O Governo pode não conseguir avançar com a construção da nova ala pediátrica do Hospital São João. Em causa está uma disputa antiga entre a administração do hospital e a associação “Um Lugar Para o Joãozinho” sobre quem tem o direito de avançar com a obra. Sem acordo à vista, o caso pode terminar nos tribunais e, no limite, adiar a obra por tempo indefinido.

A construção das novas instalações começou por ser um projeto pensado por Pedro Arroja, economista e presidente da associação “Joãozinho”, em conjunto com António Ferreira, então presidente do conselho de administração do Hospital São João — uma obra, aliás, apadrinhada por Pedro Passos Coelho, em março de 2015, altura em que foi lançada a primeira pedra. O grande objetivo era substituir os contentores provisórios para onde tinham migrado os serviços de internamento da pediatria ainda em 2011.

No final de 2015, com a mudança de Governo e da administração do São João, começaram a surgir as primeiras grandes dúvidas sobre o financiamento e orientação do projeto.  As obras, iniciadas ainda nesse ano, acabariam interrompidas em virtude do diferendo entre a “Joãozinho”, o Hospital São João e o Ministério da Saúde.

António Oliveira e Sousa, que sucedeu a António Ferreira na administração do hospital, duvidava que a associação tivesse capacidade para atrair o investimento necessário e para concretizar a obra — afinal, tinha angariado pouco mais de 700 mil euros numa obra orçada em 25 milhões. Em março de 2016, a administração do hospital decide assumir publicamente o problema: a nova ala pediátrica só existiria se houvesse financiamento público. O acordo entre as duas partes parecia estar condenado.

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Pedro Arroja nunca aceitou esta leitura. A “Joãozinho” voltou-se então para a rede de supermercados Continente, que se comprometeu a suportar grande parte da obra, tendo como contrapartida a construção de um supermercado num terreno próximo da ala pediátrica. Problema: o terreno era público e propriedade do Estado. Consciente do acordo entre a associação e a empresa do grupo Sonae, a administração do São João decidiu pedir um parecer jurídico, cuja conclusão foi clara: o acordo não tinha enquadramento legal nem contratual. Adalberto Campos Fernandes, ministro da Saúde, apoiou sempre a decisão de Oliveira e Sousa.

É preciso novo concurso público

Depois de anos de impasse — e perante as crescentes denúncias públicas sobre o estado cada vez mais caótico das instalações provisórias que serviam a pediatria do São João –, o Governo assumiu finalmente o projeto e decidiu que o investimento teria de ser público. Começaram aí os grandes problemas: para que a obra avançasse, era preciso começar do zero, afastar o consórcio das construtoras Lúcios–Somague da obra, apesar do trabalho desenvolvido e do investimento feitos até ao momento, lançar um novo concurso público (o Estado está legalmente obrigado a fazê-lo) e substituir a associação “Joãozinho” na condução do plano. Pedro Arroja nunca concordou com estas exigências e recusou-se a assinar qualquer acordo com o Governo socialista.

Apesar da posição assumida pela associação, o projeto da nova ala pediátrica parecia ter ganhado uma nova vida. Em janeiro de 2017, o novo plano para a obra era finalmente confirmado; e a 1 de junho, no Dia Mundial da Criança, garantia-se que a verba já estava disponível. Apesar de todas as garantias, tudo continua na mesma.

Hoje, e depois da polémica em torno das condições “miseráveis” e “indignas” que enfrentam as crianças que fazem tratamento de quimioterapia no São João, Mário Centeno foi chamado ao Parlamento e garantiu que as obras iam mesmo sair do papel. Quando? Apesar de a primeira pedra ter sido lançada em março de 2015 por Passos e de o atual Governo ter relançado o projeto em janeiro de 2017, o ministro das Finanças não foi capaz de se comprometer com datas, limitando-se a dizer que as verbas iam ser desbloqueadas em breve.

Hospital de São João. Crianças fazem quimioterapia nos corredores

O problema é que, mesmo com dinheiro e aparente vontade política, o Estado ainda não chegou a acordo com a “Associação Um Lugar Para o Joãozinho” sobre a titularidade da obra. Diferendo que pode criar um imbróglio jurídico de resolução complexa.

Pedro Arroja, presidente da associação, continua a defender que a titularidade da obra pertence à associação. “Somos o dono da obra. O que eles [Governo] disseram é uma mentira. Ainda vivemos num Estado de Direito. Não posso simplesmente rasgar o acordo. Tenho protocolos de mecenato, tenho protocolo de construção de 20 milhões, não posso simplesmente pegar na trouxa e ir embora”, defende.

Em declarações ao Observador, o economista elenca, aliás, as suas três condições para chegar a acordo: à cabeça, o Estado, via administração do hospital, cede o espaço e a obra continua. “Até gastar o último tostão dos mecenas que tenho em meu poder para depois poder ir ter com eles e dizer ‘tudo o que me deram gastei, o Estado quis pagar o resto’”.

Mas há mais: Pedro Arroja quer que o Estado assuma o contrato que a associação assinou com o consórcio Lúcios–Somague. Algo que, em teoria, é impossível: por lei, o Estado está a obrigado a abrir um novo concurso público para adjudicar a obra.

António Oliveira e Silva, presidente do conselho de administração do Hospital São João, reconhece o problema. “Em última análise, o terreno é nosso. Nós cedemos, eles não construíram. Isto levantará problemas jurídicos, que serão resolvidos no sítio próprio”, assume ao Observador.

O presidente do conselho de administração diz não perceber, de resto, aquilo que diz ser o “finca-pé da associação” e a “sede de protagonismo” de Pedro Arroja, “quando eles não têm dinheiro” para concluir a obra.

“Não podemos legalmente passar o dinheiro para a ‘Joãozinho’ para eles fazerem a obra. Tive várias reuniões e fiz-lhes ver que o objetivo de todos é conseguir uma ala pediátrica nova. Ninguém iria entender que a associação fosse um obstáculo”, explica António Oliveira e Silva.

Oliveira e Silva garante que tentou tudo para manter a associação no projeto. “Sugeri que fizessem um contrato de associação connosco, porque a associação pode ser muito útil”, garante. E ainda deixa um desafio: “Faço qualquer coisa para ter a obra. Se a associação mostrar que tem dinheiro para a obra, fazemos de imediato”.

O Observador tentou contactar o Ministério da Saúde para esclarecer se há ou não garantias de que a obra vai mesmo avançar num prazo razoável, mas não obteve qualquer resposta até à publicação deste artigo.

Apesar de haver projeto, apesar de haver verbas — pelo menos, a intenção de as investir –, não há qualquer garantia de que a obra avance nos próximos meses. A menos que todas as partes envolvidas cheguem a acordo.