É difícil separá-la do alter ego que a tornou famosa, talvez por isso as respostas ao nosso email fazem-se acompanhar de uma nota do agente, que assim de repente dir-se-ia que falhou uma carreira promissora no mundo da edição. “Ella deve sempre ser apresentada como Ella Mills, fundadora do Deliciously Ella, por exemplo, ou Ella Mills, autora e empreendedora, fundadora do Deliciously Ella. Não apenas como ‘Deliciously Ella'”. Acrescente-se que Ella, ainda a mesma pessoa, tomou a liberdade de “omitir” algumas das nossas perguntas e “reformular” uma ou duas outras. É pena, porque apesar de mais indigestas, poderiam oferecer respostas bem nutritivas.

A verdade é que a história de Ella não começa sem Deliciously Ella, o blogue que lançou em 2012, quando lhe foi diagnosticada uma doença crónica que obrigaria a transformar por completo os seus padrões alimentares. E muitos mais ingredientes faltariam a esta receita se ignorássemos as origens e filiações. Formada em História de Arte pela Universidade de St Andrews, Eleanor Laura Davan Woodward, de 27 anos, natural de Rugby, Warwickshire, Inglaterra, é filha do antigo deputado trabalhista Shaun Woodward e de Camilla, filha do político conservador Tim Sainsbury, o que faz de Ella tetraneta de John James Sainsbury, o merceeiro que há 150 anos daria origem a uma das mais famosas cadeias de supermercados do país.

Não é nova a confissão de que apesar de ter tido uma educação privilegiada cresceu com uma dieta menos sensata, mas Ella prefere não falar sobre eventuais erros do passado. Da mesma forma, passa adiante da herança Sainsbury, e da ironia do destino de dar seguimento à tradição merceeira da família, agora numa perspetiva verde. As Delícias de Ella – O Livro Cem por Cento Vegetariano, publicado no passado dia 14 pela Lua de Papel, é o mais recente compêndio verde da britânica e que, a avaliar pela editora, é já “o mais vendido de sempre em Inglaterra”, no segmento em que se inscreve.

“Adoramos granola; é indispensável no café, no escritório de Deliciously Ella e na nossa cozinha em casa. Ando há cinco anos a fazer variações da receita abaixo, mas esta é a minha favorita de sempre. A mistura torrada de nozes, amêndoas, flocos de coco e sementes de girassol com a baunilha, o xarope de ácer, a laranja e a canela é um sonho e prepará-la vai deixar-lhe a casa toda com um cheiro maravilhoso.”

Sete anos volvidos desde que começou a interagir com a comunidade de leitores, Ella , ex- Woodward, atual Mills, apelido que adotou depois de casar, em 2016, com Matthew Mills, lidera um pequeno império, e continua a alimentar o seu site, fiel ao mantra “Vive melhor, sê útil, torna os vegetais cool”. “As coisas cresceram imenso desde que lancei o blogue em 2012. Comecei quando a minha saúde física e mental bateu no fundo, depois de ser diagnosticada com uma doença crónica com impacto no meu sistema nervoso autónomo. Passei a interessar-me pelo poder das dietas e de um estilo de vida diferente e apaixonei-me pelos veggies. Comecei a cozinhar e a partilhar as minhas criações no blogue e de alguma forma isso descolou, de forma orgânica, mas muito rápida, de tal forma que passou a ser uma comunidade nas redes sociais com 2.5 milhões de pessoas. Depois uma app líder no mercado, um podcast, quatro livros bestseller, um espaço em Londres e vários produtos vendidos em 6 mil lojas pelo Reino Unido. Hoje somos uma equipa de 40 pessoas e giro o negócio com o meu marido, que é o CEO. Tem sido um corrupio e cada dia que passa mais gosto do que faço”.

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Falta apenas mencionar alguns percalços e eventuais apreensões, nomeadamente o facto de as suas partilhas nas redes se resumirem aos chamados “momentos perfeitos”, para alguns uma influência menos saudável. Não estranha que no reino dos tablóides, Mills tenha acabado nas páginas do Daily Mail — há poucos dias era fotografada grávida, na companhia do marido, durante umas férias, mediatismo que a autora desvaloriza. “Não me vejo nada como famosa, sei que as pessoas conhecem a nossa empresa e sabem o que fazemos no Deliciously Ella mas tenho uma vida bem pacata. Trabalho imenso, adoro passar tempo com a nossa equipa, fomentar o nosso negócio, e depois estar em casa com o meu marido e o meu cão. A fama não nos interessa nada e só queremos ser conhecidos por levarmos as pessoas que conseguirmos a tornarem-se um pouco mais vegetarianas.”

Na terra por excelência do fish and chips e da sheperd’s pie, um estilo de vida como este podia assemelhar-se a um ovni, pelo menos para a geração pré-Instagram. Ella recorda o papel importante que a comida sempre desempenhou na família — “foi a forma de estarmos juntos todos os dias e de arranjarmos tempo para funcionar como clã. Lembro-me de refeições incríveis, barulhentas, caóticas, com a minha mãe, o meu irmão e as minhas irmãs” — e reconhece que quando arrancou com o projeto “uma alimentação baseada em vegetais era muito impopular e poucas pessoas estavam familiarizadas com isso. Havia imensos preconceitos, de que devia ser aborrecida e sensaborona”. Entretanto, regista a “mudança cultural enorme ao nível da alimentação e na forma como olhamos para o seu impacto no nosso estilo de vida, na nossa saúde e na forma como nos sentimos. Também começámos a perceber que a forma como consumimos alimentos tem implicações diretas no ambiente e o poder que uma alimentação rica em vegetais pode ter na travagem das alterações climáticas.” Faz sentido que no seu site haja todo um separador dedicado à sustentabilidade.

O fantasma da monotonia não deixa de se instalar, pelo menos aos olhos dos mais céticos e daqueles que desconfiam da capacidade de renovação ao fim de centenas e centenas de receitas vegetarianas. Às tantas não parece tudo demasiado parecido, como quem repete a mesma receita? Não nos entendam mal: as prescrições são ótimas desde o primeiro volume lançado por Ella, que temos lá por casa e com frequência nos serve de guia, mas por vezes tememos que a inspiração se esgote. “Tudo o que fazemos deriva da nossa comunidade de leitores, olhamos para aquilo que eles procuram, o que andam a fazer, o que pedem no nosso espaço físico, aquilo que voa num instante e aquilo que não resulta de todo. Temos uma cozinha enorme no escritório portanto a equipa está sempre a testar novas receitas e dar feedback sobre isso.”

Mas vamos a uma jornada típica em termos de alimentação. O dia de Ella Mills começa com o seu muesli Bircher com leite de coco, manteiga de amendoim e compota de fruta. Já o almoço, é o resultado do trabalho de equipa, partilhado também entre todos. “É uma seleção de pratos do café ou de receitas que andamos a testar — mais uma vez, é uma forma de reunir toda a gente e de fomentar o espírito de comunidade”. Há favoritos, claro, e todos eles estão à distância deste manual de confeção, com o respetivo elenco de ingredientes. O chili de cinco feijões e pão de milho é um dos eleitos, a que soma a batata doce com amendoins tostados, “e adoro os dias em que há brownies a sair do forno!”, admite a autora, que tem apostado no caril do Sri Lanka ao jantar. Para levantar um pouco do véu, leva batata doce e abóbora cozinhadas com pimenta encarnada e misturada com uma base de cebolas encarnadas, pimentos verdes, alho, especiarias e leite de coco.

“Faço muitas vezes grandes caris como este para os meus amigos e familiares e são sempre um sucesso. Também são uma boa forma de apresentar refeições à base de vegetais, já que um caril é algo que as pessoas reconhecem. Este é um dos meus preferidos, por ter tantos sabores e texturas diferentes”

Um dos inputs mais interessantes está associados aos guilty pleasures, conceito que Ella detesta, e pretexto para discorrer sobre uma das cruzes modernas. “É um paradoxo de todo o tamanho — se algo nos dá prazer devia apenas trazer alegria, sem um sentimento de culpa. Acho que esta é uma das questões mais fortes associadas à forma como estamos a comer neste momento; há demasiados conflitos emocionais, sentimentos de negatividade e privação ligados às refeições. Adoro viajar, conhecer novos restaurantes e pratos, desfrutar de uma refeição com amigos e família e comer uma dose extra de sobremesa no final. É comida para a alma!”

Mills adora cozinhar em casa — “é super relaxante e uma forma de nos ligarmos com a família e os amigos” — e tem poucas dúvidas sobre o que andaremos a comer quando tentamos imaginar as mesas lá para 2050, que afinal não está assim tão distante. “Penso que uma alimentação baseada no que plantamos será a norma. É a única solução possível quando pensamos no ambiente e estamos a ver que pode ser saboroso e fazer-nos maravilhas.”