José Sócrates escreveu uma carta ao PS e decidiu entregar o cartão de militante, deixando o partido depois de vários dirigentes socialistas — incluindo António Costa — terem assumido publicamente desconforto com o caso judicial que o envolve. Num artigo de opinião publicado na edição desta sexta-feira do Jornal de Notícias — a que dá o título de “A clarificação devida” — o ex-primeiro-ministro escreve que “é chegado o momento de pôr fim a este embaraço mútuo“, para justificar a sua decisão. Sócrates refere-se às várias declarações das últimas horas feitas por alguns socialistas ligados à atual direção do partido como “uma espécie de condenação sem julgamento”. Entre eles, Carlos César.

A referência ao presidente do partido e líder parlamentar socialista surge no final do artigo, num post scriptum onde anuncia a sua saída do partido. Em dois parágrafos, o ex-primeiro-ministro elenca as acusações de que é alvo e que diz serem falsas: como “a propriedade do dinheiro da Suíça, a propriedade do apartamento em Paris, sobre a PT, a Parque Escolar, e o TGV” ou mesmo “a relação de proximidade a Ricardo Salgado”. Uma lista de “abusos” e uma “campanha de difamação” que diz andar a suportar durante quatro anos, tempo ao longo do qual, lamenta, “não ouvi por parte da Direção do PS uma palavra de condenação destes abusos”.

É, primeiro, por esse silêncio e, agora, por essa espécie de “condenação sem julgamento”, que José Sócrates acusa a direção do PS de “injustiça” e de se aliar “à Direita política na tentativa de criminalizar uma governação.

Ultrapassa os limites do que é aceitável no convívio pessoal e político. Considero, por isso, ter chegado o momento de pôr fim a este embaraço mútuo. Enderecei hoje uma carta ao Partido Socialista pedindo a minha desfiliação do Partido. Pronto, a decisão está tomada.”

O artigo de opinião — que Sócrates assina como “ex-primeiro-ministro” — começa, porém, por sair em defesa de Manuel Pinho, que foi seu ministro na pasta da Economia, e de quem diz ser “amigo” e “uma pessoa que considero e estimo”. Sobre as suspeitas que pendem sobre Pinho, diz que quer “recordar o que devia ser óbvio: não é o próprio que tem de se defender ou de provar que é honesto ou inocente; é quem acusa que tem o dever de provar o que diz. Estranhos tempos estes em que lembrar o princípio estrutural do Direito moderno, a presunção de inocência, se confunde com a defesa seja de quem for”, ironiza.

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Tenho Manuel Pinho por um homem honesto e incapaz de uma coisa dessas, tal como é descrita – receber um vencimento privado enquanto exercia funções públicas. Por essa razão recuso-me sequer a discutir hipóteses que para mim são inadmissíveis, sem que o Estado, que o afirma, prove o que está a dizer.”

A segunda referência pessoal vai para Ricardo Salgado de quem diz não fazer parte do seu grupo de amigos ou dos seus círculos sociais. Aliás, recorda, “a primeira vez que me encontrei com o dr. Ricardo Salgado desde que fui eleito líder do PS foi no dia 13 outubro de 2006, conforme registado na secretaria da Residência Oficial do Primeiro-Ministro”.

Além disso, reforça, considera uma “ignóbil intrujice” a ideia de que tenha sido o banqueiro a sugerir o nome de Pinho para o Governo. Uma “mentira há muito tempo disseminada pelo Ministério Público e convenientemente divulgada por jornalistas, que nenhum esforço fazem para verificar a sua veracidade”. Na verdade, recorda, foi Ferro Rodrigues, atual presidente da Assembleia da República, que o nome de Manuel Pinho lhe chegou. “A escolha que fiz de Manuel Pinho como porta-voz do PS para a área da economia, e mais tarde para o Governo, aconteceu naturalmente na decorrência da colaboração que este há muito prestava, na condição de independente, ao PS, como conselheiro económico do então líder Ferro Rodrigues. Foi aí, nessa condição de membro do chamado grupo económico da Lapa (por reunir regularmente no Hotel da Lapa), que o conheci e que desenvolvemos um trabalho comum que viria a culminar no convite que lhe fiz”:

Críticas, silêncios e vergonha: as últimas horas

O atual secretário-geral do partido, António Costa, foi esta quinta-feira confrontado com os dois casos judiciais que envolvem antigos governantes do partido (o ex-primeiro-ministro Sócrates e o antigo ministro da Economia Manuel Pinho) e disse que “se essas ilegalidades se vierem a confirmar, serão certamente uma desonra para a nossa democracia”. Antes de Costa, também o presidente do PS, Carlos César, tinha admitido que o partido sentia “vergonha” com estes casos de justiça, mas perante a situação de Sócrates dizia mesmo que “a vergonha até é maior porque era primeiro-ministro”.

As 42 horas de críticas que fizeram Sócrates deixar o PS

Além disso, também João Galamba, porta-voz do partido, veio dizer que a situação dos ex-governantes “certamente envergonha qualquer socialista”. Nas últimas horas, foram vários os altos dirigentes do partido a assumirem posições públicas perante os casos de Sócrates e Pinho diferentes das que tinham sido tomadas até hoje.

José Sócrates entrou para o PS em 1981, foi líder da federação socialista de Castelo Branco três anos depois e chegou a deputado pelo partido em 1987, era líder Vítor Constâncio. Mas foi na liderança de António Guterres que Sócrates ganhou relevo no partido, integrando pela primeira vez um Governo quando era Guterres o primeiro-ministro. Foi em 1995 que foi secretário de Estado do Ambiente, passando depois para ministro Adjunto do primeiro-ministro. No segundo Governo de António Guterres (1999-2002), o socialista chegou a ser ministro do Ambiente e, mesmo na reta final deste Executivo, ainda foi ministro do Equipamento.

[Veja como as críticas a Sócrates se intensificaram na quarta-feira, dia 2 de maio]

Anos depois, em 2004, candidatou-se à liderança socialista, derrotando Manuel Alegre e João Soares. Dois meses depois de assumir a liderança do partido, o Governo de Santana Lopes é demitido e o Presidente Jorge Sampaio convoca novas legislativas. Sócrates candidata-se e vence com a primeira e única maioria absoluta da história do PS. Sai do Governo em 2011, na sequência do chumbo de medidas adicionais ao Programa de Estabilidade e Crescimento e com o país à beira de um pedido de resgate financeiro.

Em novembro de 2014 é detido no âmbito da Operação Marquês, uma investigação judicial ao ex-primeiro-ministro por suspeitas de corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal. Na sequência do inquérito, José Sócrates foi acusado de 31 crimes em outubro passado, mas só agora — depois de surgir mais um caso a envolver outro membro do seu primeiro Governo — o PS disse mais sobre o assunto do que remeter para a justiça um tema que dizia ser da justiça.