O tiro de partida para a mudança de discurso oficial no PS não foi dado esta semana — foi dado a 24 de abril à noite, quando Carlos César comentou na SIC-Notícias o caso Manuel Pinho e disse que “o país tem razões, neste caso como em outros que se comprovem, para se envergonhar com determinadas condutas“. Na altura, quase ninguém o ouviu; e a referência a “outros” casos “que se comprovem” (código para Sócrates) passou despercebida. Ao fim de oito dias, César voltaria a repetir a frase e, dessa vez, daria início a uma sequência de declarações dos mais destacados dirigentes do partido que deixaram definitivamente para trás três anos e meio daquela espécie de mantra que o então recém-eleito líder António Costa impôs ao partido (por SMS) no dia em que Sócrates foi detido: “À justiça o que é da justiça, à política o que é da política”.

Para José Sócrates, o novo discurso do PS foi insustentável: ao fim de 42 horas de críticas, decidiu entregar o cartão de militante e abandonar o PS. Numa carta publicada esta sexta-feira pelo JN, o antigo líder socialista acusa os agora ex-camaradas de lhe terem feito “uma espécie de condenação sem julgamento”. E afasta-se: “É chegado o momento de pôr fim a este embaraço mútuo”.

Sócrates entrega o cartão de militante e abandona o PS

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O que mudou no PS para a mudança de discurso que foi clara nas últimas horas? Duas coisas: o aparecimento de mais um caso a ir direito aos tempos da governação do ex-líder Sócrates; e o silêncio a que se remeteu Manuel Pinho perante as suspeitas. “A situação era insustentável”, comentou um deputado do partido ao Observador.

A proximidade de um congresso do partido no fim deste mês (o último antes das próximas legislativas) — que nenhum socialista quer voltar a ver marcado pelo fantasma de Sócrates e de casos judiciais — fez o resto. “O PS já tinha encontrado o ponto certo na relação com Sócrates. O caso de Pinho veio reavivar estas matérias e adensou o nível de intolerância. Tornou-se quase impossível que alguém dissesse alguma coisa sobre o assunto”, comenta ao Observador um outro deputado do partido. O “alguém” que tomou a dianteira foi o presidente e líder parlamentar do partido, Carlos César.

Vindo de uma semana negra, com o caso das viagens dos deputados das ilhas a trazer à tona questões de ética política, Carlos César aproveitou, logo a 24 de abril, a participação no programa da SIC-Notícias, frente a Santana Lopes, para falar precisamente na ética exigida a quem tem “responsabilidades políticas qualificadas”. Não era sobre si ou sobre os restantes deputados das regiões autónomas que falava, mas sim sobre Manuel Pinho. E não só.

[Veja como as críticas a Sócrates se intensificaram na quarta-feira, dia 2 de maio]

Nessa noite, César disparou logo sobre a situação do ex-ministro da Economia para a classificar de “incompreensível e lamentável”: “Não sou eu o juiz, não o posso condenar, mas o país tem razões, nesse caso como em outros que se comprovem, de se envergonhar com determinadas condutas”. Quanto às decisões, deixava-as para os tribunais, mas o posicionamento político estava lançado. “Quem é responsável político e tem responsabilidades políticas qualificadas, ao adotar determinadas condutas, tem responsabilidade agravada e isso não deve ser descurado em nenhum momento, nem no da análise nem no das conclusões”, acrescentou logo nessa noite.

“Não houve uma reação organizada, mas foi um clique“, diz ao Observador outro deputado socialista quando justifica a mudança do discurso do PS a partir daqui. Quando o assunto voltou a estar em cima da mesa — e não mais parou de aí estar — foram mais de 40 horas de declarações quase sucessivas, todas no mesmo sentido, que acabaram com a do líder do PS e primeiro-ministro. Repetiram-se palavras como “vergonha”, “envergonhado”, “perplexo” e “inadmissível”, fosse a pergunta sobre Pinho ou incluísse também José Sócrates. Sempre com o condicional “a confirmar-se”.

A defesa socialista fez-se notar a partir de terça-feira, dia 1 de maio, com Fernando Medina a começar por condenar o silêncio de Manuel Pinho — havia de ser seguido nas horas seguintes por outros socialistas noutros locais. Mas se no início só se falava de Pinho, rapidamente o caso passou a casos de corrupção a envolverem outros governantes socialistas. Ou em duas palavras: José Sócrates.

Olhámos para as últimas horas e reunimos aqui as declarações mais importantes, onde é possível ver como se foram alinhando palavras e posições nos principais dirigentes do PS. Começou na condenação do silêncio de Pinho, passou ao ataque ao PSD que também tem casos na justiça, deu uma volta na admissão da “vergonha” se os factos se confirmarem (tanto no caso de Pinho como no de Sócrates), passou ainda pela garantia de que os políticos não são todos iguais. E só parou (por agora) noutro fuso horário, com António Costa a falar no Canadá.

1 de maio, 22h10. Na TVI 24, Fernando Medina dizia que “Manuel Pinho já devia ter respondido à pergunta sobre se ‘é verdade ou não’” que recebia dinheiro do BES.  E considerava a situação “muito prejudicial para a imagem dos políticos e da vida pública”: “A suspeita de que alguém no governo, com responsabilidades de ministro, foi pago por uma empresa privada é insustentável. É insustentável que ainda não tenha sido esclarecido e ainda é mais insustentável que se venha a provar que tenha acontecido”. Mas aqui a reação era apenas sobre Pinho.

2 de maio, 12h00. O mesmo Medina repetia, na Renascença, que “este silêncio e a forma como [Pinho] está a remeter explicações para depois do processo é perniciosa do ponto de vista político”. O presidente da Câmara de Lisboa evitou, no entanto, contágios ao PS, falando já em mais do que este caso concreto: “O que não aceito é a extrapolação política genérica sobre casos de corrupção”. Ainda assim, acrescentou que “devemos ser implacáveis do ponto de vista ético com quem está em altas funções públicas”: “O Ministério Público e as instâncias judiciais devem ser implacáveis na aferição da legalidade dos actos. Deve ser tão ou mais rigorosa quanto mais elevado o cargo de quem está na vida pública”. Com Paulo Rangel, nesse frente-a-frente na Renascença, a ligar os casos ao PS, o socialista ainda acrescentou que nos últimos anos houve  pessoas indiciadas e acusadas de todos os partidos políticos: “Não me passava pela cabeça vir acusar o PSD e extrapolar para os outros membros do partido ou até colegas de governo”. Não havia de ser o único a usar o mesmo argumento neste dia.

Fernando Medina: “O Ministério Público e as instâncias judiciais devem ser implacáveis”

13 horas. No programa da TSF “Almoços grátis”, Carlos César dava conta do incómodo dos socialistas face ao casos de corrupção que afetam o partido. “Ficamos entristecidos. Ficamos até enraivecidos com pessoas que se aproveitam dos partidos políticos, e designadamente do nosso, [para ter] comportamentos desta dimensão e desta natureza. Ficamos revoltados com tudo isto”. Falava do caso Pinho, mas quando foi questionado concretamente sobre Sócrates assumiu: “A vergonha até é maior porque era primeiro-ministro”. O flanco estava aberto.

Carlos César: PS tem ainda mais “vergonha” do caso José Sócrates. Mas horas depois apontou o dedo ao PSD

18h30. Na ilha Terceira, Carlos César voltou a ser confrontado com as declarações que tinha feito à TSF e que estavam já a marcar a atualidade política, pela referência clara a Sócrates. Não retirou o que disse à hora de almoço, mas acrescentou um aviso para o PSD. “O PS sente-se assim como os outros partidos se sentiram quando tiveram inúmeros casos ao longo destas décadas de democracia”. Os casos, assegura, são “transversais e mais frequentes nos partidos que exercem funções de poder e de Governo”: “É natural que tenham acontecido alguns casos com o PS , como também foram frequentes casos em que a responsabilidade era atribuída ao PSD”. E dizia ainda que os casos que surgem “constituem uma minoria”. “Era muito importante que os portugueses soubessem que os seus políticos são pessoas sérias”, argumentou.

Carlos César: “A vergonha até é maior porque era primeiro-ministro”

21h20. Na TVI24, a secretária-geral Adjunta do PS, Ana Catarina Mendes, era questionada por Luís Montenegro, do PSD, e admitia o desconforto com o “silêncio ensurdecedor de Manuel Pinho às acusações conhecidas”. E considerava que o ex-ministro de um Governo PS devia “responder já”. Também falou no “momento político com que estamos a ser confrontados”, para dizer que, “a ser verdade, é lamentável e envergonha-nos a todos”. Voltava às origens — “a justiça julgará o que tiver para julgar” –, mas logo a seguir regressava a Pinho para dizer que o ex-ministro “deve uma explicação ao país”.

21h30. Quase em simultâneo, o socialista João Galamba estava na SIC-Notícias, frente a Duarte Marques, do PSD, e o tema dos primeiros minutos de debate já foi além do caso Pinho e centrou-se sobretudo em José Sócrates. Tendo ascendido no partido no tempo do ex-líder socialista, Galamba foi confrontado com a frase de César da hora de almoço e admitiu que “obviamente é algo que envergonha qualquer socialista, sobretudo se as matérias de que é acusado se vierem a confirmar”. O deputado do PS defendeu que “estes casos se resolvem antes de mais na justiça”, mas voltava a admitir: “Agora, se me perguntam se fico satisfeito por um ex-secretário-geral do PS, que foi antigo primeiro-ministro, estar formalmente acusado, obviamente que não”. Também falou de Pinho, para dizer que os socialistas estão “sobretudo perplexos com a revelação pública de que houve um ministro de um governo socialista que recebia mensalmente verbas, quando disse publicamente que tinha cessado toda e qualquer ligação com o BES. (…) É um caso verdadeiramente insólito se for verdadeiro”.

22h40. Também na SIC-Notícias, Augusto Santos Silva era entrevistado e confrontado com o caso Pinho, dizendo que “as suspeitas são sobre comportamentos que, a terem existido, significam crimes gravíssimos”. Dizia também ouvir as notícias sobre o homem com quem se sentou na mesma mesa do Conselho de Ministros com “enorme perplexidade”, mas admitindo ter “prezado” o desempenho de Pinho na Economia. Depois acrescentava, de forma mais genérica, que “se se verificar que algum dos meus colegas cometeu um crime no exercício de funções sentir-me-ei enganado. E, mais importante que isso, sentiria que a confiança que as pessoas depositaram em fulano, beltrano e sicrano tinha sido traída”. Apesar de, sobre Sócrates, elogiar depois a “a forma exemplar” como reagiu “ao desenvolvimento do processo dizendo que era uma questão de justiça e não de política”.

23h05. O secretário de Estado da Energia, Jorge Seguro Sanches, arrancava a sua entrevista no Negócios da Semana, na SIC Notícias, logo com uma condenação: “A confirmar-se, são situações absolutamente inaceitáveis. O que esperamos é que haja esclarecimentos sobre estas questões que, a serem verdade, são absolutamente inaceitáveis”.

António Costa: “Se essas ilegalidades se vierem a confirmar, serão certamente uma desonra para a nossa democracia”

3 de maio, 18h00. António Costa era o socialista que faltava ouvir e falou a partir do Canadá, onde está numa visita oficial. Ao lado do primeiro-ministro Justin Trudeau, foi confrontado com os casos judiciais que envolvem o antigo ministro Manuel Pinho e o antigo líder socialista e disse muito mais do que naquele SMS de novembro de 2014. Quando Sócrates foi detido, Costa dirigiu-se aos socialistas nos seguintes termos: “Caras e caros camaradas, estamos todos por certo chocados com a notícia da detenção de José Sócrates. Os sentimentos de solidariedade e amizade pessoais não devem confundir a ação política do PS, que é essencial preservar, envolvendo o partido na apreciação de um processo que, como é próprio de um Estado de Direito, só à justiça cabe conduzir com plena independência, que respeitamos”. Agora, perante este mesmo caso (com acusação deduzida em outubro passado) e um novo (o de Pinho), António Costa mantém que “é preciso não confundir as questões no domínio da justiça com a política”. Mas já lhe acrescenta um decisivo “se”: “Se essas ilegalidades se vierem a confirmar, serão certamente uma desonra para a nossa democracia”.

Artigo atualizado à 1h20 com a informação sobre a saída de José Sócrates do PS na sequência das críticas de destacados dirigentes socialistas