Durante 15 minutos, respondeu a várias perguntas do jornalista Andy Mitten na abertura do palco Sports Trade do Web Summit, esta terça-feira. Dessas, apenas um/dois minutos foram dedicados à questão de lançamento: “Nunca tendo jogado futebol de forma profissional, como é que André Villas-Boas se tornou um dos mais cobiçados treinadores do mundo no futebol antes dos 40 anos?”. No final da conversa, o que ficou foi a resposta à provocação que tinha sido feita pelo The Times no ano passado, quando anunciou que iria participar no Dakar – “Crise de meia idade? Não, nunca”. Porque se é verdade que o técnico que ganhou tudo o que havia para ganhar no FC Porto sabe bem como tudo começou, também sabe para onde vai.

“Deixei o Shangai em novembro de 2017 e daí para cá tenho estado com a minha grande paixão extra futebol, os carros. Fiquei no Porto, tirei um tempo do futebol mas espero voltar no próximo ano. Como pode ser usado esse tempo? De várias formas, para estudar, para aprender línguas… Eu por exemplo estou a aprender alemão porque é um mercado que me interessa e é conveniente saber a língua. Quando estive na Rússia e na China isso não aconteceu mas acho importante”, revelou. Mais tarde, o treinador falou também no fascínio pelo Japão, abrindo também a porta de um regresso ao futebol asiático, mas foi aquele pormenor que levantou mais curiosidade. Agora e no futuro: teremos Villas-Boas na Bundesliga?

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A dúvida ficou no ar mas, depois das passagens pela Premier League (Chelsea e Tottenham), pela Rússia (Zenit) e pela China (Shangai SIPG), com uma certeza – onde quer que seja o próximo destino, haverá um Villas-Boas diferente daquele que começou a carreira a solo na Académica e ganhou tudo o que havia para ganhar pelo FC Porto em 2010/11. Sobretudo após as experiências em duas das maiores equipas de Londres, com todas as características que as distinguem.

“A experiência inglesa foi má, não correu como queria. No início não era um treinador muito flexível nas minhas ideias e aprendi agora a ser. Sobretudo depois de passar do Chelsea para o Tottenham. Olhei para o futuro sem respeitar o curto prazo e paguei o preço por isso. Provavelmente dei a mensagem errada, não encontrei o equilíbrio certo e, como os resultados a breve prazo foram maus, não houve futuro e saí. No Tottenham, o primeiro ano foi muito bom, conseguimos bater o recorde de pontos do clube mas falhámos a qualificação para a Liga dos Campeões por um ponto. É um clube especial, treinar o Tottenham é entrar em algo muito específico porque está orientado numa vertente financeiro. É por isso que o Pochettino está a fazer um trabalho tão bom, sem investimento chegou à Champions. Vai ser complicado chegar ao topo”, contou.

É preciso encontrar o equilíbrio entre o curto e o longo prazo. No Chelsea, por exemplo, não tive resultados para depois poder fazer uma consolidação. Quando fui para a Rússia, encontrei no Zenit um grande clube. Houve uma grande reação dos adeptos, num país que admiro. Tem culturas muito específicas, linhas mais ‘ditatoriais’ de treino mas são muito responsáveis no trabalho. Ir para lá quando saí de Inglaterra foi bom, reaprendi a paixão de treinar. Encontrei isso em São Petersburgo”.

Sobre referências, duas. Durante os tempos em que esteve na Premier League como treinador principal, a imprensa britânica falou muito sobre uma possível relação mais azeda com José Mourinho, antigo chefe da equipa quando Villas-Boas era ainda o observador de adversários; agora, com a devida distância temporal, provou-se que, com mais ou menos relação, também para o antigo treinador do Shangai SIPG houve dois momentos a nível técnico que marcaram a evolução: a revolução Mourinho, que começou com dois anos de sonho no FC Porto, e a evolução Guardiola, que teve início no Barcelona. “Mourinho e Guardiola são as duas referências porque mudaram as dinâmicas do futebol e tiveram um grande impacto”.

“Mourinho foi o que permitiu uma maior evolução, pelos métodos de treino e preparação dos jogos. Além, claro, de ser um grande líder. Podemos encontrar vários tipos de lideranças, umas mais de ‘ditadores’, outras de braço no ombro. Ele é um grande líder e foi revolucionário no treino e na preparação. Depois o jogo evoluiu, outros treinadores aproveitaram as melhores ideias e já se começam a encontrar paralelos. Agora temos Guardiola, que arriscou uma nova visão do jogo que começou no Barcelona. Ele redefiniu o tempo e espaço quando um jogador tem a bola, essa foi a grande revolução. Tudo acontece muito depressa no futebol, Guardiola trouxe a calma”, analisou, destacando ainda o trabalho de Southgate na seleção inglesa.

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Olhando depois para o início da carreira (sem falar da passagem pelas Ilhas Virgens Britânicas, numa das mais improváveis histórias no futebol) e para a importância da tecnologia ao serviço do desporto, Villas-Boas não teve dúvidas em apontar para aquilo que poderá mudar no futuro. E logo com uma ressalva – terá de partir dos clubes e nos dos treinadores.

“Como 17 anos, arriscas. Estava insatisfeito porque o meu ídolo, o Domingos, não jogava – e acabou por ser o treinador que defrontei na final da Liga Europa – e falei com o Bobby [Robson] por causa disso. Em vez de me meter de lado, disse-me para estar às 8 horas ali para ir ver o porquê de não jogar. No início vivia tudo aquilo pelas emoções, não estava lá pela parte técnica. Podia ver os meus ídolos, era fantástico. Mas isso criou uma enorme paixão pelo futebol, comecei a fazer estatísticas, a frequentar cursos de futebol e iniciei a minha carreira. A tecnologia entretanto foi evoluindo muito e tornou-se fundamental, desde a parte do scouting até à análise de jogo, passando pelo departamento médico que melhorou bastante com a crioterapia, a nutrição. Tudo isso tornou-se uma parte muito importante do futebol”, começou por explicar.

Villas-Boas ganhou Campeonato, Taça de Portugal, Supertaça e Liga Europa em 2010/11 (PAUL ELLIS/AFP/Getty Images)

“Comparando o futebol com os desportos americanos, os jogadores chegam às 9h30, treinam e podem ou não almoçar lá, se não almoçarem às 12h30 ou 13h já saíram. Nas minhas recentes investigações, isso não acontece nos desportos dos Estados Unidos, onde existe um trabalho diário de oito a nove horas no clube. Para chegarmos a um futebolista ainda melhor precisamos de mais tempo na academia. Hoje é tudo uma urgência mas precisamos disso para melhorar. Vai ser tudo novo, os primeiros jogadores a testar isso vão oferecer resistência mas existirá mais tempo para ter cuidados com nutrição, recuperação ou estudar os próprios adversários. Essa é a grande mudança do futuro mas terá de ser feita pelos clubes e não pelos treinadores. Com isso, poderemos aproveitar ainda melhor o desenvolvimento da tecnologia”, defendeu. “No início tínhamos aquelas ferramentas do Prozone ou do Wyscout; agora temos nas nossas estruturas duas pessoas que fazem a análise do jogo, quantos passes deve o lateral fazer para o extremo, decidir como queremos pressionar o adversário mediante seja mais provável que perca a bola. A Opta também tem uma série de dados. Essa foi a grande mudança na parte da análise”.

O futebol tem mudado nos últimos dez anos. Quando entrei, havia um certo interesse em acompanhar o trabalho de alguém que antes não tinha jogado futebol mas que dominava outras áreas. Com Zidane, Guardiola, Conte ou agora o Henry, percebe-se que a nova tendência agora são os ex-jogadores. Eles têm a capacidade e a vantagem de lerem o que vai na cabeça de um jogador, no meu caso tenho de fazer esse trabalho para entrar na cabeça dos jogadores e perceber o que se passa”.

Por fim, e numa única ideia, a definição da principal característica num treinador. “Ser autêntico e estar atento ao que os outros sentem”, frisou. “Às vezes são necessárias máscaras diferentes para cada um dos jogadores, porque uns gostam mais da pressão e outros menos. Temos de estar atentos e focar também no que os outros pensam. Por causa das redes sociais, os jogadores estão a mudar, estão mais expostos e podem ficar menos concentrados, temos de ter cuidado com isso”, pormenorizou, dizendo ainda que, “apesar de ter trabalhado com jogadores como Frank Lampard, John Terry ou Didier Drogba”, aqueles que ficaram como os mais especiais foram aqueles com quem trabalhou mais tempo, casos de Hulk ou Garay. “Sou um bocado hippie nessas coisas, gosto de desafios diferentes. É isso que me pode levar de novo para a Ásia, também tenho um certo fascínio pelo Japão. Não sei o que me vai trazer o futuro, o que quero agora é aproveitar esta fase e ter prazer nisso”, concluiu.

Villas-Boas, parte II: o despedimento de Peseiro, a revelação Abel e Sérgio Conceição

À margem da primeira intervenção, André Villas-Boas abordou também a realidade atual e o que se passa no futebol português, mostrando-se também contra a saída de José Peseiro do Sporting quando estavam realizadas apenas oito jornadas.

“É difícil perceber o que vai na cabeça das pessoas quando tomam uma decisão dessas. Para nós, treinadores, quando vemos sair um colega de forma injusta e abrupta, sentimos revolta. Marcel Keizer? O treinador português é melhor, tem uma cultura mais abrangente, melhor do que a escola holandesa”, considerando por isso para mim é uma surpresa este processo”, defendeu. “O que me surpreendeu mais até ao momento foram as derrotas dos três grandes no Campeonato. Ditou uma saída muito precoce na época e há um treinador sob grande pressão. Há ainda um Sp. Braga muito interessante, cada vez mais consolidado e bem liderado pelo Abel”, completou, referindo-se de forma indireta à situação de Rui Vitória no Benfica.

Os vários capítulos da saída anunciada de Peseiro que só foi assumida pelo Sporting dez horas depois

“O Sérgio [Conceição] é o treinador indicado para o FC Porto. Sente a paixão do clube. Falávamos das derrotas dos rivais mas o que mais me preocupa é o que o meu FC Porto faz. Espero que volte a ser campeão, para poder voltar a estar na Liga dos Campeões. Este ano espero que ultrapasse a fase de grupos na Liga dos Campeões também, o que financeiramente é muito importante. Para isso, precisa de um grande rival para se transcender”, disse, voltando a sublinhar que em Portugal só quer treinar o FC Porto mas que não passa pelos seus objetivos este momento regressar ao país para trabalhar.

Villas-Boas, parte III: as redes sociais e a importância de motivar pessoas

Na parte da tarde, e durante cerca de 20 minutos, André Villas-Boas foi ainda ao Central Stage do Altice Arena, o palco nobre deste Web Summit, abordar outra temática: “Inteligência emocional, comunicação pobre, falta de feedback honesto, a geração millenial. Quais são os principais desafios para um líder nos dias de hoje?”. A seu lado estiveram também Christina Miller, presidente do Cartoon Network, entre outros, e Ralf Reichert, CEO da Electronic Sports League.

“A vida de um treinador não é fácil. Se quiserem ver uma coisa engraçada, tomem atenção ao Twitter durante um jogo de futebol e percebam o que se passa… Decidi em relação às redes sociais que sigo mas não faço parte, acho que é o melhor. Quando queremos ver algo mau sobre alguém, é ir procurar nas redes sociais… É difícil para nós treinadores porque aumenta as expetativas. O futebol vive do sucesso imediato mas é necessário tempo para chegar a esse sucesso e as redes sociais também tornam as coisas mais complicadas porque a intolerância aumenta”, começou por salientar o treinador, apresentado de novo como um treinador que conseguiu vencer uma Liga Europa ao serviço do FC Porto com apenas 34 anos.

Villas-Boas definiu o que acha das redes sociais: não tem mas segue. “Quando queremos ver algo de mau sobre alguém, é ir procurar às redes…”

“Às vezes temos de ser um tipo diferente de líder para os diferentes jogadores, ser mais próximo ou pressionar mais consoante aquilo que seja melhor para eles. Tento dominar várias áreas paralelas para passar ao lado do facto de nunca ter sido um jogador de futebol como outros, como Zidane, Conte, Guardiola. Essa é a tendência de agora, há dez anos a tendência era treinadores como eu. O que temos sobretudo de ser é motivadores de pessoas, é o mais importante”, rematou.