Chama-se Gonçalo Pessoa, é comandante da TAP, tem 44 anos (boa capicua), quatro filhos – as últimas, seis meses, são gémeas. Sempre voou, os aviões e os céus são paixões antigas e ele foi-lhes fiel. Mas, a meio caminho, surgiu outra paixão, inesperada e fulgurante: a hotelaria. Tudo começou em 2002 por uma banal visita à Comporta, que então não conhecia. Ele e a mulher gostaram tanto que lá compraram terra, depois construíram casa e a meio da obra — golpe de asa ou de intuição? — fizeram dela um hotel.
Antecipando com esse gesto o que aí vinha para a Comporta: fama, nome, internacionalização. E dinheiro. Uns anos depois nascia o hotel Sublime, primeiro uma pequena unidade, hoje já consideravelmente maior . Fosse porém qual fosse a área ou o número de hóspedes, ali o poiso foi sempre de grande refinamento. Não é coisa pouca para alguém bem menos treinado nas lides hoteleiras do que na condução de um bom voo.
O segredo? O costume: vontade, determinação, desinstalação. Foi ele quem o disse, usando de uma simplicidade desarmante e sem sombra de aparato. Uma conversa estival num dos belos recantos da “sua” casa, por entre plantas e arbustos que eu jamais vira.
E, claro, este aviador/hoteleiro, hoje já quase um “comportense “ de gema, está atento ao desenvolvimento desta zona e activamente empenhado no seu futuro.
Mais um bom ponto a favor do “sr. Comandante”.
Como é que um comandante de aviação vira hoteleiro? Não é fácil de entender à primeira. Conte-nos lá isso …
Eu e a minha mulher, Patrícia, conhecemos a Comporta pela primeira vez em 2002 a convite de um amigo que tinha uma casa nas Lagoas do Carvalhal e um terreno na Muda. Foi amor à primeira vista. Era o oposto do que estávamos habituados nas nossas habituais férias no Algarve… Espaço, natureza e autenticidade. Nessa visita estávamos ainda acompanhados de outro casal de amigos que viriam a ser nossos padrinhos de casamento em 2003 e decidimos que fazia sentido comprar um terreno por aqui. Como não tínhamos pressa, fomos analisando varias opções, até que, em 2004, encontrámos dois terrenos, lado a lado, que reuniam as condições que tínhamos idealizado: bem arborizados e de fácil acesso. Apesar de não possuirmos a totalidade dos recursos, pedimos ajuda aos pais e a à banca, comprámos o terreno e licenciámos a construção de uma casa de férias para a família.
A aprovação camarária foi rápida, até demais, pois não podíamos, por questões financeiras, começar a construção. Fomos então pedindo prorrogações ao projeto, até que, em 2011, era inevitável o arranque da construção da dita casa, sob o prejuízo de perdermos a viabilidade construtiva, pois o PDM tinha mudado. Mais uma vez os recursos eram escassos mas, com o continuado apoio da família e da banca, decidimos arriscar a construção de uma casa que serviria para usufruto nas férias e arrendamento a terceiros nos períodos não utilizados, de forma a pagar as despesas. No arranque da construção comecei a sentir, fruto das mais frequentes deslocações à Comporta, que este destino estava a revelar os primeiros sinais sólidos de procura por uma clientela estrangeira e com poder de compra.
Visto não haver à data nenhuma oferta hoteleira de qualidade, decidimos que não fazia mais sentido continuar o projeto de uma casa, mas sim alterá-la, ainda em fase de construção, para um pequeno hotel de charme. Finalmente, abrimos portas na primavera de 2014, com 14 quartos e com um restaurante e SPA. Felizmente, correu muito bem desde o início e percebemos que existia espaço para expandir. Em 2016 inaugurámos o novo edifício principal e dez casas de dois quartos. A partir daí, temos vindo a adicionar 12 casas maiores, de três a cinco quartos, a última será concluída até ao final deste ano. Todas dispõem de serviço hoteleiro e hoje o nosso projeto conta igualmente com um renovado SPA e três restaurantes.
Havia tradição de hotelaria em sua casa, na sua família, em conhecidos ou amigos próximos que lhe tivessem acenado com o desafio de acrescentar um métier à sua vida, no caso, um hotel?
Não. Não havia tradição hoteleira profissional mas sempre gostámos muito de receber pessoas em nossas casas. A nossa experiência profissional como piloto e assistente de bordo da TAP também nos permitiu ver nas deslocações de trabalho um pouco do mundo e cultivar o gosto pelo atendimento ao público. Igualmente, nas nossas férias, a oportunidade de viajar bastante permitiu-nos ver muitos exemplos de bons hotéis e de aprender com os outros o que fazer de certo e errado…
E como é que um aviador alcança tanto sucesso e logo na primeira experiência hoteleira em que toca? Foi uma espécie de toque de Midas? Porque “saiu” qualidade, refinamento, bom gosto, exigência. Há uma explicação, um segredo, uma receita?
Desde cedo percebemos que o nosso projeto, apesar de pequeno, teria de ter serviços invulgares para um pequeno hotel: um restaurante de qualidade e um SPA. Teríamos de ser muito exigentes e apostar na qualidade para poder estar à altura da expectativa da nossa clientela, sobretudo de estrangeiros. Existem hoje em dia muitos exemplos de pessoas que são oriundas de outros ramos e que se aventuram em hotelaria, tendo criado projetos extremamente interessantes e com grande sucesso. Esta ‘nova hotelaria’ tem uma abordagem diferente e mais centrada no autêntico e personalizado, deixando de lado alguns clichés que já não são valorizados.
Se tivesse que preencher o seu autorretrato, o que escreveria em primeiro lugar? Capacidade de liderança? Vontade? Talento para fazer equipas? Empenho em mobilizar as pessoas para o desafio? Ou simplesmente…. a adrenalina do risco?
O fator vontade julgo ser o mais marcante, bem como capacidade de sacrifício e determinação para que as coisas aconteçam. A gestão de equipas é o mais difícil, onde tenho menos à vontade… Entendo que posso ser um líder capaz e que dou sempre o exemplo, não existe nada neste hotel que eu não saiba fazer, mas hoje somos 120 pessoas… Cada uma tem uma história, um problema ou ansiedade. É sem dúvida o maior desafio deste projeto: gerir pessoas e manter um elevado nível de motivação.
O que quer que seja o seu hotel? Faltam ainda algumas coisas ou o Sublime já é o que sonhou? Aquilo que sonhou que pudesse vir a ser?
Gostava que o Sublime Comporta se tornasse um ‘’clássico’’, um bastião da excelência de serviço e qualidade. Um local onde os clientes sonhassem ficar e onde fossem sempre muito bem recebidos. Um daqueles hotéis icónicos que preenche o imaginário dos viajantes… Um hotel que resistisse ao tempo e às modas, que envelhecesse bem!
Estar na crista da onda, no lugar do sucesso, na esquina da fama como parece estar é o lado bom da (sua) moeda. Mas o sucesso por vezes trai. Aflije-o ou preocupa-o que esta moeda valiosa possa um dia mudar de face? Virar?
Muitos projetos novos chegarão à Comporta em breve. É fundamental que o Sublime tire partido da vantagem de ter sido o primeiro mas que não adormeça à sombra deste facto. É fundamental estar constantemente a reinventar o projeto e a elevar o padrão de serviço. A concorrência do Sublime não está na Comporta, para já, mas sim noutros locais do país e do mundo. Em breve, outros chegarão a esta região, com novas ideias e muito dinheiro para investir…
Esta belíssima zona do país agora tão cara, afamada e procurada, corre alguns riscos de crescer mal e se desenvolver pior. Isto inquieta-o? Que contributo está disposto a dar para que não venha a ser assim? Que gostaria ou poderia fazer nesse sentido?
Inquieta-me bastante mas tendo a ter uma visão otimista em relação a esta questão. O desenvolvimento turístico e imobiliário da Comporta é inevitável. O mais importante para a Comporta é crescer em qualidade e não em quantidade, não perdendo o seu ADN original. Esta região não pode perder as qualidades originais que a tornaram num destino tão desejado por um público tão sofisticado e viajado. As muitas restrições à construção e os PDMs das Câmaras Municipais de Alcácer e Grândola serão instrumentais na regulação do excesso de construção.
Mas julgo saber que tem tido um contributo mais ativo, com a criação de uma associação que visa…
Sim. Esse meu contributo já está em curso com a constituição de uma associação denominada Comporta +, da qual fui eleito presidente do conselho executivo. Trata-se de uma associação sem fins lucrativos que agrega os vários players da Comporta, desde o pequeno comércio até aos promotores imobiliários, passando pelos restaurantes e hotéis, entre outros. Pretendemos defender os interesses de todos, promovendo a Comporta como um destino de excelência dentro e fora de Portugal, sensibilizando todos os intervenientes para a imperiosa importância da manutenção da identidade original da Comporta como o elemento chave para o seu desenvolvimento saudável e sustentável. Outra questão cerne de debate e de influência prende-se com a escassez de infraestruturas atuais, incapazes de lidar com o iminente aumento da procura. Urge, por exemplo,
resolver o problema dos acessos às praias existentes e aumento dos seus parques de estacionamento, bem como a abertura de acessos a novas praias. A iniciativa privada ocupar-se-á de criar novos serviços — restaurantes, lojas e entretenimento — necessários ao consolidar este destino.
Como é que se lida com a fama? De repente, o Comandante Gonçalo Pessoa, da TAP, é famoso, é “o” dono do Sublime, onde todos querem vir. Isto pesa?
Lido bem com isso, temos uma vida muito reservada e não gostamos de aparecer. Continuamos a cultivar as amizades de sempre e um espírito de humildade de quem está aqui para servir os clientes. E, ao longo deste caminho profissional, temos tido o privilégio de conhecer algumas pessoas muito interessantes que hoje podemos considerar como amigos e que enriquecem as nossas vidas.
Que lhe dizem os “célebres” quando aqui vêm? Como é que os famosos que se escondem por entre as dunas e as cabanas da Comporta olham para a sua “casa”?
Julgo que do que mais gostam é da forma simples e autêntica como os recebemos — como se se tratassem de quaisquer outros hóspedes. O mais importante nestes casos é manter a total discrição e nunca revelar a ninguém que aqui estiveram. Desta forma sentem-se protegidos e isso fá-los voltar ou recomendar a outras pessoas dos mesmos circuitos que aqui existe respeito pela sua privacidade.
Peço-lhe algumas brevíssimas notas pessoais sobre eles, um flash. Há de haver recordações, boas histórias passadas com algum desses ilustres visitantes.
Um dos homens mais ricos do mundo ficou connosco três noites em 2015. Chegou numa simples carrinha de 6 lugares com a mulher, cunhados e dois jovens, sem qualquer guarda-costas, nem aparato de segurança. Apenas com uma pequena mala de roupa e desde logo mostrou muita simpatia e simplicidade. A dado momento começou a saber-se pela Comporta que ele estava por cá e começaram os telefonemas para o hotel a convidá-lo para cocktails ou jantares… Tive obrigação de lhe transmitir estes convites, claro, mas a sua resposta foi apenas: ‘Filho, tu não me viste… diz-lhes que estou fora do hotel. Apenas quero estar sossegado e aproveitar o descanso. Prepara-me, por favor, para o jantar um peixinho ao sal, igual ao de ontem…’.
Projetos? Sei que há alguns. Já são “faláveis” ou partilháveis?
Estamos neste momento a desenvolver o ‘master planning’ da expansão do Sublime Comporta. Será num terreno muito próximo do projeto original e contará igualmente com um pequeno hotel com SPA e um espaço dedicado aos eventos, bem como com cerca de 40 casas com serviço hoteleiro.
Onde o poderemos ver, a si, daqui a dez anos? A gerir uma frota de hotéis ou de aviões? Ambas?
Pilotar é algo que não se deixa, só por obrigação. Está-me no sangue desde há muitos anos. Ser comandante da TAP é um privilégio único do qual muito me orgulho. E o Sublime é um projeto de paixão que ainda arde muito forte dentro de mim. Enquanto a chama estiver acesa será difícil largar…