“Escrever é um trabalho de oficina. A matéria-prima é a língua, o artificie é o autor, a obra é o texto.” Era assim que Vitorino Nemésio descrevia o trabalho do escritor, a que se dedicou durante toda a sua vida. Publicou o primeiro livro quando tinha apenas 15 anos — o volume de poesia Canto Matinal” — e continuou a fazer esse “trabalho de oficina” até à sua morte, a 20 de fevereiro de 1978. Quando morreu, estava a trabalhar em Caderno de Caligraphia, que só viria a ser publicado vários anos depois, em 2003. Ao longo de mais de 60 anos de carreira literária, o escritor nascido na Praia da Vitória, na Ilha Terceira, produziu naturalmente uma obra extensa, não só no campo da ficção, onde é mais conhecido, mas sobretudo na poesia, talvez o seu primeiro grande amor.

Quarenta anos depois da sua morte, essa grande obra, uma das maiores da literatura portuguesa do século XX, não está só esquecida, está também inacessível a quem a queira descobrir. E foi por isso que a Imprensa Nacional – Casa da Moeda (INCM) aceitou a proposta da Companhia das Ilhas, uma pequena editora com sede na ilha do Pico, e avançou com uma nova edição da obra completa de Nemésio. A ideia inicial era fazer uma espécie de antologia, mas Duarte Azinheira, diretor editorial da Imprensa Nacional, achou que um ou dois livros não chegavam. Era preciso cumprir o “serviço público” que compete à editora, recuperar Nemésio e entregá-lo, renovado, a uma nova geração de leitores.

Em setembro, chegou às livrarias portuguesas o primeiro volume desta nova edição “com dupla chancela editorial”, que, retirado o aparato crítico da anterior coleção da INCM, pretende “chegar a um público mais vasto”. Foi feita para “um público culto, que se interessa por Nemésio, mas um público mais alargado”, explicou Duarte Azinheira na apresentação de Poesia (1916-1940), esta quinta-feira à tarde, na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), em Lisboa. Carlos Alberto Machado, editor da Companhia das Ilhas, que esteve presente na sessão, salientou que esta nova coleção vai também permitir que a obra de Nemésio chegue às escolas, sobretudo nos Açores, onde a obra do escritor é pouco conhecida.

O primeiro volume da coleção da obra completa de Vitorino Nemésio foi apresentado esta quinta-feira, na BNP, por Carlos Alberto Machado (Companhia das Ilhas), Duarte Azinheira (INCM) e o coordenador editorial Luiz Fagundes Duarte (DIOGO VENTURA/OBSERVADOR)

Poesia (1916-1940) é o primeiro volume dos de perto de 20 que serão publicados até 2021. Organizados por quatro séries — Poesia, Teatro e Ficção, Crónica e Diário, Ensaio e Crítica —, estes irão reunir cerca de 40 obras de Nemésio, editadas em vida e também postumamente, alguns inéditos e recuperar textos há muito perdidos, como as crónicas que escreveu para jornais de todo o país e do Brasil. Nestes últimos (talvez dois volumes) será possível encontrar “um Nemésio completamente diferente, o Nemésio do dia-a-dia”, como referiu Luiz Fagundes Duarte na BNP.

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“Se Bem Me Lembro”, o programa que o autor apresentou durante uma década na RTP, contribuindo assim para a “democratização da cultura através da televisão”, também entrará para esta coleção, que apresenta a obra de Vitorino Nemésio tal como ela é o próprio autor a entendia: “Como um todo, com diversas facetas”. As gravações foram salvas e transcritas”, explicou o coordenador editorial. Os volumes serão publicados por série, um de cada vez, e seguindo, tanto quanto possível, a cronologia do autor. Assim, a seguir a este livro de poesia, seguir-se-á um de teatro e de ficção.

“Teremos um Nemésio completo e inteiro”, afirmou Fagundes Duarte, defendendo que o escritor foi muito mais do que um apresentador de televisão, apesar de ser essa a imagem que muitos portugueses ainda guardam dele. “Fala-se muito dos escritores mas não se leem”, acrescentou o filólogo, chamando a atenção para o facto de a obra de Vitorino Nemésio estar maioritariamente indisponível, o que impede que esta chegue aos alunos e professores, apesar de a culpa ser “muitas vezes de quem tem responsabilidade na matéria”. “A escola continua a encher os exames com Fernando Pessoa mas há mais. Temos de criar condições para que haja obras acessíveis de Nemésio e outros, claro. Pelo que conheço, a poesia de Nemésio é da grande poesia de língua portuguesa do século XX.” A Companhia das Ilhas e a INCM estão a dar o seu “contributo”.

Uma vida inteira dedicada à poesia

Vitorino Nemésio publicou o primeiro livro de poesia em 1916. O último saiu já postumamente. É justo portanto dizer que a poesia preencheu toda a sua vida e que nela é possível encontrar “muitas das ideias estéticas que enformaram a poesia portuguesa do século XX”, como escreveu Fagundes Duarte na nota editorial de Poesia (1916-1940). “No entanto, conseguiu manter uma voz e uma postura muito próprias, combinando de um modo seguro, mas subtil, a erudição do académico com a genuinidade da inspiração de matriz popular açoriana.”

Tudo isto será possível encontrar na série de poesia da nova coleção, “que aborda o jovem Nemésio e o Nemésio da maturidade, que também fazia poemas de amor como se fosse um adolescente”, inaugurada com Poesia (1916-1940), o primeiro de quatro volumes da série homónima. Este encontra-se dividido em duas partes: uma primeira, com os poemas escritos por Nemésio entre 1916 e 1930, e uma segunda, com textos de 1935 a 1940. “Na primeira, encontram-se os poemas anteriores a La voyelle promise, ou seja, as miudezas (nugae) de juventude: os que apareceram em edição autónoma, ou aos quais o autor conferiu o estatuto de ‘livro’ — um conjunto de poemas, com uma determinada unidade interna, subordinadas a um título comum”, explicou Fagundes Duarte na nota editorial do volume.

Luiz Fagundes Duarte, filólogo e professor na Universidade Nova de Lisboa, é responsável pela coordenação editorial da coleção da obra completa de Vitorino Nemésio (DIOGO VENTURA/OBSERVADOR)

Ainda que, anos mais tarde, Embora Nemésio tenha renegado estas primeiras experiências poéticas e as tenha excluído do projeto de publicação da sua obra poética, a que deu o nome de Poesia, os responsáveis pela organização da nova coleção acharam por bem recuperá-los porque, como explicou Luiz Fagundes Duarte na apresentação desta quinta-feira, “atestam o percurso” do escritor açoriano. A segunda parte começa com o livro que Nemésio considerava ser fundador do seu percurso poético, La voyelle promise, e reúne as obras publicadas pelo até 1940. Assim, Poesia (1916-19140) inclui:

  • Canto Matinal (1916);
  • A Fala das Quatro Flores (1920);
  • Nave Etérea — Em Memória do Descobrimento do Cominho Celeste para o Brasil (1922);
  • Sonetos para Libertar Um Estado de Espírito Inferior (1930);
  • Poemas Dispersos;
  • La voyelle promise (1935);
  • O Bicho Harmonioso (1938);
  • Eu, Comovido a Oeste (1940).

Novo volume sai antes do Natal. Coleção continua em 2019

O segundo volume da obra completa de Vitorino Nemésio está em fase de revisão e deverá chegar às livrarias antes do Natal, de acordo com os responsáveis. Será o primeiro da série de Teatro e Ficção, e irá incluir as obras Amor Nunca MaisPaço do Milhafre e O Mistério do Paço do Milhafre. Apenas a primeira é uma peça de teatro, sendo as restantes contos que Nemésio publicou em 1924

Amor Nunca Mais foi, na verdade, a única peça que Vitorino Nemésio escreveu, quando tinha 19 anos. De pequena dimensão, foi feita à pressa para ser apresentada à companhia de teatro São Luís, então de passagem pela Terceira. Parece impossível, mas Nemésio conseguiu convencer a companhia a levá-la à cena no Teatro Agrense. Hoje, a peça pouco mais é do que “uma curiosidade” e até o escritor passou, a certa altura, a ignorar a sua existência. O seu nome “não aparece em lista nenhuma”, mas os responsáveis pela coleção decidiram incluí-la.

Uma vez que Amor Nunca Mais foi a única peça de teatro que Nemésio escreveu, isto significa que, a partir de 2019, a série Teatro e Ficção passará a ser apenas de ficção. É nesta que será incluído o grande romance do escritor e um dos mais importantes do século XX, Mau Tempo do Canal. O plano editorial prevê a publicação do mesmo para 2020.

Depois do volume de Paço do Milhafre, sairá o primeiro de crónica, “que reúne as crónicas inéditas publicadas em jornais que se perderam” e que nunca foram reunidas em livro, e o primeiro volume de ensaio, “que está a ser preparado”, adiantou Luiz Fagundes Duarte. “Vamos manter tanto quanto possível a cronologia nas diferentes áreas” em que ele trabalhou, salientou o coordenador, que espera a nova coleção da obra completa do escritor da ilha Terceira transforme “no público aquilo que Vitorino Nemésio já é — uma das grandes figuras da literatura portuguesa do século XX”.