Foram improváveis as circunstâncias em que Luis Lobianco descobriu Gisberta Salce Júnior – e o Observador teve um papel nessa história. O ator passava férias no início de 2016 em Teresópolis, a hora e meia do Rio de Janeiro, quando de repente escutou a “Balada de Gisberta” na voz de Maria Bethânia, um original de Pedro Abrunhosa gravado em 2007. “Tinha o desejo de fazer um projeto teatral e andava a pesquisar material que me emocionasse ou que me fizesse rir muito”, recorda o ator brasileiro, conhecido como um dos protagonistas da série humorística “Porta dos Fundos”.

“Naquele momento, com tempo livre, pude ouvir pela primeira vez com atenção o tema cantado por Maria Bethânia e fiquei profundamente emocionado. Não conhecia a história de Gisberta, nunca tinha ouvido falar dela.”

Não há coincidências. No mesmo dia – 21 de fevereiro de 2016 – cumpria-se uma década sobre a morte de Gisberta e o Observador publicava uma longa reportagem assinada por Catarina Marques Rodrigues: “Gisberta, 10 anos depois: a diva transexual que acabou no fundo do poço”. Luis Lobianco encontrou o artigo na internet e decidiu ali o seu espetáculo. “Interrompi as férias, comecei a chamar pessoas, a contar-lhes esta história e a fazer contactos com Portugal.”

O resultado apareceria em março de 2017, quando “Gisberta” se estreou no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio, com texto do jovem dramaturgo Rafael Souza-Ribeiro, encenação de Renato Carrera e interpretação de Luis Lobianco. O monólogo já esteve em digressão por várias cidades brasileiras e chega agora a Portugal pela promotora portuguesa H2N: terça e quarta, dias 27 e 28, no Sá da Bandeira, no Porto; e de 4 a 6 de dezembro no Tivoli BBVA, em Lisboa, com bilhetes entre 12 e 22,50 euros.

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Em conversa telefónica com o Observador, o ator explica o que o atrai em Gisberta e sugere que esta peça está no centro do furor ideológico que o Brasil vive hoje. “Acho que, no fim de contas, todo o teatro é político”, resume.

[vídeo de apresentação de “Gisberta”]

No local do crime

Nascido no Rio há 36 anos, Luis Lobianco afirma que sempre se apresentou como artista LGBT (sigla adotada por grupos de militância identitária para designar pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgénero). “A minha experiência é essa, sempre acompanhei de perto artistas LGBT, que são aqueles que ficam à margem do circuito cultural da cidade, e sempre fiz projetos de teatro que abordam a diversidade.”

Exemplo disso é “Buraco da Lacraia”, um cabaret que Luis Lobianco criou há seis anos com um grupo de artistas e que se apresenta na Lapa, centro boémio do Rio, onde ele vive. Ou o projeto “Rival Rebolado”, teatro de revista com números de transformismo no Rival, sala carioca quase centenária. “É muito a minha praia”, define Lobianco.

“Gisberta” surge, por isso, como sinal de continuidade. A pesquisa de Lobianco durou vários meses, “sem qualquer patrocínio”, e incluiu contactos com ativistas de direitos “trans” e visitas à família de Gisberta em São Paulo (a que chegou por intermédio da jornalista Catarina Marques Rodrigues), o que lhe permitiu ver fotografias e colher memórias. Fez ainda uma passagem pelo Porto, em 2016, quando ali esteve a apresentar o espetáculo “Portátil”. “Pude refazer a trajetória dela, onde viveu, as discotecas em que se apresentava e o local do crime”, recorda. “Foi determinante para o resultado e é o que ainda visualizo quando estou no palco.”

O assombroso caso teve cobertura na imprensa portuguesa e terá acelerado o debate público sobre questões transgénero em Portugal. A paulista Gisberta Salce Júnior tinha chegado ao Porto com 20 anos, trabalhara como transformista e prostituta e passara os últimos anos fragilizada pelo consumo de drogas e pelo vírus da sida. Aos 45, foi torturada e atirada para o poço de um edifício abandonado na Avenida Fernão de Magalhães, no Porto, às mãos de um grupo de adolescentes da Oficina de São José, instituição de solidariedade social para “jovens em risco”. A autoria do homicídio nunca foi dada como provada pelo Tribunal de Família e Menores do Porto.

Desde então, fizeram-se dois documentários alusivos, “A Gis”, de Thiago Carvalhaes, e “Gisberta-Liberdade”, de Jó Bernardo e Jo Schedlbauer, e ainda a peça “Gisberta”, de Eduardo Gaspar e Rita Ribeiro, e o romance “Pão de Açúcar”, de Afonso Reis Cabral. Todos quiseram exumar o caso sob diversos pontos de vista.

Brasil em carne viva

No espetáculo que agora se estreia em Portugal, ela não é personagem, mas figura evocada, mote para uma dissertação de choro e riso. “O texto começa por falar da experiência de início de vida, a minha própria experiência como criança viada, a criança que descobre o seu comportamento fora das normas”, explica Luis Lobianco.

“Conto a minha história e pego em histórias do público. Depois avançamos para a descoberta da sexualidade na adolescência, por aí fora. Em certo momento, chego a Gisberta para mostrar o que de mais grave pode acontecer a quem foi criança viada, as últimas consequências do preconceito.”

O termo “criança viada” tem sido empregue com sentido pejorativo, mas também reinterpretado como afirmação de identidades fora das normas. Ganhou peso no Brasil nos últimos anos, primeiro num blogue homónimo, depois através de um quadro da controversa exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”. A exposição foi cancelada em 2017 no Santander Cultural, em Porto Alegre, depois de protestos de grupos religiosos e políticos que apontaram uma alegada “apologia de pedofilia e zoofilia”.

Mesmo a imprensa brasileira independente classificou o cancelamento como censura, caso do jornal “Folha de S. Paulo”. Através de donativos, a mostra acabou por ver a luz do dia já este ano, em agosto e setembro, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro.

É neste contexto que a peça ganha ligação à atualidade política brasileira, o que Luis Lobianco não só não descarta como reafirma.  “Muitas pessoas tentam negar o facto de o Brasil liderar o ranking dos países que mais matam pessoas LGBT em todo o mundo. É quase como negar o holocausto. Existe hoje uma frente poderosa e reacionária, que tenta enfraquecer esta narrativa, mas esta peça procura fortalecê-la.”

Segundo diz, o Brasil só na última década iniciou um “debate aprofundado” sobre as pessoas LGBT. “Antes disso, éramos a comunidade GLS”, sigla para gays, lésbicas e simpatizantes, muito popular no Brasil. Esse debate fez também despertar movimentos identitários de negros e das mulheres e “gerou uma reação de pessoas mais conservadoras”, analisa o ator.

“Temos de somar a crise económica e uma grande deceção com o PT, o partido de esquerda que ficou muito tempo no poder e que está a ser investigado e acusado em casos de corrupção. Há um projeto político hoje para que quem já está na margem não tenha acesso à educação, para que a elite privilegiada se mantenha no poder. Aí entram as igrejas, que doutrinam as pessoas e muitas vezes oferecem a esperança e a segurança que o Estado já não dá. O resultado está à vista”, sustenta, em alusão à vitória presidencial de Jair Bolsonaro, considerado um extremista.

[“Balada de Gisberta”, por Maria Bethânia]

Polémica em Belo Horizonte

Neste ambiente de guerra cultural, também Luis Lobianco acabou no centro de uma disputa, sobretudo em Belo Horizonte, quando ali apresentou a peça, no início deste ano. Pelo menos uma organização “trans” acusou-o de se aproveitar da imagem de Gisberta, com a agravante, disseram, de o protagonista do espetáculo não ser “trans”. Objeção semelhante é ouvida com frequência contra a indústria americana de cinema e televisão, que muitas vezes opta por atores não transexuais (cisgénero) para personagens “trans”.

“A princípio, fiquei assustado, pensei que teria feito alguma coisa de errado e fiz uma reflexão com a equipa”, lembra. “Em seguida, percebi que boa parte das pessoas que estavam a criticar-nos, quase um ano depois da estreia, e depois de tantas pessoas LGBT já terem visto a peça, não sabiam que eu não interpretava Gisberta no espetáculo. Desde o início, nunca quis ser um homem grande a transformar-se numa mulher transexual em palco, porque isso não tem nada a ver comigo. Não queria a virtuose do artista, queria olhares de fora sobre Gisberta”.

Convidou os manifestantes de Belo Horizonte para assistirem à encenação, oferecendo-lhes bilhetes, mas continuou incompreendido. “Quando perceberam que a peça é um apelo para que tomemos as rédeas da nossa narrativa, começaram a atacar-me pessoalmente e já não à peça. Fiquei muito dececionado, porque queria dialogar e não conseguia.”

Peça estreia-se no Porto na terça-feira, dia 27

A existência de identidades historicamente marginalizadas, como é o caso da dos transexuais, poderá levar algumas pessoas a ataques ferozes em qualquer direção. É uma das explicações possíveis para o sucedido, segundo o artista. “Por eu ser uma pessoa conhecida no Brasil, muita gente quis aparecer naquele momento para fazer ecoar a sua agenda. Preferiram ficar no lugar da reprodução da violência em vez de experimentarem a empatia”, acusa.

“Mais tarde, quando voltámos ao Rio, tive protestos violentos à porta do teatro e percebi que havia partidos políticos de esquerda a financiar. Eles distribuíam panfletos com uma caricatura minha muito grosseira e a qualidade do papel era muito melhor do que a do papel que usávamos para o programa do espetáculo.”

O Brasil vive momentos de “tensão e susto”, descreve Luis Lobianco, e a ascensão da direita política “serve para que a esquerda faça uma reflexão e uma autocrítica”, porque “perdeu tempo a atacar o inimigo errado e não viu o inimigo real”. “Precisamos de mais generosidade”, defende.