Perdeu o antigo nome Vodafone Mexefest para recuperar a denominação original — Super Bock em Stock —, mas as mudanças ficaram-se por aí. O formato do festival itinerante de inverno que espalha música por toda a Avenida da Liberdade, em Lisboa, continua a ser o mesmo: muitos palcos, muitos concertos, algumas estreias em Portugal e muitas bandas e músicos para descobrir.
Este ano, o festival decorre sexta-feira e sábado, dias 23 a 24 de novembro, prolongando-se até à madrugada de 25. Os concertos acontecem no renovado Cineteatro Capitólio do Parque Mayer, no Cinema São Jorge, no Teatro Tivoli BBVA, no Coliseu dos Recreios e em alguns locais surpreendentes para quem não conhecer as edições anteriores: a garagem da sede da EPAL (Empresa Pública das Águas Livres), a Estação Ferroviária do Rossio, o restaurante da Casa do Alentejo, o Palácio da Independência, o novo Maxime Restaurante-Bar (no interior do hotel Maxime) e um autocarro no qual se ouvirá música em andamento.
Estes são os destaques do Observador para decifrar o cartaz desta edição, para que saiba o que esperar.
O porto seguro
Johnny Marr: sexta-feira, 22h45, Coliseu dos Recreios
O inglês é mais conhecido por ter sido guitarrista dos The Smiths entre 1982 e 1987 do que pelo que fez daí para a frente. E ainda fez algumas coisas: gravou com bandas (os The The, os The Cribs, os Pet Shop Boys, os Talking Heads), formou bandas (os Johnny Marr and the Healers, os Electronic, o super grupo 7 Worlds Collide), gravou discos a solo e trabalhou como produtor musical. Isto além das ocupações paralelas: escreveu uma autobiografia, deu aulas universitárias, correu uma maratona, foi ver jogos do Manchester City ao estádio Etihad, criou dois filhos.
Johnny Marr sobreviveu melhor ao fim dos The Smiths do que Morrissey. É o músico mais abrangente e reputado deste Super Bock em Stock. Isso diz muito do festival, que olha mais para o futuro do que para o passado e prefere tentar antecipar quais serão as próximas grande revelações da música (portuguesa e internacional) do que celebrar as antigas. O concerto será bom, por certo. Marr é um bom músico e sabe tudo sobre a arte de estar em palco. Basta olhar para os últimos alinhamentos: tem tocado uma mão cheia de clássicos dos The Smiths (entre eles “Bigmouth Strikes Again” e “There Is A Light That Never Goes Out”), dividindo o restante alinhamento com canções que compôs nos últimos anos, em grupos e a solo. Do disco que editou há cinco meses, Call the Comet, deverá tocar no mínimo os singles “The Tracers” (recomendável) e “Hi Hello” (belíssimo).
As esperanças
Beatriz Pessoa e Elisa Rodrigues: sexta-feira, 19h e 23h15 (respetivamente), Maxime
Têm mais diferenças do que as semelhanças? Garantidamente. Beatriz Pessoa começou a cantar jazz e encaminhou-se para a canção pop, estando agora a começar uma carreira (editou este ano o segundo EP, II) que se adivinha poder vir a ser sólida. Elisa Rodrigues tem outra idade e outra tarimba: gravou um álbum de versões com um trio de jazz de peso (o pianista Júlio Resende, o baixista Cícero Lee e o baterista Joel Silva), correu o mundo a cantar com os ingleses These New Puritans e este ano gravou o seu primeiro álbum de estúdio de originais, As Blue As Red, produzido pela cantora e compositora Luísa Sobral. Já o que Beatriz Pessoa e Elisa Rodrigues têm em comum não é de somenos: uma identidade que começaram a firmar em definitivo em 2018 e um talento que permite antecipar que só dificilmente o futuro da música portuguesa e das canções nacionais não passará por elas. Atuam ambas no renovado bar-restaurante Maxime. Entre as novas cantoras e compositoras nacionais, também a folk assombrada de April Marmara (Bia Diniz), que atua no dia seguinte às 20h na mesma sala (que recebe também Janeiro), merece atenção.
Masego: sexta-feira, 23h25, Capitólio
Quando apareceu no YouTube a tocar com o músico francês FKJ uma canção chamada “Tadow”, este músico e cantor de 25 anos que nasceu na Jamaica, cresceu nos Estados Unidos da América e tem ascendência sul-africana tinha um objetivo em mente: conseguir que o vídeo atingisse um milhão de visualizações. Passado um ano, já foi visto mais de 70 milhões de vezes. Masego já fazia música há algum tempo, graças a uma paixoneta por uma professora de liceu que era fã de Miles Davis, mas foi com esse vídeo que saltou para a ribalta.
Há cerca de dois meses, Masego lançou o seu primeiro álbum, Lady Lady, um compêndio de groove e de canções sensuais, onde o R&B e um jazz ligeiro convivem bem com alguns resquícios festivos de hip-hop e trap. O segredo das canções, contudo, está na voz, no seu saxofone que é já imagem de marca e na criação de uma fórmula própria e interessante dentro de universos musicais — o R&B e a soul — ocasionalmente esquemáticos. Vimo-lo há dois meses em Barcelona e o concerto não foi estrondoso devido à parca qualidade do som no local (uma praça ao ar livre) e à quantidade de gente que se apinhou para dançar (infelizmente, também conversar) na sua festa desbragada. Agora, Masego estreia-se em Portugal. Se o festival vier a ser recordado sobretudo por causa deste concerto, não será assim tão surpreendente.
Sp Deville + David Bruno: sábado, 19h e 22h, bastidores do Capitólio e Palácio da Independência
Nenhum deles é um novato e SP Deville (antigo membro da dupla Sp & Wilson) pode reclamar créditos de veterano do hip-hop português. Apesar da respeitabilidade que têm num universo indie e hip-hop, a imaginação de David Bruno (que nos Corona é dB) para a criação de estéticas musicais e o talento de SP Deville para as batidas e rimas pede mais presenças em salas de concerto, mais presenças em festivais, mais atenção e reconhecimento. SP Deville é o primeiro a atuar, nos bastidores do Capitólio do Parque Mayer. O concerto de David Bruno é às 22h, no Palácio da Independência. Ainda no hip-hop, ouvir-se-á no festival o mais popular NGA e a rapper emergente Russa, por exemplo.
https://www.youtube.com/watch?v=jEYuf38tlOs
Tim Bernardes: sábado, 20h30, Teatro Tivoli BBVA
O brasileiro Tim Bernardes, membro da banda O Terno, estreou-se a solo em Portugal este verão, para uma série de concertos em Lisboa, Setúbal e Espinho. A aclamação foi total — a crítica ouviu-o rendida, o público que foi aos concertos ficou genericamente conquistado –, mas as salas em que atuou foram relativamente pequenas, próprias de um músico que começou há pouco tempo a construir uma carreira a solo. As canções do único álbum de estúdio que gravou e assinou com o seu nome, Recomeçar, justificam o burburinho, mas atuar em Portugal numa sala com a imponência e dimensão do Teatro Tivoli BBVA é um desafio novo. O concerto tem tudo para correr bem: a acústica e as características do teatro, em que o público assiste aos espetáculos sentado e não de pé, adequam-se bem às canções íntimas, poéticas e solitárias de Tim Bernardes. Na plateia, deverão estar algumas dezenas de pessoas que já o ouviram ao vivo mas muitas outras que ainda não tiveram a oportunidade. Não será fácil tomar a decisão de perder o concerto do compositor e cantor norte-americano (altamente recomendável) Elvis Perkins, que começa a atuar quase à mesma hora (20h15) na Estação Ferroviária do Rossio. Mas Tim Bernardes merece foco máximo.
Rejjie Snow: sábado, 22h50, Capitólio
Comecemos pela água que falta ao copo para ficar cheio: Rejjie Snow ainda não gravou um grande disco. Só gravou Dear Annie, editado este ano, que não é um disco arrebatador, que vá figurar em muitas listas de melhores álbuns do ano. Agora, olhemos para a água que já encheu metade do copo: depois de alguns EP e de uma mixtape que continha uma pérola com participação de Joey Bada$$ e Jesse Boykins III, o primeiro álbum deste jovem rapper e produtor musical irlandês confirma que o talento é de sobra e o que o futuro tem tudo para ser risonho. Com um fraseado (vulgo flow) que lembra bastante o de Tyler, the Creator, mas ainda assim com uma fórmula musical interessante e singular (ritmo quase sempre descontraído e sonhador, com sons inusitados e a palavra como elemento central da música), Rejjie Snow tem talento para a escrita, ouvido para a música e um futuro à sua frente. Ouviremos por certo falar mais dele no futuro.
As interrogações
Manuel Fúria: sexta-feira, 21h, Coliseu dos Recreios
Numa altura em que se celebram os dez anos de edição do disco IV, de Tiago Guillul, e em que se recorda o impacto que as editoras FlorCaveira e a Amor Fúria tiveram na revitalização e evolução do pop-rock cantado em português, o fundador da segunda e antigo membros de Os Golpes apresenta-se com a banda que o tem acompanhado nos últimos anos, os Náufragos, no Super Bock em Stock. O concerto acontece um ano depois da edição de Viva Fúria, segundo álbum do cantor e guitarrista com os Náufragos, cujo impacto foi bastante inferior ao do primeiro (Manuel Fúria Contempla os Lírios do Campo, lançado há cinco anos). Para o concerto, Manuel Fúria convidou Samuel Úria, Miguel Ângelo, Tomás Cruz, o trio instrumental Bispo e o vocalista dos Capitão Fausto, Tomás Wallenstein. Com este (eclético) leque de convidados, o que se vai passar em palco é imprevisível. A sala impõe respeito e torna a escolha uma aposta de risco do festival.
Conan Osiris: sexta-feira, 22h15, Teatro Tivoli BBVA
Tornou-se um pequeno fenómeno digital com o álbum Adoro Bolos. Conan Osiris, a personagem musical que Tiago Miranda inventou, canta sobre ser borrego, sobre “tar-se a cagar para a celulite”, sobre soltar os cães e trazer o lixo, sobre ir ao kebab e, lá está, adorar doçaria. As letras são despudoradas e provocadoras, a sonoridade é inclassificável, com a música cigana (presente até na maneira de cantar) misturada com os ritmos africanos e a inspiração da música urbana, do fado à escrita pop-rock que se ouve nos músicos das editoras lisboetas Cafetra e Xita Records. Não deixa ninguém indiferente — há quem o ache um renovador único da música portuguesa e quem desconfie da autenticidade e seriedade da música –, mas à primeira vista o Tivoli BBVA parece uma sala demasiada grande e pouco apropriada (lugares sentados para um concerto que apela à dança?) para um concerto de Conan Osiris. No mesmo festival atua o seu primeiro “descendente”, Pedro Mafama, que tendo uma identidade distinta, parece ter alguns elos de ligação estéticos com Conan Osiris.
Natalie Prass: sexta-feira, 23h45, Cinema São Jorge
Natalia Prass não é artista de uma canção só, mas não haverá muitas canções nos últimos anos que fiquem tanto no ouvido e no cérebro por boas razões quanto “My Baby Don’t Understand Me”, se for ouvida com atenção: a voz frágil, o arranque delicado e elegante, o crescendo de volume e intensidade, os sopros, a entrada da bateria, é tudo tão bom quanto uma canção pop pode ser. O tema apareceu no primeiro álbum da cantora e compositora de Cleveland, Ohio, lançado pela editora Spacebomb Records, fundada pelo também músico e cantor Matthew E. White. Se a estreia criou alguma expectativa (depois disso atuou em Portugal no festival de Paredes de Coura), o segundo disco The Future & The Past, editado este ano, não é insonso mas não confirmou a ascensão de Natalie Prass a um patamar a que se esperava que pudesse chegar. Tenha sido pela mudança de editora (a Spacebomb tinha uma banda residente à época em que Prass gravou o seu primeiro disco) ou por outra razão qualquer, a evolução não confirmou inteiramente as expectativas. Dificilmente será um mau concerto, mas pode a ficar a meio caminho entre a revelação e a confirmação, não sendo uma coisa nem outra. Surpreende-nos, Natalie.
Capitão Fausto: sábado, 00h30, Coliseu dos Recreios
O que é A Invenção do Dia Claro, álbum que os portugueses Capitão Fausto foram gravar ao Brasil mas que ainda não foi editado? Ainda não se sabe muito sobre ele. Sabe-se que a banda quis inspirar-se em alguns registos musicais brasileiros (a paixão pela roda de choro é mais do que assumida) sem subverter a identidade. Só que a identidade é mutável e no caso dos Capitão Fausto a mudança tem-se notado de disco para disco. Do indie-rock saltitante, jovial e com voz e guitarra em primeiro plano do primeiro disco (Gazela, de 2001) ao psicadelismo do segundo, Pesar o Sol, muito mudou. A renovação prosseguiu com a maior opulência pop-rock do terceiro disco, (Capitão Fausto) Têm os Dias Contados. Do álbum que aí vem, conhecem-se já dois singles, “Sempre Bem” e “Faço as Vontades”, nenhum dos quais especialmente entusiasmante. Por isso, e porque a organização garante que a banda irá descortinar pelo menos parte de um disco que ainda não se conhece, há expectativas e interrogações que aguardam resposta.
Jungle: domingo, 00h30, Coliseu dos Recreios
Popular mas não especialmente inventiva, a banda inglesa Jungle terá uma missão espinhosa a seu cargo: confirmar que conseguiu resistir ao efeito novidade do primeiro disco (homónimo, de 2014), que entretanto se desvaneceu, e mostrar ao vivo que o novo disco, For Ever, resulta melhor quando transposto para palco. A herança não é fácil: nos últimos dois anos, Branko e Moullinex prepararam concertos especiais de pândega e tornaram o Coliseu dos Recreios uma discoteca única no encerramento. Vamos tirar as dúvidas?