistas nas áreas artísticas e financeira”, como previsto no Artigo 15º do Decreto-Lei n.º 103/2017 de 24 de agosto. A presidir cada comissão encontra-se um técnico da DGArtes. O processo tem de ser terminado num prazo máximo de 60 dias — de acordo com os critérios definidos pela Portaria n.º 301/2017 — para que as estruturas artísticas admitidas possam depois ser notificadas. O critério que tem maior peso (40%) diz respeito ao plano de atividades, à “qualidade artística e relevância cultural do projeto artístico, aferida pela inovação, originalidade, coerência e excelência no contexto em que se propõe intervir na representação do setor à escala nacional e internacional”.

Isto significa que, por exemplo, as estruturas culturais com menos impacto à “escala nacional e internacional” recebem obrigatoriamente menos pontuação do que aquelas que têm uma maior projeção e, logo, têm menos hipótese de ter acesso ao financiamento. Existem, porém, algumas companhias e grupos de teatro (e não só) que desempenham um papel importante ao nível local. São essas que o novo modelo não prevê. A “repercussão social” dos projetos, na qual se incluiu a “estimativa de adesão de participantes, espectadores e visitantes das atividades”, têm apenas um peso de 15% na ponderação final, assim como a sua relevância “no plano profissional, social e territorial”. A percentagem é menor do que a atribuída à gestão do projeto. Por outras palavras: a forma como o orçamento é gerido têm mais peso do que o impacto social e local da estrutura.

Ministro da Cultura garante que “não deixará cair estruturas” importantes

“A pontuação obtida por cada candidatura resulta da soma das pontuações de cada critério previsto, ponderada de acordo com a fórmula de cálculo prevista no regulamento, por forma a tender à diferente relevância dos vários critérios na análise da candidatura”, explica o site da DGArtes. “Para seriação das candidaturas, da mais pontuada para a menos pontuada, contribui também a valorização adicional das candidaturas que confiram as qualidades de distinção associadas à intervenção local.” Além disso, é também tido em conta o desempenho das estruturas no ciclo plurianual anterior, “aferido pela comissão de avaliação relativamente a contratos de apoio financeiro celebrados após a entrada em vigor” do referido decreto-lei.

Depois de selecionadas as candidatas que serão abrangidas pelo Programa de Apoio Sustentado às Artes, é fixado o montante de apoio financeiro, também ele definido “de acordo com a pontuação obtida pela candidatura nos critérios”, e comunicada a decisão às respetivas estruturas. Segue-se depois a fase de audiência (que dura no máximo dez dias úteis), durante a qual as companhias e restantes entidades podem reclamar dos resultados. A decisão final deverá ser anunciada no final deste mês de abril e início de maio. Os pagamentos poderão estender-se até finais de junho.

E agora?

Descontentes com a situação, os profissionais do teatro recusam-se a baixar os braços. Ao final da tarde de sexta-feira irá decorrer uma manifestação a nível nacional convocada pelo CENA-STE — Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos, a Rede — Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea, a Plateia — Profissionais de Artes Cénicas e os promotores do Manifesto em Defesa da Cultura. Marcada paras as 18h, esta irá abranger as cidades de Lisboa, Porto, Coimbra, Beja e Funchal. O CENA-STE marcou ainda, para esta terça-feira, uma conferência de imprensa para as 20h30.

Rui Moreira, que esteve reunido durante a manhã de terça-feira com 66 estruturas culturais portuenses, disse querer que elaborado “um novo concurso que corrija os erros” do Programa de Apoio Sustentado. “Chegámos à conclusão de que não chega apenas a correção de verbas generosa, anunciada pelo primeiro-ministro. Vamos falar com o Governo a dar nota da vontade que a Câmara do Porto e estas estruturas têm para colaborar na feitura de um novo concurso que, de alguma maneira, corrija estes erros que não são apontados apenas por nós”, afirmou o presidente da câmara à saída reunião realizada no Teatro Rivoli, no Porto. Moreira disse ainda que a autarquia está “em contacto” as estruturas em dificuldades financeiras e que “tudo fará” para, “no imediato, em situação de transição, contribuir para que não fechem as portas”, nomeadamente com “dotações financeiras de emergência” no orçamento municipal, até que seja encontrada uma solução para o problema.