Podia ter sido um momento de ataque concertado ao Governo, que esteve toda a semana debaixo de fogo por causa das relações familiares no Executivo socialista e cuja primeira baixa estava bem fresca na memória, mas acabou por ser mais uma espécie de pacto de não agressão — ou não teriam todos telhados de vidro. À esquerda e à direita, (quase) ninguém ousou tocar no assunto, e António Costa tinha a estratégia bem afinada: disse que a questão era nova, nunca antes tinha sido colocada, e portanto era preciso a comissão de transparência do Parlamento pronunciar-se sobre qual o limite , e qual o critério, para as nomeações de familiares. O “elefante no meio da sala” é, afinal, para Costa “um tema sério” que deve ser esclarecido.

Já com cheiro a campanha eleitoral, o debate quinzenal desta quinta-feira ficou ainda marcado por um ataque cerrado do PS e, particularmente, de António Costa, ao PSD — que diz estar com “raiva” –, e ainda por um insólito momento em que Eduardo Ferro Rodrigues pareceu estar com saudades do lugar de deputado, tendo sido acusado de parcialidade. Se não viu o debate, eis os momentos-chave.

Relações familiares no Governo? “Telhados de vidro” ou um tema “infantil”

Foi a surpresa do debate. Numa altura em que o secretário de Estado do Ambiente tinha acabado de se demitir na sequência da notícia do Observador que dava conta de que tinha nomeado um primo para o seu gabinete, o tema demorou a ser posto em cima da mesa. Fernando Negrão, o primeiro a falar, fez uma pergunta, duas perguntas, e só à terceira puxou o assunto. Mas com pinças.

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No preâmbulo, o líder parlamentar do PSD defendeu que se tinha chegado à fase “infantil” do debate sobre primos, tios e sobrinhos, e ainda ensaiou um pedido de desculpas prévio dizendo que “há respeito mútuo” entre Governo e PSD, e antecipando que Costa lhe podia atirar com o argumento de que “todos temos telhados de vidro”. Dito isto, lá fez a pergunta incómoda: “Não consegue nomear pessoas qualificadas para exercer funções nos seus gabinetes sem serem familiares?”. Foi, de facto, a única pergunta que se ouviu sobre o tema. Assunção Cristas começou a sua intervenção dizendo desde logo que ia “deixar de lado as questões da família socialista e olhar antes para o país”, e de Catarina Martins e Jerónimo de Sousa não se ouviu uma única palavra.

O desafio de Costa aos deputados

Nas sucessivas respostas que foi dando sobre o tema, o primeiro-ministro tentou sempre desvalorizar o ‘familygate’. Ridicularizando alguns casos e desmentindo outros, António Costa foi procurando esvaziar a polémica e reduzi-la a um número insignificante. Para o primeiro-ministro, só houve um caso verdadeiramente grave, que ficou resolvido em poucas horas, com a demissão tanto do Secretário de Estado do Ambiente como do primo que tinha nomeado para adjunto.

No entanto, o primeiro-ministro vê nesta polémica — que considera exagerada — uma oportunidade para se legislar sobre os critérios de nomeação e fez questão de o referir no debate quinzenal desta quinta-feira. António Costa desafiou os deputados a levarem o tema a debate e lembrou que existe uma Comissão da Transparência em funcionamento com plenas competências para legislar sobre esta matéria. “É uma questão que merece ser discutida porque nunca foi levantada anteriormente: onde se traça a fronteira?”, questionou o Chefe de Governo. Depois do desafio para se iniciar um debate sério, Costa deixou escapar uma insinuação de que os casos só têm tido tanta repercussão por questões eleitorais.

Costa e os “raivosos” do PSD. Haja campanha e sobe o tom

Era por esta razão que Fernando Negrão não queria tocar no tema dos membros da família no Governo. Ou melhor, foi por esta razão que o fez com pezinhos de lã. Costa estava preparado para o atacar, dizendo que o PSD só fala de “casos” para desviar as atenções do “sucesso da solução governativa”. E mais, dizendo que o PSD (e Cavaco Silva, que apareceu ontem ao lado de Rio na apresentação do livro de Joaquim Sarmento) está “raivoso” por causa dos sucessos alcançados.

O momento que ontem juntou Cavaco, Joaquim Sarmento (conselheiro do PSD na área das finanças públicas) e Rui Rio foi, de resto, lembrado por António Costa e pela bancada do PS várias vezes ao longo do debate. Para o PS, as propostas económicas que constam do livro de Sarmento, são a prova de que Rui Rio já tem um ante-programa eleitoral e que ele passa por aumentar o IRS para quem atualmente não paga IRS, aumentar o IVA da restauração, não reduzir o preço das propinas, não reduzir as horas de trabalho semanal na administração pública e não reduzir o preço dos passes de transportes públicos. “Estão a exprimir a raiva que a direita tem aos sucessos desta política”, disse Costa, prometendo ao PCP que iria continuar o caminho que têm percorrido para que o PSD e Cavaco possam ficar “raivosos, como merecem”.

“Vou reprimir-me”. Os comentários de Ferro Rodrigues que irritaram a direita

Um dos momentos que mais irritaram os deputados de PSD e CDS não veio de nenhuma das bancadas do hemiciclo. Veio diretamente da mesa e logo pela voz do Presidente da Assembleia da República. Quando Fernando Negrão questionou o primeiro-ministro sobre as alegadas pressões do Governo para condicionar relatório anual da OCDE, Ferro Rodrigues decidiu intervir antes de dar a palavra a António Costa.

“Vou reprimir-me porque estive muito tempo na OCDE e sei como é que estes relatórios são feitos”, disse o Presidente da Assembleia da República. O comentário não caiu bem nas bancadas de PSD e CDS, que rapidamente começaram a protestar com a intervenção. Assim que voltou a assumir a palavra, Fernando Negrão condenou a atitude e lamentou que Ferro Rodrigues não “se tivesse reprimido mais”. Uma crítica que deixou o Presidente da Assembleia da República imperturbável. “Reprimi-me bastante, bastante”, disse.

Este momento de confronto entre direita e Ferro Rodrigues não é novo nesta legislatura e voltou a repetir-se neste debate. Mas com o CDS. Depois de António Costa ter recusado responder a uma intervenção de Assunção Cristas, Ferro Rodrigues devolveu a palavra aos centristas, aceitando a recusa do primeiro-ministro em responder. “Já se percebeu que o primeiro-ministro fala quando e se bem lhe apetece na Assembleia da República. Isto é uma nova interpretação do regimento?”, questionou um visivelmente irritado Nuno Magalhães. A pergunta não teve resposta e o bate-boca ficou por aqui.

As condições do BE para haver acordo na lei de bases da saúde

Catarina Martins trouxe o tema da lei de bases da Saúde para o debate. A discussão deste diploma tem pendido nos últimos tempos para um entendimento do Governo com os partidos de esquerda. A solução não agrada a Marcelo Rebelo de Sousa, que ameaçou vetar um acordo saído diretamente do seio da ‘geringonça’, mas nem isso parece ser um obstáculo. Os limites deste eventual entendimento à esquerda são outros e a líder do Bloco de Esquerda fez questão de traçar três condições: os bloquistas pediram o fim das taxas moderadoras sobre atos médicos prescritos; o fim das PPP na Saúde; e a garantia de que o recurso a privados seja feito somente quando não há capacidade de resposta do serviço público. Se estas três condições forem aceites pelo Executivo, o apoio do Bloco de Esquerda estará garantido.

António Costa não se comprometeu. Lembrou os bons momentos da relação com o Bloco de Esquerda, atacou o PSD, mas não deixou garantias sobre o cumprimento das exigências estabelecidas por Catarina Martins.

Centeno também é recordista da carga fiscal? Cristas insiste, Costa resiste

Cristas não queria falar do “familygate” e falou antes de um dos temas que não tem largado: a carga fiscal que é agora a “mais alta de sempre”. “Nunca o Estado se apropriou tanto do esforço das famílias e empresas. Agora, é preciso trabalhar mais 5 dias para pagar ao fisco. É quase metade do ano para pagar os impostos”, disse. Mas Costa respondeu o que responde sempre que a questão se coloca: a carga fiscal só subiu porque a economia cresceu e gerou mais receita.

Ou seja, explicou Costa, não é preciso trabalhar o equivalente a mais 5 dias para pagar ao fisco, mas é sim preciso trabalhar mais 91 milhões de dias, que é o número equivalente às pessoas que estavam no desemprego e que agora passaram a estar empregadas. Quem tem razão? Em sua defesa, Cristas ainda atirou com uma frase do próprio Mário Centeno, que em 2016 disse que no ano seguinte o mais importante era conseguir uma redução da carga fiscal, que isso era “o mais importante do ponto de vista macroeconómico”.