[artigo originalmente publicado a 28 de setembro de 2018, atualizado a 18 de setembro 2021, após a morte de José-Augusto França]
Já nonagenário, subia a pé até ao 4º andar no seu apartamento no Príncipe Real, tinha uma imparável produção como romancista e memorialista, a juntar às décadas em que ensinou e escreveu sobre História da Arte, Cultura, Literatura, Crítica de Arte, nunca gozou o privilégio de ser uma coqueluche como o filósofo Eduardo Lourenço ou o cineasta Manoel de Oliveira, não obstante ser um dos pensadores mais influentes da história da segunda metade do século XX português. José-Augusto França (que morreu aos 98 anos) mais conhecido como “o França”, já não pode voltar a contar a sua versão da história, nomeadamente a sua zanga de décadas com Mário Cesariny. No entanto, nos 100 livros que publicou está tudo contado. Desses 100, o próprio selecionou os que achava mais relevantes (cerca de três dezenas, alguns deles inéditos) para o projeto Biblioteca José-Augusto França lançado pela INCM na Fundação Gulbenkian.
As obras foram divididas em 16 volumes. Duarte Azinheira, diretor da Imprensa Nacional, que apresentou esta Biblioteca JAF, contou ao Observador que foi ele mesmo quem, em 2016, propôs ao escritor fazer esta coleção e que a mesma acabaria por ser o trabalho que lhe tomou os dias até ao momento em que adoeceu.
No verão de 2017, a escolha das obras a compilar estava feita e JAF tinha mesmo escrito um esboço do discurso de apresentação das mesmas. Já não podendo afinal estar presente neste lançamento, foi lido esse esboço, bem como uma carta comovida do seu discípulo e amigo, o docente e investigador Vítor Serrão, lembrando que nos encontros que tiveram na esplanada no Jardim da Estrela, JAF chamava a esta Biblioteca “um projeto de vida” por englobar o melhor que ele fez na História da Arte, crítica da Arte, museologia, cinema, literatura, fotografia, teatro, etc. “Ele desejava que os livros incluídos nesta coleção mostrassem o melhor do que foi o seu contributo científico, literário e humano”. O historiador de arte também afirmou que os livros de França “continuam a ser fontes inesgotáveis no desguarnecido panorama da historiografia da arte nacional”.
José-Augusto França (1922-2021): protagonista da História e da Arte, o português “finalmente só”
Raquel Henriques da Silva, docente na Universidade Nova e também discípula de JAF, considera que “no meio da História da Arte o autor não está esquecido”, embora não tenha o reconhecimento generalizado da sociedade portuguesa que tem por exemplo Eduardo Lourenço: “O Eduardo é o bem-amado. Já o França dedicou-se ao romance, de certa forma afastou-se, creio mesmo que ele desconhecia o que está neste momento a ser feito em termos artísticos pelas gerações mais novas. Mas os livros dele continuam a ser muito lidos na academia e, embora para os mais novos ele possa ser considerado ‘maçudo’, a verdade é que para um investigador as obras dele são um tesouro de referências, datas, factos, memórias. Ele era tão meticuloso, apontava tudo nas suas agendas…”
Duarte Azinheira, da INCM, acredita que a reedição destas obras será uma forma de “contrariar a morte e o esquecimento, uma vez que esta coleção permitirá proteger e divulgar o património que é o pensamento de JAF”. Diz ainda que esta “biblioteca pretende sintetizar, de forma extensa e profunda, os vários lugares de interesse e questionamento do autor — entre ensaios, romance, contos, memórias, teatro — e também reunir o melhor da reflexão de um homem que a UNESCO considerou como um símbolo maior do pensamento europeu”.
Um audacioso muito discreto
José-Augusto França nasceu em 1922, ainda vigorava a II República presidida então por Manuel Teixeira Gomes, e de miúdo franzino e de saúde problemática havia de se tornar um homem pragmático, meticuloso até à obsessão, não apenas dado a pensar sobre tudo como também a fazer as coisas acontecerem: desde a gestão da loja de decorações paterna na Avenida da Liberdade até à fundação do 1º Grupo Surrealista Português, à criação do primeiro curso de mestrado que existiu em Portugal, em 1976, passando por outras coisas como a descoberta e divulgação de muitos jovens pintores da década de 50 para a frente (entre eles, Noronha da Costa, Joaquim Rodrigo, Menez, KWY…). “Mas a minha ligação à arte é de necessidade. Respiratória, digamos”, confessava, em 2016 nesta entrevista ao jornal Sol.
Foi presidente do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa e da Academia Nacional de Belas Artes, diretor de Colóquio/Artes, diretor do Centro Cultural Gulbenkian de Paris. Membro (emérito) da Academia das Ciências e de Academias estrangeiras, presidente de honra da AICA —Assotiation Internationale des Critiques d’Art, membro (honorário) do Comité International d’Histoire d’Art, na UNESCO.
Mas, acima de tudo isto foi, um homem que dedicou a sua vida à arte, à cultura portuguesas, fazendo com que esta avançasse um pouco relativamente aos seus muitos atrasos. Levando à letra a frase de Jean Cocteau, “por não saber ser impossível, foi lá e fez”, JAF não se detinha perante nada. Desde logo, foi um frontal opositor ao regime salazarista, mais interessado no risco de mergulhar no novo do que beneficiar do cómodo velho que lhe poderiam proporcionar aquilo a que ele chamava “os comunistas de Salazar”. Fez-se surrealista e, segundo Raquel Henriques da Silva, “a sua alma foi sempre surrealista”. Depois das atribulações do 1º grupo, dedica-se mais a estudar o abstracionismo com Picasso como figura de veneração absoluta, vai para Paris e faz dois doutoramentos, um em História e outro em Letras. Inaugurou os estudos sobre o iluminismo português com uma tese sobre o Marquês de Pombal, passa a escrever crítica de arte em publicações efémeras.
As atividades surrealistas, o romance Natureza Morta contendo críticas anticolonialistas, tornaram-lhe a vida difícil em Portugal, mas ele nunca perdeu um certo jeito para os negócios e ia sobrevivendo. Como o próprio recorda no livro Memórias para o Ano 2000 (Livros Horizonte), o romance foi editado por Castro Soromenho da Casa do Estudante do Brasil Editora, com sede no Brasil. Parte da edição seguiu logo para o outro lado do Atlântico, ficando para o mercado português apenas algumas caixas. O livro não teve qualquer crítica porque, sendo algo que “abalava a ficção pátria”, todos convergiram para o “abafar”. Só Jorge de Sena escreveria sobre o livro, mas sendo ele quem era isso só serviu para isolar ainda mais a obra. De resto, JAF e Sena ficariam amigos até à morte do poeta em 1948. Natureza Morta foi reeditado em 1982 com prefácio de Eduardo Lourenço.
Na verdade, só nos 50 anos, e já depois da revolução de Abril de 74, há de ter um emprego certo em Portugal, como docente na recém criada Universidade Nova de Lisboa. Como reconhece Vítor Serrão, a sua metodologia e o seu rigor permitiram realmente criar do nada os estudos em História da Arte em Portugal: “Em 1976, inicia o primeiro curso de mestrado em Portugal, justamente em História da Arte, rasgando os horizontes da formação e da perspetiva crítica, trazendo a análise sociológica para a disciplina, novas metodologias como os estudos comparatistas, a noção de facto sócio cultural, uma espécie de sociologia dos objetos artísticos. Uma visão integrada dos factos artísticos que marcou sucessivas gerações de estudantes e investigadores”.
Em 1977, quando morreu Charlie Chaplin, José-Augusto França escreveu, talvez falando também de si mesmo, sobre os que habitam o impossível: “Morreu Chaplin, morreu Picasso, não falta morrer mais ninguém, dos sagrados monstros do nosso século. Ilustres foram outros, entre artistas, sábios e governantes, mas nenhum deles sagrado porque não chegaram aonde é impossível chegar, ou porque nos campos da governação nada jamais é sagrado.”
A Biblioteca José-Augusto França é composta pelos seguintes títulos
1. Natureza Morta (1949, 1961, 1982, 2005). Inclui os contos “Três Pequenos Contos de África” (1946), “D. Júlia” (2004) e “O Retornado” (2003), e “Nota geral da Edição”, “Biografia cronológica” e “Bibliografia cronológica”. (publicado)
2. Charles Chaplin, o “Self-Made-Myth” (1954, 1963, 1989). Inclui “Hitchcock Há 100 Anos” (1999). (publicado)
3. Amadeo de Souza-Cardoso, o “Português à Força” (1957, 1972,1986) e Almada Negreiros, o “Português sem Mestre” (1974, 1986). Inclui “Vieira da Silva” (1958) e “Vieira da Silva para depois” (2009).
4. Lisboa Pombalina e o Iluminismo (1966, 1977, 1983). Inclui “Lisboa Pombalina” e a “Estética do Iluminismo” (1994).
5. A Arte em Portugal no Século XIX (1967, 1981, 1990).
6. A Arte em Portugal no Século XX (1974, 1985, 1991, 2009). Inclui “Considerações sobre a História da Arte do Presente” (2012).
7. O Romantismo em Portugal (1974, 1993, 1999).
8. Rafael Bordalo Pinheiro, o “Português Tal e Qual” (1981, 1982, 2010).
9. Os Anos 20 em Portugal (1992).
10. História da Arte Ocidental, 1750-2000 (1987, 2006) e História da Arte Ocidental, 1780-1980 — Modo de Emprego (1987).
11. Lisboa, História Física e Moral (2008, 2009).
12. A Bela Angevina (2005) e José e os Outros (2006). Inclui as narrativas “A Morte do Escritor” e a “Morte do Poeta” (2005).
13. Duas Vidas Portuguesas: Ricardo Coração de Leão (2007) e João sem Terra (2008). Inclui o conto inédito “Ricardo Morreu” (2016).
14. A Guerra e a Paz (2009).
15. Azazel (1956) e Diálogo entre o Autor e o Crítico (2015). Inclui “O Pretexto de Azazel” (1951) e “A Casa da Rua da Estrela” (dez contos, 2003).
16. Memórias para o Ano 2000 (2000, 2001). Inclui “Vida a Seguir — Autobiografia” (2008) e o 13.º e último capítulo atualizado, “nonagenariamente”, de “Memórias para Após 2000” (2012).