“Mas afinal que raio de auditoria foi esta?” A pergunta, com múltiplas variações, estava na boca de vários deputados da comissão de inquérito à gestão da Caixa Geral, no final da primeira audição: à partner da EY Florbela Lima. No final de quatro horas de perguntas — num registo algo raro de pergunta e resposta imediata — os deputados e os jornalistas ficaram com muitas dúvidas e algumas conclusões não muito reconfortantes:

  • A EY não fez, porque não quis nem tinha mandato para isso, uma análise qualitativa sobre as decisões das administrações da Caixa de conceder ou deixar de conceder determinados créditos que se revelaram ruinosos. Ou seja, à pergunta “foi bem ou mal feito?”, a resposta foi “não nos compete responder a isso”, porque a consultora só analisa se os órgãos da CGD justificaram ou não a sua decisão. “E qualquer justificação apresentada pelos órgãos competentes da Caixa serviu”, disse Florbela Lima.
  • A EY também não fez, porque não quis, “considerações” sobre o racional por detrás das operações de crédito mais problemáticas. Perguntou o PSD: Foram mais ruinosos nos anos de 2005 a 2008? E nos anos da troika houve ou não falta de registo de imparidades, perguntou o PS?. Houve créditos atribuídos por favor, questionou o PCP? A resposta da partner da consultora foi muito semelhante: não faria juízos de valor, até porque não se pode fazer uma correlação direta entre as perdas originadas por determinado crédito e a ausência do cumprimento de regras na sua concessão. “Há muitos outros fatores externos que podem ter influenciado a evolução do crédito”.
  • A EY entregou um trabalho para o qual não conseguiu obter informação essencial para avaliar quatro dos créditos mais problemáticos. E estes foram responsáveis por muitos milhões de euros em perdas. Porquê, perguntou o CDS? Porque a CGD não a disponibilizou. E a EY pediu? Sim. “Relativamente a contratos, pareceres, despachos, no fundo a informação mínima crítica considerada por nós relevante para fazer a análise (…), ela não nos foi disponibilizada”. Porquê? Não disse.

A deputada do CDS-PP Cecília Meireles insistiu. Então não há contratos na CGD que atestem a concessão de vários dos 25 créditos mais problemáticos? É que se não há contrato, “no limite, esta pessoa pode nem ser devedora”.

Se a Caixa não tem nenhuma prova de que a pessoa recebeu aquele dinheiro”, que “aparece como tendo saído da Caixa, mas não há nenhum suporte jurídico de ele ter saído ou daquela pessoa ser devedora”.

“Eu não estou a dizer que não existe contrato, estou a dizer que o contrato não nos foi disponibilizado”, ressalvou a responsável. Portanto, são três os créditos para os quais não há informação essencial? E mais um, que já está no Ministério Público, referiu a responsável. Estes quarto créditos problemáticos fazem parte de um total de 60 cuja informação não foi disponibilizada à EY. 

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Pode ler aqui na íntegra, sem nomes ou números rasurados, o relatório final da auditoria à CGD

Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, também quis saber quanto é que ainda devem à CGD alguns dos maiores incumpridores listados na auditoria. E posso saber isso? “Creio que com esta auditoria não consigo perceber se estas dívidas registadas (referentes a algumas das empresas) foram imparizadas ou abatidas…”.”Exatamente”, confirmou a técnica da EY. Porque foram analisadas algumas operações dos maiores devedores, mas não a posição total do devedor no balanço da Caixa.

E quem é que a EY ouviu no âmbito do trabalho efetuado ao longo 11 meses, de 2017 a 2018, perguntou também o CDS? “Quem ouvimos? Tomámos a decisão de chamar os diferentes presidentes do conselho de administração e dar-lhes a possibilidade de eles chamarem quem entendessem. E reunimo-nos as vezes que eles entenderam”. O procedimento, explicou Florbela Lima, não foi igual para todos.

Os nomes e os milhões apagados da auditoria à Caixa. As 200 operações que provocaram perdas de 1.760 milhões

“Alguns vieram sozinhos e só tiveram uma reunião. Outros preferiram várias reuniões e vieram com a sua equipa”, completou. Então conseguiram ouvir Armando Vara?, questionou o PSD. Não. O presidente do conselho de administração da Caixa da altura, Carlos Santos Ferreira, não quis. Ponto final nessa linha de questões.

Os deputados riam-se uns para os outros, mesmo a partir de quadrantes (supostamente) adversários. Então que raio de auditoria foi esta? A técnica da EY defendeu o seu trabalho. “Esta auditoria é a auditoria certa, na medida em que elenca que normas foram cumpridas — não quem foram os intervenientes ou não. O que não fomos contratados para fazer foi dar esse passo seguinte”, ou seja, avaliar qualitativamente a decisão tomada. Mas este trabalho não tem como termos de referência “aprofundar a informação acerca de indícios de práticas ilícitas, com vista ao apuramento de responsabilidades”? “O nosso trabalho é um passo essencial para dar esse passo seguinte”, que é apontar responsabilidades, respondeu Florbela Lima. Mas não dá esse passo, nem podia dar.

Grupo Espírito Santo responsável pelos prejuízos da Caixa em 2014 e 2015

A audição, ainda assim, trouxe novidades. Poucas, mas trouxe. Em primeiro lugar serviu para a EY confirmar que os 519 milhões de euros de perdas da Caixa em 2014 e 2015 tiveram um interveniente que muito impactou as contas do banco público: o Grupo Espírito Santo (GES). Mas até isso quase foi arrancado a ferros a Florbela Lima, que por várias vezes pediu ao presidente da comissão, Luís Leite Ramos (PSD), se tinha mesmo de referir nomes e empresas em concreto.

E quando o PS lhe perguntou sobre a utilização da operação de Espanha para camuflar as contas da Caixa, a técnica hesitou: como a operação era fora de Portugal estaria ao coberto do sigilo bancário… espanhol. Os deputados riram-se, Luís Ramos Leite disse que não, não estava a coberto de nada disso e Florbela Lima respondeu.

Não disse muito. Sim, “houve cedências de créditos” que acabaram por resultar em limpeza de balanços da Caixa Geral. Mas pormenores além dos que já constavam na auditoria, poucos.

Na quarta-feira há nova audição, e desta vez os deputados vêm preparados para uma ronda “mais política”. Perante os deputados estará o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa. No dia seguinte o seu antecessor, Vítor Constâncio.