Raros foram os dias em que se assistiu a uma desagregação tão grande do governo britânico como a do início desta quinta-feira. Ao todo, já se demitiram dois ministros com assento no Conselho de Ministros, duas figuras próximas de Theresa May com responsabilidades próximas às de um secretário de Estado e dois elementos que fazia a ponte entre o Ministério da Justiça e da Educação e os deputados do parlamento britânico.

Todos explicaram as razões para as demissões, que regra geral coincidem: os elementos do Governo que bateram com a porta questionam o acordo aprovado pelo executivo de May para a saída amigável da União Europeia (isto é, para o Brexit). Lembram as “promessas” feitas aquando do referendo, falam em “ameaças” à integridade e coesão do Reino Unido (colocando em causa o regime diferente aprovado para a Irlanda do Norte) e criticam quer os entraves colocados ao comércio livre com a UE, quer o “backstop”, uma espécie de reserva legal que determina a possibilidade de a ilha da Irlanda manter fronteiras abertas caso o Reino Unido saia da UE sem um acordo abrangente.

O ministro para a Irlanda do Norte Shailesh Vara foi o mais contundente: “Este acordo não permite ao Reino Unido ser um país soberano e independente, livre das amarras da União Europeia”.

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Ministro para o Brexit lembra “promessas” para criticar acordo

Na carta de demissão que tornou pública esta quinta-feira, Dominic Raab, o principal negociador para o Brexit, começa por declarar a “honra” que sente por ter desempenhado o cargo e termina referindo que o seu “respeito” por Theresa May se mantém intacto — mas, pelo meio, deixa muitas críticas ao acordo a que a primeira-ministra deu luz verde.

Os motivos para a recusa do acordo são sobretudo dois. Por um lado, Dominic Raab considera que o regime regulatório proposto para a Irlanda do Norte “representa uma ameaça real à integridade do Reino Unido”. Por outro, o “backstop” é um entrave forte: o ministro diz que “não pode” apoiar um acordo em que “a União Europeia mantém poder de veto sobre o nosso poder de decisão para sair”.

Dominic Raab está de saída (@ Jack Taylor/Getty Images)

“Nunca nenhuma nação democrática concordou em ficar ligada a um regime tão abrangente, imposto externamente sem nenhum controlo democrático sobre as leis aplicáveis, nem sobre a capacidade para decidir sair do acordo”, refere Dominic Raab, acrescentando: “Esse acordo é também visto como o ponto de partida para a negociação da futura parceria económica. Se for aceite, irá prejudicar seriamente a segunda fase das negociações contra o Reino Unido”.

Se as divergências com os termos do acordo são grandes, Dominic Raab tem ainda mais dificuldade em aceitar a proposta de saída devido às “promessas” feitas pelos seus defensores aquando do referendo. Isto é, dá a entender que não foi tendo em mente um acordo como este que os britânicos votaram a favor da saída: “Não posso conciliar os termos do acordo proposto com as promessas que fizemos ao país. No fundo, trata-se de uma questão de confiança pública”.

Ministro para a Irlanda do Norte: Reino Unido “não será independente e soberano”

O ataque mais forte aos termos do acordo viabilizado por Theresa May veio de Shailesh Vara, um ministro “júnior” (sem assento no Conselho de Ministros). Vara, que tutelava os assuntos relacionados com a Irlanda do Norte, sugere que com este acordo o Reino Unido fica com um pé dentro e outro fora da União Europeia: “Com todo o respeito, primeira-ministra, este acordo não dá ao Reino Unido as condições para que se torne um país independente e soberano, livre das amarras da UE, esteja redigido como estiver”.

Na sua carta de demissão, Shailesh Vara começa por apontar que é com “tristeza” que se demite, mas “não pode apoiar o acordo de saída” viabilizado por Theresa May. Um dos grandes motivos: a incerteza sobre a data em que o Reino Unido se poderá finalmente tornar independente da UE.

As pessoas do Reino Unido votaram pela saída e é isso que nós, que fomos eleitos seus representantes, temos de lhes dar. O acordo apresentado, contudo, não o garante, na medida em que deixa o Reino Unido num estado de semi-dependência, sem nenhuma indicação sobre o limite de tempo que levará a que nos tornemos finalmente uma nação independente”, refere.

[Veja no vídeo, em 2:08 minutos, a síntese do acordo inicial defendido por May]

Shailesh Vara recorre ao histórico da União Europeia, de que é cético, para colocar dúvidas sobre o rumo de negociações futuras a que o acordo apresentado obriga: “Dado o modo de atuar da UE evidenciado no passado, é perfeitamente possível que o acordo comercial entre União Europeia e Reino Unido que procuramos alcançar demore anos a ser concluído. Ficaremos presos indefinidamente a um regime aduaneiro, limitado por regras da UE sobre as quais não temos nada a dizer. Pior, não teremos a liberdade de abandonar esse acordo aduaneiro unilateralmente se o viermos a desejar”.

Até que tudo se conclua, a Irlanda do Norte será sujeita a uma relação com a União Europeia que será diferente da relação a que estará sujeito o resto do Reino Unido. Apesar de concordar que não deve haver nenhuma fronteira rígida entre a Irlanda do Norte e a Irlanda, a coesão económica e constitucional do Reino Unido deve ser respeitada”, aponta Shailesh Vara.

O Reino Unido, aponta o ministro para os assuntos da Irlanda do Norte, é “uma nação orgulhosa” e este é “um dia triste” para o país, que fica “reduzido a ter de obedecer a regras definidas por outros países que já mostraram que não têm os nossos melhores interesses no coração”. “Podemos e temos obrigação de fazer melhor do que isto. As pessoas do Reino Unido merecem um acordo melhor. É por isso que não posso apoiar este acordo”, acrescenta.

Ministra do Trabalho e das Pensões: “Acordo não honra o resultado do referendo”

Também Esther McVey, antiga ministra do Trabalho e das Pensões, alega como motivo para a sua demissão as diferenças entre aquilo em que os britânicos tinham em mente quando votaram pelo Brexit e o acordo agora viabilizado por Theresa May.

A antiga ministra começa por vincar que “não há tarefa mais importante para este Governo do que cumprir com a decisão de saída do Reino Unido da União Europeia. É uma questão de confiança. O futuro do nosso país e a coesão da nossa democracia estão em causa”. O acordo apresentado pela primeira-ministra para a saída amigável, contudo, “não honra o resultado do referendo”, entende Esther McVey. Mais do que isso, não cumpre com os parâmetros definidos por May desde que tomou posse, acusa a ex-ministra.

Esther McVey anunciou a sua demissão esta quinta-feira (@ Christopher Furlong/Getty Images)

McVey diz que concordava com May quando a primeira-ministra dizia que “era necessário voltar a ter controlo sobre o nosso dinheiro, as nossas leis e as nossas fronteiras” e era preciso “desenvolver a nossa política comercial própria”. Porém, o acordo agora apresentado “falha em garantir tudo isto”.

Para Esther McVey, os termos de saída a que a líder do governo britânico deu luz verde “significam entregar à União Europeia perto de 39 mil milhões de libras sem nada em troca”.

O acordo vai prender-nos a uma união aduaneira, apesar de ter prometido especificamente ao povo britânico que isso não aconteceria. Vai atar as mãos não só a este governo mas também aos próximos, que também não poderão seguir verdadeiras políticas de comércio livre. Não estaríamos a ganhar o controlo de volta, estaríamos a entregar esse controlo à União Europeia e até a um terceiro país, que serviria de árbitro”, refere.

Como defensora da união entre Reino Unido e Irlanda do Norte que diz ser, Esther McVey diz que não apoiará um acordo que “ameaça a coesão” territorial. Crítica aliás feita por vários dos ministros e secretários de Estado que bateram com a porta esta quinta-feira. “Passámos da ideia de que a ausência de um acordo era melhor do que um mau acordo, para a ideia de que qualquer acordo é melhor do que nenhum acordo. Não posso defender isto e não posso votar a favor de um mau acordo. Não poderia olhar as pessoas que represento nos olhos apoiando-o. Como tal, não tenho alternativa a demitir-me do governo”, conclui.

Ministra “júnior” para o Brexit: “Não é o que as pessoas votaram”

Suella Braverman, ministra “júnior” para o Brexit com responsabilidades políticas semelhantes às de um secretário de Estado no modelo português, também anunciou a demissão, alegando que os termos do acordo, em particular a salvaguarda para a Irlanda do Norte caso as negociações entre UE e restante Reino Unido falhem, “não é aquilo em que as pessoas votaram em 2016”, no referendo.

Sem um “direito a terminar unilateralmente” o acordo e sem “um limite de tempo definido para a salvaguarda” da UE, as “numerosas promessas” feitas pelos políticos britânicos de que será abandonada a política aduaneira em vigor “não serão cumpridas”.

“Houve 17,4 milhões de pessoas a votarem para que o Reino Unido saísse da União Europeia à nossa maneira, com soberania e decidindo nós o tempo oportuno para a saída”. Suella Braverman fala mesmo numa “sensação de traição” que emanará das pessoas “de diferentes gerações”.

Garantindo ter um “imenso respeito” pelo modo como Theresa May conduziu o processo “nestes tempos muito difíceis”, a política britânica sente que os seus pares não podem “desiludir os britânicos”. Como tal, optou pela demissão.

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Secretária para o Parlamento na Educação: Acordo é “tentar apaziguar UE”

Anne-Marie Trevelyan diz que tem “o coração pesado” na hora de anunciar a demissão, mas também sente que não tinha alternativa face aos termos do acordo anunciados pela primeira-ministra Theresa May (a quem ainda assim faz muitos elogios).

Para a antiga secretária que fazia a ponte entre o Ministério da Educação e o parlamento, “é agora claro” que as negociações foram sendo feitas com o Reino Unido a “tentar apaziguar a União Europeia”: “Fomos conduzidos a aceitar um acordo que é inaceitável para os 17,4 milhões de votantes que nos pediram para nos afastarmos do projeto europeu e que nos tornássemos novamente uma nação independente”.

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Se o acordo avançar, o Reino Unido tornar-se-á “um Estado costeiro independente apenas no nome”, prevê Anne-Marie Trevelyan, que também alerta, tal como os restantes ministros que se demitiram, para a “ameaça real à estabilidade e integridade territorial da União” britânica.

“Não posso concordar com um acordo no qual o meu país terá o seu espírito inovador, que é único, esmagado, por se desperdiçar e apagar a grande oportunidade que temos de vantagens competitivas para o futuro. Acredito que devemos defender o mandato que temos para o Brexit, que é tentar assegurar um acordo que compreenda o espírito do referendo, ou tentar, em alternativa, ter coragem de liderança para alcançar um acordo com a Organização Mundial do Comércio, trabalhando posteriormente num [novo] acordo comercial”, avisa.

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Secretário para o Parlamento na Justiça: “Tem de ser justo para quem quer sair”

Ranil Jayawardena é mais uma baixa no Ministério da Justiça de Theresa May. Secretário para o Parlamento, com funções de fazer a ponte entre o ministério e os deputados, foi o mais recente político britânico a anunciar a demissão de funções executivas.

Na carta em que invoca os motivos para a demissão, Ranil Jayawardena diz que não acredita que o acordo apresentado seja bom para o Reino Unido. “Um Brexit bom e justo tem de ser bom para aqueles que têm ligações estreitas à União Europeia, sejam familiares ou de negócio, mas também tem de ser justo para aqueles que votaram para o Reino Unido sair da UE — ganhando o controlo das nossas leis e da nossa moeda”. Ranil Jayawardena continuará a exercer funções políticas como deputado.