A determinada altura da entrevista ao Expresso (conteúdo fechado), Bruno de Carvalho quase que para e tem uma espécie de desabafo, até num contexto em que o Sporting acaba de ganhar o Campeonato de voleibol, de andebol e de futebol feminino. “Não acha estranho só sermos burros no futebol? Conseguimos ser campeões em todas as modalidades menos no futebol… Sénior masculino, porque no feminino também já fomos. Falta-nos esse neurónio no futebol masculino, deve ser isso…”, atirou de forma irónica. A resposta tem como contexto a questão dos emails mas acaba por entroncar em dois pontos mais latos: o estado do futebol português e a relação com os rivais.

“A polícia pode de uma vez por todas mudar a sociedade. Se me perguntar se acho que é verdade, digo, enquanto cidadão, que é verdade. São muitos sinais: vouchers, emails, e-toupeira. Se isso resultar em nada, as pessoas não vão gostar. O ‘Apito Dourado’ teve um problema: não havia redes sociais. Podem ser uma forma de estupidificação das massas, mas também são um lugar onde tudo aparece, onde tudo é escrutinado. Se fosse agora, o resultado seria outro. Se acho que perdi algum título por causa disso? Acho que isso aconteceu no Campeonato 2015/16″, comentou antes de refletir sobre um dos pontos apontados (agora, cinco anos depois) como erro estratégico no início do mandato – a “guerra” com o FC Porto, passando um pouco ao lado do outro rival Benfica.

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“Quando cheguei ao futebol, achava que o poder estava num lado e, afinal, estava noutro. Facilmente percebi isso, que o Benfica tinha o poder. Agora, podia puxar dos galões e dizer que, enquanto estive em guerra aberta, fiquei sempre à frente do FC Porto”, salientou, acrescentando, a propósito das razões que motivaram os cortes de relações: “Os problemas que tive com o FC Porto foram centrados em mim. No Benfica, já se ultrapassou tudo o que era razoável. Já houve situações em que a minha morada privada foi revelada publicamente…”.

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Em paralelo, o líder leonino recordou também um encontro na garagem da Liga com o homólogo dos encarnados, Luís Filipe Vieira. “Foi numa reunião que se fez na Liga quando eles estavam a querer expulsar o Mário Figueiredo. É na época 2013/14. E depois acabei eu a levar um processo. Ele disse-me isto [um acordo em que ora ganhava ele, ora ganhava eu] e eu respondi: ‘Espere aí um bocado que vou à casa de banho’. Depois saio, vou para a porta principal da Liga e liguei ao motorista a dizer para me ir buscar que não queria aturar mais aquele tipo. O homem entrou no carro e tentou convencer o motorista a convencer-me. Já disse isto e fui processado”, relembrou.

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Em relação ao futebol, o presidente verde e branco escalpelizou também a “crise” institucional resultante de uma publicação na sua página oficial do Facebook (entretanto apagada), mantendo a posição de força em relação às linhas gerais de toda essa novela e falando pela primeira vez de forma aberta sobre o seu treinador, Jorge Jesus, o único elemento do plantel de futebol que lhe enviou uma mensagem após o nascimento da filha Leonor. “Mas recebi de todas as outras modalidades”, ressalvou Bruno de Carvalho.

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“As críticas fazem parte e os jogadores vivem numa bolha (…) Há uma superproteção dos jogadores e eles com muita facilidade vão para um patamar de total incoerência. Se calhar os jogadores teriam outro comportamento em campo se não fosse essa teoria absolutamente mirabolante de que são um mundo à parte que tem de ser altamente protegido. Para caminharmos todos juntos, tem de haver um contacto que [não existe porque] os treinadores e os jogadores portugueses não têm essa cultura. Se voltaria a escrever aquele post dos mimados? Não, até porque apaguei a página do Facebook. Arrependido? Não é uma questão de arrependimento”, referiu, completando: “Não procuro o amor dos jogadores, porque o meu dever é defender por um lado os interesses do clube e, por outro, gerir as emoções dos futebolistas. Se ficou combinado que nos iríamos reunir no dia seguinte, porque é que escreveram aquele post? Obviamente não me senti bem com aquilo. Precipitei-me mas não fui o único (…) A relação é esta: há uma hierarquia que tem de ser respeitada e um líder que tem de dizer às vezes que não”.

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“Uma pergunta mais inteligente seria: quem é o líder do balneário? Então acha que um treinador permitiria que os jogadores fizessem aquilo que se escreveu ao seu presidente? Que os jogadores tinham virado as costas ao presidente, que se tinham recusado a treinar, e por aí fora. Só pode ser invenção da comunicação social, não é? Porque se fosse verdade era gravíssimo. Tem tudo de ser invenções, não é? Porque senão era mau sinal haver um líder de balneário assim. E o líder de balneário é o treinador (…) Se geriu bem todo esse processo? Partindo do princípio de que é tudo mentira, menos o post, sim, geriu bem”, comentou sobre o técnico leonino. “Você acredita que alguma coisa acontece no balneário sem o OK do líder? Um líder lidera. Imagine que no meu Conselho de Administração acontecia uma série de coisas e atitudes para as quais eu não tinha dado o meu OK. Se isso acontecesse, eu não era líder algum”, rematou, confirmando ainda que ambos estão a preparar a próxima época.

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Numa perspetiva mais pessoal e enquanto líder, Bruno de Carvalho recordou alguns episódios do tio-avô Pinheiro de Azevedo e explicou o que faz dele uma espécie de presidente do futuro. “‘Vou ensinar-te uma coisa: para ter sucesso, a primeira coisa a fazer é criar fama de maluco. Depois, é só mantê-la’. É essa a minha estratégia de comunicação. 100% eficaz e eficiente”, referiu, no seguimento de uma conversa do então primeiro-ministro com a sua mãe, sobre a questão de Portugal servir de ponte aérea entre Angola e Cuba. “O tipo de presidente que sou, o presidente-adepto, é o presidente do futuro. Temos de trazer pessoas sérias para o futebol – e sério sou eu (…) Sou popular, sou um exemplo de vida: tive um sonho, lutei e ganhei, quando era chamado nas primeiras eleições o ‘homem um por cento’ (…) Aprendi que temos de representar um papel nos determinados contextos em que estamos (…) Sou realmente diferente, têm de perceber isto: não tenho negócios nem negociatas, não quero mais nada do que ser presidente do Sporting. Sou uma ilha deserta linda de morrer no meio de um oceano num planeta de um só continente onde toda a gente se conhece”, concluiu.

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