Morreu João Semedo, antigo coordenador do Bloco de Esquerda. Tinha 67 anos e estava hospitalizado. Foi deputado e, mais tarde, coordenador do Bloco de Esquerda, ao lado de Catarina Martins. Um cancro nas cordas vocais, diagnosticado em 2013, afastou-o da vida política. Em 2017 chegou a concorrer à Câmara Municipal do Porto, altura em que deu uma entrevista de vida ao Observador e em que afirmou: “Nunca desejei morrer, mas sempre achei que a morte me apanharia feliz”.
O velório de João Semedo realiza-se esta tarde, a partir das 17h, na Cooperativa Árvore, no Porto. O funeral sairá amanhã, pelas 13h30, da Cooperativa Árvore em direção ao cemitério do Prado do Repouso.
João Semedo: “Nunca desejei morrer, mas sempre achei que a morte me apanharia feliz”
Em abril de 2017, Semedo dizia ao Observador que estava curado, apesar das mazelas que lhe marcavam a voz. “Sou exatamente o mesmo João Semedo que era. A mesma pessoa, com o mesmo coração, com a mesma cabeça, com a mesma vontade. Há uns que têm sotaque. Eu tenho este timbre”, dizia.
Em vida foi membro da direção do movimento cívico “Direito a morrer com dignidade” e um dos principais rostos desta iniciativa — há vários anos que se interessava pelas problemáticas do fim de vida, “como médico e como cidadão”. Propôs o projeto de lei que esteve na origem da aprovação do Testamento Vital.
Tinha acabado de sair de uma campanha eleitoral “bem difícil” quando soube que estava doente. Disse que sempre se sentiu acompanhado, pela família, pelos amigos, por conhecidos e pela equipa que o acompanhou. Teve uma recaída em 2014, quando a doença se agravou, e fez várias cirurgias, uma delas para tentar conservar alguma voz. Também essa falhou.
No período em que estive doente houve uma coisa que mudou muito: nunca tinha tido tanto tempo livre e de forma tão continuada. E, claro, há tempo para andar com o filme para a frente e para trás. E sempre me senti bem, muito confortável e reconfortado com essas memórias. De facto, tive a vida que escolhi, a vida que quis, não tenho nada de que me arrependa no que foi importante. Segui sempre a minha intuição, nunca me senti a fazer o que não queria. Sim, fui muito feliz, sou e acho que continuarei a ser”, disse em abril de 2017, em entrevista de vida ao Observador.
Um médico e um político muito humano
João Semedo nasceu a 20 de junho de 1952. A infância e a adolescência foram passadas no Jardim Constantino, em Lisboa. As brincadeiras foram de rua e de época: bola, patins, carrinhos e cromos de cadernetas incluídos. Fora da capital, viveu dois anos na Figueira da Foz, com a mãe e a irmã — fez lá a 2º e 3º classes. Ambos os pais viviam do rendimento do seu trabalho. A mãe era professora e o pai era engenheiro numa empresa privada e militante comunista. A política fazia parte das conversas de família.
Semedo nasceu e cresceu no Estado Novo. Os últimos anos de ditadura empurraram-no para a atividade política, iniciada no liceu “com a tragédia das cheias de 1967 e a mobilização estudantil no apoio às vítimas”, tal como se lê no site do Bloco de Esquerda, Esquerda.net. Já enquanto estudante de Medicina, João Semedo participou na sua primeira manifestação, em 1968, e manifestou-se publicamente contra a guerra do Vietname. A adesão ao PCP aconteceu em 1972, através da União de Estudantes Comunistas, cuja Comissão Central integrou. Enquanto membro do partido, participou em atividades de agitação, propaganda e também no apoio aos funcionários clandestinos. Foi preso em 1973, quando distribuía panfletos a exigir eleições livres. Passou duas semanas em Caxias, recusando-se a assinar o documento elaborado pela PIDE no qual confessava o envolvimento em atividades subversivas e se comprometia a abandoná-las.
Reações à morte de João Semedo e o “acto de amor” que emocionou Marisa Matias
Depois do 25 de Abril, participou na criação do Movimento ALFA, de alfabetização de adultos, e tornou-se funcionário do PCP, a convite de Joaquim Pina Moura e Jorge Araújo. Mudou-se para o Porto — cidade que lhe deu o último grande desafio político da sua vida — em 1978. “Na maior parte do tempo, trabalhei com intelectuais, artistas, professores, quadros técnicos. Mas também tive tarefas relacionadas com a política de saúde, as relações com a imprensa e, já mais tarde, na organização da cidade do Porto”, contou ao Observador. Demitiu-se como funcionário do partido e como membro do Comité Central em 1991, depois de votar contra a Raimundo Narciso, José Luís Judas, Mário Lino e Barros Moura, defendendo que as questões políticas devem ser resolvidas politicamente e não administrativamente, como lembra o Esquerda.net.
A saída do PCP possibilitou-lhe o regresso à medicina. Passou por um centro de abrigo para toxicodependentes, por Serviços de Atendimento Permanentes, tirou uma pós-graduação em Toxicodependências na Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto. e foi diretor do Hospital Joaquim Urbano, no Porto, onde durante seis anos, entre 2000 e 2006, liderou o processo de remodelação do hospital especializado no tratamento de doenças respiratórias e infecciosas. Foram os anos em que se sentiu mais realizado profissionalmente.
O convite do amigo Miguel e a entrada para o Bloco de Esquerda
Em 2003, João Semedo foi convidado para integrar o Bloco de Esquerda por Miguel Portas, partido criado em 1999. Um ano depois, fez parte da lista de Miguel Portas ao Parlamento Europeu, tendo por base um acordo entre a Renovação Comunista e o Bloco. “Estava empenhado na criação e crescimento da Renovação Comunista. Conversava muito com o Miguel, éramos muito amigos. Fui acompanhando os primeiros anos do Bloco pelo que via e pelas narrativas do Miguel. Aos meus olhos o Bloco aproximava-se do que me parecia faltar à esquerda, uma nova esperança, uma nova ambição, uma lufada de ar fresco, uma dinâmica de juntar mais esquerda à esquerda”, disse no decorrer da última grande entrevista que deu.
Após a saída de Francisco Louçã, Semedo e Catarina Martins assumiram a direção do BE, em 2012. Sobre isso, Semedo garantiu ao Observador que a decisão não foi um “erro”, mas sim “a opção que recolheu a maioria das opiniões favoráveis”. “Não vingou, não se afirmou, não resultou, é verdade. Mas isso não significa tenha sido uma decisão errada. Não vi qualquer outra com mais apoio, nem melhor. Num partido democrático não há outra forma de escolher, ver quem recolhe a maioria.”
Em fevereiro deste ano, publicou, juntamente com António Arnaut, “pai” do SNS, o livro Salvar o SNS, onde propôs uma nova Lei de Bases da Saúde com o objetivo de “devolver aos cidadãos uma saúde pública digna de uma democracia sã”. Em maio, foi responsável pela coordenação de Morrer Com Dignidade, um livro do Movimento Morrer com Dignidade com esclarecimentos e testemunhos de várias personalidades. Na introdução, escreveu: “Uma primeira explicação, porventura tão simples quanto cruel: morre-se mal em Portugal. Em geral, a morte traz consigo um intenso sofrimento, tão excessivo como inútil, porque dele nada resulta a não ser mais sofrimento até que a morte, pondo termo à vida, ponha igualmente termo ao sofrimento”.
O volume foi apresentado na Assembleia da República numa cerimónia em que o médico e ex-coordenador do BE já não esteve presente. O texto de apresentação foi lido aos presentes pelo editor da Contraponto, editora responsável pela publicação do livro. Nesse, Semedo lamentou: “A recuperação em que estou empenhado ainda não deu o resultado suficiente para permitir deslocar-me do Porto a Lisboa, inviabilizando assim a minha participação nesta sessão de apresentação do livro Morrer com Dignidade – A Decisão de Cada Um. Lamento esta circunstância, mas estou certo da vossa compreensão”.