Um relatório elaborado entre 2013 e 2015, a pedido do Governo português, indica que é possível dar mais eficiência e qualidade às cirurgias no Serviço Nacional de Saúde. Ou seja, o SNS poderia estar a fazer mais 100 mil cirurgias por ano do que acontece atualmente. O estudo, coordenado pelo cirurgião Jorge Penedo, vai começar a ser trabalhado só em 2019, após a nomeação de um grupo de trabalho para a otimização do SNS, liderado pelo também cirurgião Pedro Correia da Silva. O trabalho de 2015 (Avaliação da Situação Nacional dos Blocos Operatórios) surgiu como consequência de uma sugestão do relatório final do Grupo Técnico para a Reforma Hospitalar, em 2011, em que participou Jorge Penedo. Outros dois estudos, também de 2015, ligados ao aproveitamento de equipamentos médicos pesados (como as máquinas de TAC) e à melhoria dos cuidados intensivos  ficaram igualmente na gaveta.

Durante os próximos quatro meses, 13 especialistas vão construir uma proposta para melhorar o funcionamento dos blocos operatórios no serviço público de saúde. O grupo vai basear-se no “relatório magnífico” de 2015, como o classificou Pedro Correia da Silva em declarações à Rádio Renascença. “É um manancial de informação extraordinário, mas não teve a sequência lógica que era utilizar essa informação para fazer uma proposta de melhoria da rentabilidade dos blocos operatórios”, assinalou o coordenador do grupo de trabalho, que irá trabalhar de forma gratuita.

“É um trejeito histórico. Em Portugal fazem-se relatórios e depois não se aproveitam”

No total, se a otimização do SNS tivesse sido aplicada em 2015 poderia resultar em mais 108 mil cirurgias por ano, de acordo com as estimativas do estudo original. O atraso na aplicação das recomendações é inexplicável para Pedro Correia da Silva: “Há trabalho insano que é feito por comissões nomeadas pelos governos e que depois ficam a apodrecer nas gavetas e provavelmente isto não foi um fenómeno que se passasse pela primeira vez”. Mas o coordenador do novo grupo de trabalho — nomeado em Diário da República a 27 de fevereiro de 2019 — desvalorizou o atraso, em declarações à Rádio Renascença: “O que interessa agora é que alguém reparou que havia um trabalho extraordinário que tinha sido feito ao qual não tinha sido dado a sequência lógica. Para Portugal é uma derrapagem pequena”.

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Ao Observador, Jorge Penedo devolve as questões sobre os mais de três anos que o relatório que coordenou esteve na gaveta: “Devia perguntar ao primeiro-ministro porque é que o guardaram”. Mas garante que a demora em tirar consequências do estudo não é caso único: “É um trejeito histórico. Em Portugal fazem-se relatórios e depois não se aproveitam”. Jorge Penedo deixa até a sugestão de se estabelecer um registo público com todos os estudos encomendados pelo Governo, “para que as pessoas conheçam o trabalho que já se fez”.

O objetivo do grupo é agora encontrar os melhores exemplos indicados no estudo e perceber como podem ser replicados à escala nacional, minimizando a disparidade de serviço entre os grandes centros hospitalares e as unidades de saúde mais isoladas.

Mas Jorge Penedo avisa que “Portugal tem uma tendência natural para aplicar a mesma coisa de forma igual em todo o lado“, algo que deve ser evitado neste caso por existirem realidades muito distintas, por exemplo, nos métodos de governação dos blocos operatórios. Há recomendações comuns, no entanto, como a criação de um glossário nacional para a terminologia usada nos blocos operatórios: “É impensável que as palavras num hospital signifiquem uma coisa e noutro tenham uma interpretação diferente“. Também o desenvolvimento de um plano de negócios anual para cada bloco operatório deveria ser hábito, considera.

O processo passa pela homogeneização de procedimentos como forma de rendibilizar a capacidade já existente no Serviço Nacional de Saúde. “Se formos honestos reconhecemos que se pode fazer mais e melhor”, admitiu Pedro Correia da Silva, garantindo que “em termos de qualidade dos gestos, do nível técnico dos equipamentos” Portugal está ao nível de hospitais estrangeiros, apesar de não conseguir “tirar, em termos de números, de rentabilidade, aquilo que outros conseguem”.

A prioridade é garantir uma melhoria da “gestão hospitalar, de mais organização, de uma metodologia”. Ainda assim, pode ser necessário “aumentar os níveis médios de recursos humanos” para aproveitar devidamente a capacidade instalada do SNS. Novamente, o trabalho de 2015 sublinhava a importância de “promover a plena utilização das salas operatórias”, o que passaria por “garantir a capacidade mínima em recursos humanos”.

Melhorar o SNS é “uma questão de eficiência” dependente de vontade política

Ao Observador, Jorge Penedo explicou que melhorar o funcionamento dos blocos operatórios depende da disposição dos governantes para assumir um compromisso político. “Quando se fazem mais 100 mil cirurgias, a despesa aumenta de forma proporcional”, explica, mostrando que tornar o SNS mais produtivo é uma escolha com consequências políticas.

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O objetivo ao melhorar a eficiência dos hospitais públicos é, idealmente, aproximar a produção da capacidade máxima dos recursos disponíveis: “Os blocos operatórios funcionam através da conjunção da capacidade instalada — o espaço físico, a medicação e os recursos médicos — e dos profissionais de saúde que lá operam”, sublinha o cirurgião. É através da correspondência dos recursos humanos à capacidade instalada dos hospitais que se pode maximizar a efetividade do SNS, um ajuste que representa, necessariamente, um custo financeiro. “Neste momento há capacidade instalada para se produzir mais no público”, garante Jorge Penedo, o que não há são “recursos humanos, desde anestesistas a assistentes operacionais”.

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Olhando para o SNS em 2015, o trabalho coordenado por Jorge Penedo referiu uma “distribuição assimétrica dos blocos operatórios entre regiões”, a que se alia uma “elevada variação” no cumprimento dos requisitos materiais mínimos para o funcionamento dos blocos (“mesmo entre blocos operatórios da mesma entidade”).

30 medidas: dos incentivos à performance a um sistema de contabilidade universal

A melhoria do SNS não depende apenas do reforço dos recursos humanos. O relatório de 2015 faz 30 recomendações que, avisa Jorge Penedo, “devem ser vistas como um todo”. Uma recomendação central — e repetida por Jorge Penedo nos outros relatórios que coordenou sobre o SNS — passa pela criação de uma base de dados informática e centralizada para o SNS que categorize os recursos disponíveis em cada unidade de saúde, a procura em cada instituição e os detalhes da sua gestão. “Sem registo é estar sempre a navegar à vista”, sublinha, continuando: “Se tivermos dados podemos prever tendências, colmatar falhas e distribuir recursos de forma ideal”.

Uma falha a colmatar, por exemplo, é a falta de dados sobre o equipamento médico pesado nos hospitais (como as máquinas de TAC, por exemplo). Por não existirem estes dados, o estudo de 2015 teve de ser desenvolvido através de questionários individuais a cada hospital do SNS. As lacunas na compilação de informação levaram, por exemplo, a que não fosse possível elaborar uma análise global aos custos dos blocos operatórios em Portugal, por os hospitais apresentarem informações com “várias lacunas e incoerências”.

O relatório nota a necessidade de adotar “medidas de racionalização das despesas, diminuição do desperdício, promoção da qualidade e de melhoria de eficiência na organização dos prestadores e dos recursos utilizados na prestação de cuidados de saúde a par com um exigente controlo de qualidade”.

A definição de um sistema de incentivos baseados na performance, a criação de um método nacional para a medição de eficiência dos blocos operatórios, a uniformização dos sistemas de contabilidade em todo o SNS, e o desenvolvimento de um sistema de avaliação de cancelamento de agendamentos, são outras recomendações do relatório de 2015.

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Para Jorge Penedo, para além de se estudar como tornar mais eficiente o Serviço Nacional de Saúde é necessário compreender as formas mais eficazes de investir na saúde a nível nacional, seja no setor público seja no privado. “Isto já é uma opção política”, admite, “mas é impossível fazer uma escolha política quando não se sabe o que é que existe“. Já em 2015, o trabalho coordenado por Jorge Penedo pedia a “análise da capacidade instalada no setor privado e social”.

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Outros dois estudos coordenados por Jorge Penedo ficaram na gaveta

O Governo também “não tomou qualquer iniciativa”, nas palavras de Joge Penedo, em resposta à Carta de Equipamentos Pesados e a Avaliação da Situação Nacional das Unidades de Cuidados Intensivos. O primeiro procurava “determinar a capacidade instalada de equipamentos médicos pesados pertencentes às áreas de Medicina Nuclear, Medicina Hiperbárica, Radiologia e Radioncologia, que integram o Serviço Nacional de Saúde”. O segundo dedicava-se à “melhoria do nível de eficiência e o aumento da produtividade e custo-eficácia dos recursos empregues em Medicina Intensiva”.

O trabalho relativo aos equipamentos médicos pesados recomendava a catalogação dos recursos, o abate formal dos equipamentos inoperacionais e a compra para o SNS de “pelo menos um exemplar de cada tipologia de equipamento permitindo assim ao sector público acompanhar a evolução tecnológica, oferecendo aos utentes cuidados inovadores”. Adicionalmente. o estudo pedia um reforço na preparação dos profissionais, apostando-se na formação de técnicos especializados: “Será totalmente incompreensível a não rentabilização de equipamentos por ausência de recursos“.

O estudo sobre a otimização das unidades de cuidados intensivos apontava para o cumprimento de um número mínimo de camas, tanto para adultos como em pediatria, a melhor articulação entre unidades do mesmo hospital, o desenvolvimento de modelos para a identificação preventiva de doentes e a abolição do internamento de crianças nas unidades destinadas a adultos, salvo “em situações limite”. O relatório pede ainda a profissionalização do “transporte inter-hospitalar de doentes, promovendo uma maior articulação entre os hospitais e o INEM”.