Não podiam ser mais diferentes, Zinédine e Jürgen.

Hoje como treinadores (ambos vencedores, é certo, mas bem diferentes no “estilo”: Zinédine é pacatez, quase um monge tibetano no banco; Jürgen é “hard rock”, emotivo, quase irascível) e, antes mesmo de o serem, enquanto jogadores. Aqui traçamos o perfil de um génio dos relvados que se tornaria (passada a desconfiança do começo) num treinador vencedor e especialista em vencer na Champions. Mas também o de um futebolista banalíssimo que conquistou o banco a pulso enquanto treinador, porque o que importa, diz, é a atitude e não o talento.

Jürgen Klopp

A influência do “impiedoso” pai Norbert (ou como um mau jogador se transforma num treinador de topo)

A história da emotividade de Jürgen no relvado, junto ao banco, até de um certo desalinho em relação ao que é politicante correto, é “culpa” (ou melhor: influência, só influência sem culpas) de Norbert, seu pai. Norbert sonhava ser jogador de futebol, um dia guarda-redes da Mannschaft como o ídolo Sepp Maier, e chegaria na adolescência a fazer captações no Kaiserslautern. Mas acabaria por nunca o ser, trabalhando a vida inteira como agente de viagens.

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Norbert sonhava também em ter um filho rapaz. E sonhava que o seu rapaz se tornasse naquilo que nunca se tornou nem por sonhos: futebolista profissional. Antes mesmo de Jürgen nascer, nasceram duas raparigas. Mas logo que o filho varão surgiu foi educado para o desporto, não só para o praticar por… “desporto”; foi educado para triunfar, acima de tudo e todos. O pai era pronto na crítica, incapaz do elogio, confessou em entrevista Jürgen. No inverno, por exemplo, levava-o a esquiar, no verão era ténis que jogavam, durante todo o ano o futebol era o desporto predileto dos Klopp. Norbert não ensinava Jürgen: competia com ele. E vencia-o sempre. “Ele era impiedoso. Quando íamos esquiar, só lhe via o anorak vermelho à minha frente. Ele não esperava por mim. Não importava se era um iniciante. Tinha que ser perfeito”, contou Jürgen ao semanário Die Zeit, em 2009.

Jürgen nasceu em Estugarda. Era, como tal, um fanático do clube local, tendo como ídolo Karlheinz Förster, um defesa central, internacional pela Mannschaft e campeão europeu em 1980. Não, não é habitual que um miúdo admire um central enquanto miúdo, mais a mais um matulão, duro de rins, incapaz de um drible sem tropeçar. Porquê Förster? “A atitude, pelo menos para mim, é bem mais importante do que o talento”, explicou noutra entrevista.

Jürgen Klopp, nos idos do Mainz. Começou como avançado, acabou defesa e, após o final da carreira, treinador

Jürgen tornou-se mesmo futebolista. Avançado. Algo tosco com bola mas bom cabeceador e de remate sempre (e sem perto nem longe) pronto. E ostentava, naquela década de oitenta, uma invejável bigodaça, farta e ruça, na senda das melhores pilosidades supralabiais de Rudi Völler ou Bernd Schuster. O começo foi enquanto amador, num clube não muito longe da sua Estugarda natal: o Ergenzingen. Então, e para ganhar a vida, trabalhava como lojista num clube de vídeo. A profissionalização de Jürgen chegou em 1989, quando o Mainz lhe propôs um contrato mensal de 2.300 marcos. Entre a chegada e a partida, então já não jogador mas treinador do Mainz, passaram 19 anos de dedicação. Ininterruptos. Os primeiros, como jogador, Jürgen viveu-os sempre, sempre na Bundesliga secundária. Viveu alegrias, é certo. Mas igualmente um tristeza sem fim.

11 de junho, o ano que corre é o de 1997. Quarta-feira à tarde. Solarenga quarta. Era a derradeira jornada. Quem vencesse, Mainz ou Wolfsburg, ascenderia à primeira divisão. Os segundos venceram, num encontro impróprio para cardíacos: 5-4. Jürgen até marcou um golito — ele que enquanto avançado até era propenso à “seca”. Mas acabou por estar diretamente implicado, com uma perda de bola à entrada da sua grande área, num golo do Wolfsburg. O Mainz nunca subiu de divisão enquanto Jürgen foi jogador. Ele arrumou as chuteiras em 2001, então já não avançado mas defesa (foi recuando e recuando ao longo da carreira) como o ídolo Förster. Em fevereiro, na véspera de um jogo fora, o treinador Eckhard Krautzun foi afastado. O diretor do futebol do Mainz, Christian Heidel, reuniu-se de emergência com o plantel no hotel da concentração. Não havia treinador ainda. E agora? Jürgen nem precisou de falar; todos o apontaram de imediato como o treinador para esse encontro — à época já ele se decidira a ser treinador, frequentando semanalmente, em Colónia, um curso para o vir ser.

Continuaria como treinador na época seguinte. E na seguinte. E na seguinte. Sete temporadas ao todo. Os resultados começaram a melhorar depressa. Nas primeiras duas épocas bateu à porta da Bundesliga. À terceira foi de vez e levou mesmo o Mainz à primeira divisão. Grande parte do estilo enquanto treinador, um trabalhador, dedicado e persistente, perfecionista — sobretudo perfecionista: chega a passar seis horas por dia a visionar a repetição dos encontros dos adversário seguintes –, Jürgen herdou-o de Norbert Klopp. Enquanto treinador, e olhando ao futebol jogado e não propriamente à personalidade, a maior influência é Wolfgang Frank, outrora seu treinador no Mainz. A pressão alta, altíssima, a organização (quase coreografada) da defesa, o uso (e abuso; chega a ser vertiginoso de se ver) do ataque pelos flancos, tudo aprendeu, jura, com Wolfgang.

Na manhã de 23 de maio, em 2008, Jürgen deixou o Mainz e assinou pelo Dortmund. Lá ganharia duas vezes o campeonato da Alemanha, seguindo depois, sete temporadas depois, para o Liverpool. Mas antes mesmo de se começar a trabalhar em Dortmund, Jürgen despediu-se dos adeptos do clube que não era de sempre mas se fez de sempre, o Mainz. Lá, na Coface Arena, esperavam-no milhares e milhares, diz-se que 34 mil, a lotação máxima, emocionados. Jürgen fez então uma promessa: nunca se ligaria tão emocionalmente a nenhum outro clube. Os adeptos do Dormund (que não tornou a vencer a Bundesliga depois da sua saída) não o esquecem. Os do Liverpool, se este domingo vencer a Champions, a sexta na história do clube, também não o vão esquecer.

Zinédine Zidane

“Travail, travail, travail”, ensinou-lhe o entraîneur Toni. Mas Zidane era (e é) classe, classe, classe

A ascendência de Zinédine é argelina. O mais novo de cinco filhos, Zinédine cresceu em La Castellane, nos subúrbios de Marselha. A criminalidade imperava em La Castellane. Mas Zinédine escolheu, cedo, bem cedo, o próprio destino: ser futebolista profissional. E passava dias e dias, até ser já de noite, a alisar a borracha à sola das sapatilhas na Place Tartane. Queria trocar aquela place da infância por  relvados, ou pelados, ou quaisquer campos limitados por marcas de cal, não importava, e o primeiro clube de Zinédine foi o modesto Victório Mello, seguindo-se o também modesto Septèmes-les-Vallons. Deu nas vistas.

Com imberbes 14 anos foi fazer captações ao Cannes. A captação de Zinédine deveria ter a duração de seis semanas, até o treinador decidir se ficava ou não. Mas volvido o primeiro treino o contrato estava já em cima da mesa. Ao fim de três anos estreou-se nos seniores, frente ao Nantes. Estávamos a 20 de maio de 1989. A penúltima jornada do campeonato. O primeiro golo tardou. Foi só a 10 de fevereiro de 1991, curiosamente também defrontando o Nantes. O seu Cannes venceu 2-1. E o presidente do clube de então, Alain Pedretti, ofereceu-lhe de presente um carro, um modesto Renault Clio, de um encarnado vivo. A despedida de Cannes aconteceria em 1991/92, temporada em que clube desceu à segunda divisão. O Bordéus pagou então sete milhões de euros pela contratação de Zinédine.

Zinédine Zidane era já um dos melhores. Mas a vitória no França 98 elevou-o ao “Olimpo” do futebol

Na terceira temporada em Bordéus foi treinado pelo português Toni. Estávamos em 1994. “Eu dizia-lhe, no Bordéus, que havia três palavras para chegar ao sucesso: trabalho, trabalho, trabalho”, contou o treinador ao Observador em 2016, aquando da apresentação de Zinédine como treinador principal do Real Madrid. Curiosamente, nessa apresentação, a palavra mais repetida por Zinédine foi “trabalho” — o francês deu-lhe uso 14 vezes. “A última vez que estive com ele foi há quatro ou cinco anos, num jogo contra a pobreza, no Estádio da Luz. Fui lá ao hotel onde estavam e o Dugarry [que jogou com Zinédine no Bordéus de Toni], quando me viu disse logo ‘travail, travail, travail!’; eu respondi ‘estás a ver, não te esqueceste!’”, lembrou.

Mas quem era, afinal, Zinédine, então com 21 anos? “Era introvertido. E com essa idade não projetamos o futuro. O Zidane era um jogador que tinha já uma técnica fabulosa. Nunca pensei que seria três vezes o melhor jogador do mundo. Nem ele pensaria em treinar o Real Madrid! Quando eu lá cheguei, ao Bordéus, o presidente disse-me que o Zidane só durava 60 minutos. Eu estava com o Jesualdo [Ferreira, o adjunto] e disse que os jogadores de classe não duram 60 minutos, duram 90.” E duraria.

Em 1996/97,  Zinédine trocou o Bordéus pela Juventus. Tinha meia Europa à perna, depois de deslumbrar (ainda que sem o caneco que só venceria em 2000) no Euro 96. Mas antes mesmo da Juventus de Marcello Lippi (talvez, a par de Carlo Ancelotti, o treinador que mais influenciou o Zinédine treinador) também o Blackburn Rovers, de Inglaterra, o pretendia. Ou melhor, pretendia-o o treinador Ray Harford. O presidente, Jack Walker, negou a Harford a vontade: “Para quê contratá-lo quando temos o Tim Sherwood?”, respondeu.

Foi para a Juventus e conquistou tudo o que havia para conquistar em Itália. Trocou depois, já campeão da Europa e do Mundo, já com um par de Ballon D´Or ganhos, a Juventus pelo Real Madrid. Um “galático” mais a vestir de branco, no Verão de 2001 e a troco de 76 milhões de euros, que o tornaram, naquele momento, no futebolista mais caro da história. No Real ganhou a Liga dos Campeões como jogador e o golo que marcou ao Leverkusen na final do Hampden Park, em Glasgow, no ano de 2002, foi talvez o melhor de sempre na história das finais. Venceu outras duas como treinador (cargo que assumiu em 2015/16 depois de ter sido quase tudo no Real: diretor, adjunto de Ancelotti e treinador do Castilla, equipa secundária dos madrilenos) e pode este sábado alcançar a terceira, tornando-se o primeiro treinador na história a conquistá-la em três temporadas consecutivas.

Não há muito a dizer sobre o Zinédine jogador. Quem viu, viu. Quem não, que reveja. E reveja, reveja, reveja. Poucos houve com a classe, a técnica, mestria e visão de Zinédine. Talvez ninguém. A inspiração foi o uruguaio Francescoli, Enzo Francescoli — o filho mais velho de Zinédine chama-se precisamente Enzo, em homenagem ao ídolo do seu pai. Francescoli passou por Marselha, cidade (e emblema da infância) de Zinédine apenas uma época (1989/90) mas foi o que bastou para despertar a atenção do aspirante a futebolista. E Zinédine tentava replicar os gestos do ídolo. “Nunca o tinha visto ao pé de mim, só da bancada e ele no relvado. Morreria se o conhecesse. Ele, para mim, é… bufff!”, confidenciou algures na década de 1990. E prosseguiu: “Sim, tentava copiar tudo, tudo, tudo. O que ele fazia em campo, eu queria sê-lo também.”

Conheceram-se em 1996. E ninguém morreu. Juventus e River Plate disputavam o título de campeão mundial de clubes, a Intercontinental. Os italianos venceram 1-0, com um golo de Del Piero, mas o que aconteceu a seguir é que foi realmente importante para Zinédine, mais até do que a conquista do troféu. “Ele deu-me a sua camisola, era para o meu filho mais velho, o Enzo. Ele dormiu com ela…”, contou. Anos mais tarde, Francescoli sentenciou que o “aluno era superior ao mestre, por tudo o que conquistou”.

Hoje Zinédine, o treinador Zinédine, é absolutamente sereno. Impenetrável. Não se lhe ouve um grito que seja. Não esbraceja. Não esperneia. Raramente se manifesta. O topo da manifestação teve-o no golo acrobático de Cristiano Ronaldo à Juventus esta temporada — mas mesmo aí só esboçou um sorriso incrédulo com tal preciosidade futebolística e esfregando a careca por instantes.

Mudou. Como jogador, e lembre-se a final do Mundial 2006, Mundial da sua despedida inglória, por vezes até perdia a cabeça. Lá, na Alemanha, agrediu à cabeçada o italiano Marco Materazzi na final. Foi a última vez. Mas não a primeira. Toni recordou ao Observador um episódio de Bordéus. “Lembro-me que num jogo com o Saint-Étienne houve uma confusão entre um polaco e o Zidane. Houve agressões mútuas, o Zidane apanhou e respondeu. Conclusão: o árbitro expulsou o polaco e o jogo prosseguiu. Estávamos a ganhar 1-0, mas acabámos por perder, com um golo quase no fim do Laurent Blanc.” A história continua: “Na segunda-feira foram chamados à comissão de disciplina, em Paris. O Sénac, o Zidane, o Lizarazu, o Dugarry e o diretor desportivo, o Battiston. Fiquei logo sem as barras de ouro! O Sénac apanhou três meses, o Dugarry levou quatro jogos, o Lizarazu também, e o Zidane, com uma coleira ao pescoço — por causa da agressão do polaco –, ficou um mês parado”.

A final da Liga dos Campeões disputa-se este sábado, às 19:45, no Olimpiyskyi National Sports Complex, em Kiev, na Ucrânia.