[Artigo originalmente publicado em junho de 2018 e atualizado no dia 30 de janeiro de 2020]
Existe uma princesa Disney das Arábias, que voa com um tapete. Existe uma princesa índia, que vive numa tribo nativa americana. Até há uma princesa Disney que é metade peixe e que tem o seu reino de sereia submerso. E depois há uma princesa Disney, ainda que oficiosa, que tem mais de 24 tatuagens, que luta contra a dependência de drogas e que preferiu entregar a coroa e conquistar o seu próprio reinado pop.
Claro que Demi Lovato não é uma princesa Disney na linha de Cinderela, Branca de Neve ou Aurora, a Bela Adormecida. Mas foi com a Disney, num filme com mais de dez anos, que lançou a sua carreira, ao ser a protagonista de “Camp Rock”, ao lado dos irmãos Jonas, aí sim, uma espécie de gata borralheira do campo de férias, a filha da cozinheira que afinal sabia cantar melhor do que todos. Se “This is Me”, a canção do filme, entrou em todos os tops, Demi Lovato passou a partir de então a fazer parte da linha de princesas pop adolescentes da Disney, ao lado de Miley Cyrus ou Selena Gomez (e até, muito antes delas, Britney Spears ou Christina Aguilera).
Mas Demi Lovato é muito mais complexa do que qualquer princesa encantada. Os últimos dois anos foram absolutamente catastróficos na vida da cantora. Depois de uma recaída, algures entre março e junho de 2018, sofreu uma overdose que poderia ter sido mortal. Aparentemente reabilitada, Demi renasceu das cinzas. Fala de novas músicas, entre elas o tema “Anyone”, sobre como reaprendeu a olhar para o próprio corpo, sobre bullying e sobre ultrapassar obstáculos todos os dias. Há uma semana, impressionou com uma atuação arrebatadora nos Grammys, depois de quase dois anos afastada dos palcos. O próximo será o do Super Bowl, onde entoará o hino nacional dos Estados Unidos, já este domingo.
A história começou com um dinossauro
Não passou muito tempo deste que Demi Lovato nasceu, em Agosto de 1992, até começar a ter uma carreira artística – o que faz sentido, tendo em conta que o salto para a fama já referido com “Camp Rock” aconteceu quando a actriz-cantora tinha apenas 15 anos. Ainda em Albuquerque, New Mexico, e sendo filha de uma cheerleader dos Dallas Cowboys e de um músico, começou a participar em concursos de beleza, e foi aí que percebeu pela primeira vez que gostava de cantar.
O pai andava distante, e acabou por ser, como Demi Lovato assumiu mais tarde, uma fonte constante de sofrimento. Afinal, também ele levou uma vida de dependência e de confronto com doenças mentais, acabando por morrer cedo. O divórcio tinha acontecido quando Lovato ainda tinha dois anos, e por isso cresceu no gineceu familiar composto pela mãe e pela irmã. E, mais tarde, pelo padrasto, que hoje reconhece como pai, e pela meia-irmã, que é a atriz Madison de La Garza (mais conhecida por fazer de filha de Eva Longoria em Donas de Casa Desesperadas).
Juntas, as mulheres da casa foram-se apoiando, mesmo quando Demi Lovato começou a ser vítima de bullying e decidiu completar os estudos em casa. A mãe percebeu o quanto ela queria ser cantora quando a viu, muito pequena, ainda na escola, a cantar num palco uma música de Celine Dion sem qualquer medo. E depois de muitas audições e muitas recusas, e ainda muito antes de entrar pelas portas da Disney e de começar a estudar música e a apostar em aulas de voz, arranjou o primeiro emprego antes dos dez, e passou a ser Angela, uma das meninas de “Barney & Friends”, um dinossauro muito popular entre as séries infantis e que também teve Selena Gomez no elenco. O resto, como agora se sabe, veio por arrasto, mas não foi tão simples como parece.
Reabilitação: a tempestade antes da calma
Há um documentário de 2017, feito pelo You Tube, sobre a vida de Demi Lovato, que se chama “Simply Complicated” (“Simplesmente Complicado”). Num dos primeiros registos da longa entrevista que acompanha os vários testemunhos recolhidos e os diferentes momentos da sua carreira, começa logo por dizer:
Tenho estado ansiosa por causa desta conversa. Da última vez que dei uma entrevista assim sobre a minha vida estava sob o efeito de cocaína.”
A outra entrevista a que se refere é a do documentário da MTV, também sobre a sua vida, chamado “Stay Strong” (“Permanece Forte”). Tinha sido feito uns anos antes, quando já tinha passado por uma clínica de reabilitação, e por essa altura toda a gente achava que já estava recuperada. Não estava. E agora sim, tinha chegado à fase em que já tinha deixado de ter medo de falar abertamente sobre estas questões, uma atitude que assume até hoje, para ajudar a quebrar tabus, e que lhe tem valido o reconhecimento da crítica e do público.
Mas como é que a menina de “Barney & Friends”, a suposta princesa adolescente que fez com a Disney, além do franchising de “Camp Rock”, uma série juvenil de sucesso chamada “Sonny with a Chance” e várias tournées musicais, e já com dois discos gravados, acabou internada numa clínica de reabilitação aos 18 anos depois de ter dado um murro a uma das dançarinas da sua equipa? E não apenas por um motivo: álcool, cocaína, bulimia, auto-mutilação e doença bipolar fazem parte da lista do diagnóstico. Talvez por isso mesmo – por tudo ter acontecido demasiado cedo, demasiado rápido, e com demasiado impacto. Perdeu-se uma princesa adolescente pelo caminho, mas ganhou-se uma mulher mais consciente de si e menos preocupada com a obrigação de agradar toda a gente e conseguir sempre o melhor lugar nos tops.
“Let it go”, ou mais vale deixar andar
A Demi Lovato de hoje, a que se libertou da máquina cor-de-rosa da Disney e seguiu uma carreira a solo como cantora pop, é a dos últimos quatro álbuns — Unbroken (2011), Demi (2013), Confident (2015) e Tell Me You Love Me (2017) — e a que assumiu uma atitude destemida (ou fearless) em temas como “Sorry Not Sorry”, “Confident”, “HeartAttack” ou “Cool for the Summer”. Batidas enérgicas e dançantes que lhe permitiram expor as suas habilidades vocais e, através dos videoclipes, construir uma Demi sensual, sexual até.
Mas esta Demi Lovato é também aquela que aceitou ser jurada do Factor X norte-americano e angariou a empatia do público, tanto pela personalidade esfuziante como pelo ar de ícone da moda pop-rock na linha de Gwen Stefani (casacos de cabedal, eyeliner, franja colorida…). A que alinha sempre nas brincadeiras de programas como “Saturday Night Live” ou nas rubricas de James Corden, e consegue brincar com a amizade antiga que ainda mantém com os irmãos Jonas.
A amizade com Selena Gomez, que era a mais antiga – desde os tempos de “Barney & Friends” – e foi uma das mais importantes da sua vida pode ter terminado terminou. Ainda assim, Gomez foi uma das primeiras a reagir à atuação de janeiro deste ano, através do Instagram:
Quem me dera que houvesse palavras para descrever o quão bonito, inspirador e merecido foi este momento. Demi, estou tão feliz por ti. Obrigado pela tua coragem e bravura.”
Esta Demi Lovato foi também a que assumiu em 2018 que já se deixou de dietas e a que parece ter adotado uma sinceridade genuína na comunicação com os seus seguidores, sobretudo no Twitter. Em 2013, voltou a juntar-se à Disney, desta vez para dar voz a uma princesa, com a canção “Let it go” de Frozen, que a pôs de novo no mapa de todas as crianças, e logo com uma música que diz que mais vale deixar andar do que tentar agradar.
Logo depois, Lovato mergulhou a fundo no pop e chegou mesmo a explorar os ritmos mais latinos, caso do tema “Échame la culpa”, lançado em 2017 com Luis Fonsi. Continua a debater-se com os seus fantasmas, claro, mas já não tem medo de os assumir. Mas é também por isso que os “Lovatics” (o nome adotado pelos seus fãs) gostam cada vez mais dela. Durante anos, a estratégia de Demi para resistir às suas dependências foi bem sucedida. Em março de 2018, a cantora assinalou seis anos de sobriedade no Twitter:
Hoje é um dia muito especial para mim… Estou oficialmente a celebrar seis anos de sobriedade! Estou muito grata à minha família, amigos e @castcenters por fazerem parte da minha caminhada. Grande parte da minha recuperação foi aprender a amar-me e a retribuir.”
O ano negro e o regresso aos palcos
Mas Lovato não conseguiria resistir aos vícios durante muito mais tempo. Pisou um palco português uma única vez até à data. Foi a 24 de junho de 2018 que o nome da cantora natural de Albuquerque, no Novo México, se juntou aos de Anitta e Bruno Mars no cartaz do Rock in Rio. Para os aficionados, a noite foi de êxtase. Durante o concerto, correu toda a sua discografia e usou a balada “Sober” para pedir desculpa aos fãs por “já não estar sóbria”. As redes sociais responderam em massa. Em resposta ao desabafo da cantora nasceu o hashtag #HowDemiHasHelpedMe (como é que a Demi de ajudou), com testemunhos de como a história de Demi tinha sido inspirador.
O discurso pesaroso, quase que a implorar por apoio incondicional e por calor humano, era afinal um alerta de que, muito provavelmente, a recaída da cantora poderia ter um desfecho dramático. Foi o que aconteceu, cerca de um mês depois de ter atuado em Lisboa. Na madrugada de 24 de julho, com 25 anos, Demi Lovato dava entrada num hospital em Los Angeles, na sequência de uma overdose. Embora as primeiras notícias apontassem para o consumo excessivo de heroína, o agente da cantora apressou-se a desmentir, não revelando, no entanto, qual a droga em questão.
O estado de saúde da cantora estabilizou rapidamente, embora, uma semana depois, fontes próximas de Demi tenham acusado complicações, tais como náuseas, vómitos e febres altas. No hospital, foi visitada pela família, mas também pelo ator Wilmer Valderrama, seu ex-namorado. As primeiras palavras de Lovato chegaram via redes sociais, mais especificamente pela conta pessoal do Instagram, quando Lovato deixou o hospital e deu entrada numa clínica de reabilitação, ainda no início de agosto:
Sempre fui transparente em relação à minha dependência“, escreveu numa mensagem divulgada na conta pessoal do Instagram. “Aprendi que a minha doença não é algo que desapareça ou desvaneça com o tempo. É algo que tenho de continuar a superar, algo que ainda não fiz.”
Mas foi preciso esperar mais uma semana para conhecer a verdadeira substância por detrás da overdose — teria sido uma mistura de fentanil e oxicodona, 50 vezes mais potente do que a heroína e responsável pela morte de Prince, em abril de 2016. O dealer da cantora terá fugido quando percebeu que esta tinha deixado de respirar.
Retirada dos holofotes durante meses, Demi Lovato retornou subtilmente. Ainda no final de 2018, menos de quatro meses após ter sido internada de urgência, publicou uma fotografia em que surgia numa mesa de voto. O objetivo era mobilizar os seus fãs e seguidores para terem um papel ativo nas eleições intercalares dos Estados Unidos. Em agosto, a cantora, compositora e atriz era confirmada no elenco de uma produção de Will Ferrell para a Netflix sobre a Eurovisão. Brincou ao Halloween e dias depois participava numa conferência organizada pela revista Teen Vogue, onde prometeu novas músicas e falou da sua relação com o próprio corpo:
Acho que tem sido um ano de muito introspeção para mim. Aprendi muito, passei por muito. Durante muitos anos, lidei com um distúrbio alimentar […] Aceitar o meu corpo como ele é naturalmente foi a razão pela qual deixem de ir ao ginásio durante o mês de outubro inteiro […] O que as pessoas ainda não perceberam é que sou extremamente sensível. Quando alguém diz algo cruel sobre mim ou faz um meme a gozar comigo, consigo ter um bom sentido de humor. Mas quando o tema é sério, pode ser doloroso.”
Com a atuação nos Grammys, brindada com lágrimas e aplausos, no último dia 26 de janeiro, Demi Lovato regressou aos palcos, depois de uma ausência de quase dois anos. Acompanhada pelo piano, Lovato interpretou um tema inédito — “Anyone” –, composto e gravado apenas quatro dias antes da overdose que a fez ser internada. Numa numa entrevista à Apple Music, a poucos dias da cerimónia, a cantora falou a mensagem poderosa da canção e sobre o facto de ter sido um pedido de ajuda:
“Gravei esta música convencida de que estava OK, mas claramente não estava […] De certa forma, agora ouço a música e penso como é que ninguém, ao ouvi-la, disse: ‘Vamos ajudar esta miúda’. Quem me dera poder voltar atrás e ajudar aquela versão de mim mesma.”
Demi Lovato volta a estar sobre os holofotes no próximo domingo, dia 2 de fevereiro, para cantar o hino dos Estados Unidos, na abertura do Super Bowl. No centro do Hard Rock Stadium, em Miami, vai cumprir uma missão já desempenhada por nomes como Aretha Franklin, Diana Ross, Billy Joel, Whitney Houston, Mariah Carey, Beyoncé e muitos outros.