Fernando Pessoa foi escolhido pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), atualmente presidida por Cabo Verde, para ser o patrono de um programa de intercâmbio universitário, semelhante ao Erasmus, que pretende fomentar a educação, formação e mobilidade de jovens dentro do espaço lusófono. Considerado um dos grandes escritores da língua portuguesa, a figura de Pessoa seria, à partida, unânime. Mas não foi isso que aconteceu. No fim de semana passado, começaram a surgir reações de desagrado por parte da comunidade angolana, que acusou Portugal de tentar impor uma personagem que não é consensual.
É esta a opinião, por exemplo, da presidente da PADEMA – Plataforma para o Desenvolvimento da Mulher Africana que, em declarações à Angop, replicadas num artigo de opinião publicado no Jornal de Angola, acusou Pessoa de ter sido “um escravocrata racista, que não pode ser indicado para patrono de um projeto cujos beneficiários são maioritariamente jovens descendentes de escravizados”. De acordo com Luzia Moniz, quando tinha 28 anos, o poeta português terá considerado que a escravatura era lógica e legítima, defendendo que “um zulu [da África do Sul] ou um landim [de Moçambique] não representam coisa alguma de útil neste mundo”.
Recorrendo ao livro Fernando Pessoa: uma (quase autobiografia), do brasileiro José Paulo Cavalcanti Filho, Moniz citou uma outra frase de Pessoa que também fazia alegadamente referência ao povo africano: “O legítimo é obrigá-lo, visto que não é gente, a servir os fins da civilização”. Nas mesmas declarações que fez à agência de notícias de Angola, a presidente da PADEMA defendeu que a alegada “ideologia racista” de Pessoa não teria sido apenas uma coisa de juventude, tendo sido consolidada pelo escritor quando este tinha 40 anos, quando escreveu: “Ninguém ainda provou, por exemplo, que a abolição da escravatura fosse um bem social”, questionando de seguida: “Quem nos diz que a escravatura não seja uma lei natural da vida das sociedades sãs?”.
No artigo de opinião do Jornal de Angola, Moniz, que se terá queixado durante a cerimónia de abertura do ano da CPLP para a Juventude na Assembleia da República, em Lisboa, citou ainda como exemplo a frase: “A escravatura é a lei da vida, e não há outra lei, porque esta tem que cumprir-se, sem revolta possível. Uns nascem escravos, e a outros a escravidão é dada”.
A escolha de poeta português “é um insulto aos africanos”
É por estas razões que Luzia Moniz acredita que “a figura escolhida pela CPLP para patrono de um projeto de intercâmbio universitário no Espaço de Língua Portuguesa é um insulto aos africanos”. “Se se pretende criar uma comunidade envolvendo as populações e não se limitando aos políticos, mais ou menos distraídos, é imperativo que o nome de Fernando Pessoa não figure em projetos comuns“, afirmou, sugerindo o poeta angolano Mário Pinto de Andrade, “um dos mais brilhantes intelectuais” da lusofonia, para o substituir. A presidente da PADEMA lamentou ainda que os países africanos membros da CPLP tivessem aceitado o nome de Fernando Pessoa sem levantar objeções. Moniz espera, no entanto, que a situação seja revertida em breve.
“Que Portugal, país onde a mentalidade esclavagista fascista ainda é dominante, tenha escolhido promover, branquear essa figura sinistra não me espanta. Agora, o que verdadeiramente me deixa perplexa é a aceitação pelos países africanos, as vítimas da escravatura”, escreveu no Jornal de Angola.
Ouvidos também pela Angop, outros angolanos, como o médico Miguel Kiassekoka e o sociólogo Manuel Luís Dias dos Santos, também se mostraram contra a escolha de Fernando Pessoa para o programa de intercâmbio. O primeiro classificou-a como “uma pretensão de Portugal continuar como guia do novo império” e Manuel Luís Dias dos Santos indicou-a como um sinal claro da “estratégia de Portugal”, que quer “procurar liderar e nomear os processos comuns” da comunidade de língua portuguesa.
As frases de Fernando Pessoa são mesmo racistas?
Os argumentos apresentados por Luzia Moniz têm como base frases retiradas de textos escritos por Fernando Pessoa em vários períodos da sua vida. Em declarações ao Diário de Notícias, foram vários os especialistas na obra do poeta português que chamaram a atenção para o perigo de retirar o que foi escrito do seu contexto.
As primeiras citações referidas pela presidente da PADEMA, e aqui apontadas, foram retiradas de um texto intitulado “Introdução ao estudo do problema nacional (ou Império)” que, segundo o Arquivo Pessoa, não tem data. Publicado pela primeira vez em 1979, num volume da Ática organizado por Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão, Sobre Portugal — Introdução ao Problema Nacional, este fala sobre os “três graus” que, na opinião de Pessoa, o imperialismo comportava. A parte final do terceiro parágrafo diz o seguinte:
“Recordemo-nos sempre que o fim de colonizar ou ocupar territórios não é civilizar a gente que lá está, mas sim levar para esses territórios elementos de civilização. O fim não é altruísta, mas puramente egoísta e civilizacional. É o prolongamento da sua própria civilização que o imperialismo expansivo busca e deve buscar; não é, de modo algum, as vantagens que daí possam advir para os habitantes desse país. A escravatura é lógica e legítima; um zulu ou um landim não representa coisa alguma de útil neste mundo. Civilizá-lo, quer religiosamente, quer de outra forma qualquer, é querer-lhe dar aquilo que ele não pode ter. O legítimo é obrigá-lo, visto que não é gente, a servir os fins da civilização. Escravizá-lo é que é lógico, o degenerado conceito igualitário, com que o cristianismo envenenou os nossos conceitos sociais, prejudicou, porém, esta lógica atitude. Povos, como o inglês, hipocritizaram o conceito, e assim conseguiram servir a civilização”.
A terceira frase aqui referida faz parte de “Régie, Monopólio, Liberdade”, escrito por Pessoa em 1926, quando o poeta tinha 38 anos. O texto foi originalmente publicado na Revista de Comércio e Contabilidade, números 2 e 3, editados em Lisboa em fevereiro e março de 1926. Mais tarde, foi integrado no segundo volume de Páginas de Pensamento Político, organizado por António Quadros em 1987. Pessoa, que trabalhou durante quase toda a vida como correspondente comercial em várias empresas da Baixa lisboeta, lidando diariamente com o mundo empresarial, interessava-se pelos mais diversos temas, incluindo pelo comércio. “Régie, Monopólio, Liberdade” surgiu na sequência da “questão chamada dos tabacos” que trouxe “de novo à superfície o problema batido e debatido de se se deve preferir o sistema de administração de Estado (que no caso particular dos tabacos é uso denominar régie), o sistema de monopólio privado ou o sistema de concorrência livre”, explicou Pessoa. O parágrafo onde a frase está inserida é este:
“A lei aparentemente mais justa, a lei mais de acordo com os nossos sentimentos de equidade, pode ser contrária a qualquer lei natural, pois pode bem ser que as leis naturais nada tenham com a nossa ‘justiça’ e em nada se ajustem às nossas ideias do que é bom e justo. Por o que conhecemos da operação de algumas dessas leis — por exemplo, a da hereditariedade —, a Natureza parece frequentemente timbrar em ser injusta e tirânica. Ora não há certeza que a Natureza seja mais terna para a vida social do que para a vida individual. Ninguém ainda provou, por exemplo, que a abolição da escravatura fosse um bem social. Ninguém o provou, porque ninguém o pode provar. Quem nos diz que a escravatura não seja uma lei natural da vida das sociedades sãs? Ninguém o pode dizer, porque ninguém sabe quais são as leis naturais da vida das sociedades e essa pode portanto ser uma delas. A velha afirmação de Aristóteles — aliás tão pouco propenso a soluções ‘tirânicas’ — de que a escravatura é um dos fundamentos da vida social, pode dizer-se que ainda está de pé. E ainda está de pé porque não há com que deitá-la abaixo. A essência do que em política se chama “conservantismo” nasce diretamente desta nossa”.
Por último, “A escravatura é a lei da vida, e não há outra lei”. A frase, que pertence ao texto que começa “Estou num dia em que me pesa”, pode ser encontrada com facilidade em qualquer edição do Livro do Desassossego, do ajudante de guarda-livros Bernardo Soares. Na edição de Teresa Sobral Cunha corresponde ao fragmento número 577 e na de Richard Zenith ao 167. Jerónimo Pizarro deu-lhe o número 318. O parágrafo a que a frase corresponde — o penúltimo na versão de Zenith — diz o seguinte:
“A escravatura é a lei da vida, e não há outra lei, porque esta tem que cumprir-se, sem revolta possível nem refúgio que achar. Uns nascem escravos, outros tornam-se escravos, e a outros a escravidão é dada. O amor cobarde que todos temos à liberdade — que, se a tivéssemos, estranharíamos, por nova, repudiando-a — é o verdadeiro sinal do peso da nossa escravidão. Eu mesmo, que acabo de dizer que desejaria a cabana ou caverna onde estivesse livre da monotonia de tudo, que é a de mim, ousaria eu partir para essa cabana ou caverna, sabendo, por conhecimento, que, pois que a monotonia é de mim, a haveria sempre de ter comigo? Eu mesmo, que sufoco onde estou e porque estou, onde respiraria melhor, se a doença é dos meus pulmões e não das coisas que me cercam? Eu mesmo, que anseio alto pelo sol puro e os campos livres, pelo mar visível e o horizonte inteiro, quem me diz que não estranharia a cama, ou a comida, ou não ter que descer os oito lances de escada até à rua, ou não entrar na tabacaria da esquina, ou não trocar os bons-dias com o barbeiro ocioso?”
E termina: “Tudo que nos cerca se torna parte de nós, se nos infiltra na sensação da carne e da vida, e, baba da grande Aranha, nos liga subtilmente ao que está perto, enleando-nos num leito leve de morte lenta, onde baloiçamos ao vento. Tudo é nós, e nós somos tudo; mas de que serve isto, se tudo é nada? Um raio de sol, uma nuvem que a sombra súbita diz que passa, uma brisa que se ergue, o silêncio que se segue quando ela cessa, um rosto ou outro, algumas vozes, o riso casual entre elas que falam, e depois a noite onde emergem sem sentido os hieróglifos quebrados das estrelas”.