Todos eles saíram do anonimato pelas mesmas razões: divulgação de informações confidenciais e, em alguns casos, classificadas. Mas embora sejam, muitas vezes, postos no mesmo saco, Julian Assange, Chelsea Manning, Edward Snowden e Rui Pinto têm muitas diferenças que os afastam. São todos divulgadores — é certo —, mas nem todos são whistleblowers — denunciantes reconhecidos — e protegidos — pela lei enquanto tal. É, aliás, a forma como obtiveram a informação e como, depois, escolheram divulgá-la que os distingue.
Estes nomes voltaram à ribalta com a detenção do o fundador do Wikileaks, Julian Assange, esta quinta-feira, após quase sete anos asilado na embaixada do Equador em Londres: o de Chelsea Manning, não só por ter sido uma das fontes de Assange, mas porque a justiça americana acusou o fundador do Wikileaks de um único crime de conspiração, nomeadamente por ter conspirado com Manning para revelar documentos secretos; o de Edward Snowden pelas suas próprias mãos, ao reagir contra a detenção de Assange, através do Twitter; e o de Rui Pinto, por ser um caso (português) que se assemelha ao de Assange.
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Quem é quem e o que divulgaram?
Julian Assange — jornalista, 47 anos, australiano, mas também com nacionalidade equatoriana — fundou o site WikiLeaks em 2006, quando começou a divulgar informações nunca antes conhecidas e que lhe valeram vários prémios. Mas foi em 2010 que o mundo ficou de olhos postos neste hacker, quando o site que tinha fundado divulgou imagens de soldados americanos a disparar contra civis no Iraque, mais de 500 mil documentos secretos relacionados com o envolvimento dos EUA no Afeganistão e no Iraque e à volta de 250 mil telegramas diplomáticos do Departamento de Estado dos EUA. Uma das fontes destes mais de 700 mil documentos era Chelsea Manning, militar do Exército norte-americano.
O caso de Edward Snowden, antigo analista da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos, chegou anos depois. Em 2013, Snowden divulgou informações secretas de segurança dos EUA e revelou alguns dos programas ilegais de espionagem que o país usava contra os próprios cidadãos norte-americanos. O ex-analista forneceu dados a jornalistas de vários meios de comunicação que, depois, os trataram e publicaram. No dia 5 de junho desse ano, o jornal britânico The Guardian publicou a primeira reportagem sobre esses programas de espionagem.
Rui Pinto é o caso mais recente. Foi detido em janeiro deste ano, na Hungria, e assumiu ser um dos rostos do Football Leaks, plataforma digital que tem denunciado casos de corrupção e fraude fiscal no universo do futebol. O pirata informático terá entrado, em setembro de 2015, em sistemas informáticos do Sporting e no fundo de investimento Doyen Sports e divulgado, depois, documentos secretos, como contratos de futebolistas. A partir daí, continuou a publicar documentos semelhantes, mas também correspondência pessoal e dados de outros casos, mesmo que não relacionados diretamente com jogadores ou com suspeitas daqueles crimes.
O que pode acontecer a Rui Pinto e aos segredos que estão nos seus computadores?
Qual deles é, afinal, um whistleblower?
Enquanto Julian Assange tem uma causa pela “transparência total”, Edward Snowden ou a Chelsea Manning juntaram-se a uma causa porque “estavam a fazer o seu trabalho, aperceberam-se de um conjunto de táticas e factos que acharam que era de relevante interesse público e sentiram-se perante um dilema moral que é: ficar calado e fazer o seu trabalho ou revelar de uma forma eficaz para que haja uma discussão pública”. É uma das formas como João Paulo Batalha, presidente da associação Transparência e Integridade, distingue os três casos, em declarações ao Observador.
Já o Rui Pinto, no seu ponto de vista, “será um pouco diferente”, embora reconheça que é difícil fazer essa avaliação enquanto não se souber como é que o pirata informático tomou conhecimento das informações. “Mas o Rui Pinto também acha que há muitas questões de interesse público, nomeadamente crimes cometidos no mundo do futebol que devem vir a público e por isso também é um militante“, diz João Paulo Batalha, explicando:
[Rui Pinto] foi ter à causa de um modo próprio e não necessariamente por algum dilema moral que lhe tivesse sido apresentado pelo trabalho”.
Então, qual deles são whistleblowers? Ou, antes, o que é um whistleblower? É um denunciante que se apresenta como tal para ser protegido pelo Estado por denunciar determinada realidade criminal que prejudica a comunidade. Em Portugal, essa figura não existe — o que mais se aproxima dela é o regime de proteção de testemunhas e uma norma no regime de combate à corrupção que protege os denunciantes, com uma condição: têm de pertencer à organização contra a qual fizeram a denuncia. Deste ponto de vista jurídico, os whistleblowers são pessoas que pertencem à organização envolvida naquilo que é reportado ou que têm alguma ligação a ela.
Portanto, o Edward Snowden ou a Chelsea Manning seriam os whistleblowers porque tiveram acesso a informação de um interesse público relevante a partir do seu trabalho e depois acharam que isto era demasiado importante para não ser conhecido e fizeram revelações”, explica o presidente da associação Transparência e Integridade.
Para Felipe Pathe Duarte, professor e investigador na área da segurança, a definição de whistleblower não deve, porém, basear-se apenas no fator de pertencer à organização contra a qual denuncia. “Depende muito do processo de motivação e ao mesmo tempo de quem está por trás“, explica ao Observador. “Será o Julian Assange alguém que está a agir em nome da democracia ou será, por exemplo, altamente benéfico o que ele faz para pôr em causa os processos de democracia liberal?”, questiona.
Reconhecendo que à partida, Rui Pinto e Assange não seriam whistleblowers — porque “são apenas distribuidores” da informação que lhes chega — Felipe Pathe Duarte acredita que, para definir esta figura, “temos de ver, ao mesmo tempo, geopoliticamente, a quem é que interessa essa distribuição“.
Ainda assim, há diferenças no modo em como o fizeram. Chelsea Manning entregou a informação e os documentos secretos em bruto a Assange. Edward Snowden não publicou toda a informação que recolheu e, pelo contrário, divulgou-a de uma forma muito específica: “Deu aos jornalistas para que houvesse um critério externo a ele próprio, a decidir o que é que se publicava e como. Ele estava consciente de que, apesar de tudo, havia ali implicações de segurança nacional”, esclarece João Paulo Batalha.
Já Julien Assange “publicou tudo e mais alguma coisa”, que Chelsea Manning e outras fontes lhe forneceram. “É mais político e acredita que não deve haver segredos seja de que tipo for. Tem uma causa de combater os poderes políticos, revelando todos e quaisquer segredos que tenham”, adianta o presidente da associação Transparência e Integridade, ao Observador.
Sobre Rui Pinto, neste capítulo, é ainda difícil dizer, por não se saber ao certo que informação — e de que tamanho — tinha com ele quando foi detido. Será seguro dizer que não publicou tudo o que tinha (sabe-se, aliás, que tinha vários discos rígidos com material que, aparentemente, ainda não foi divulgado), mas também não é possível dizer, com certeza, se escolheu metodicamente as informações que foi publicando no Football Leaks, de forma a responder apenas à causa que diz defender — “limpar” o futebol. Não se sabe, por exemplo, se pode ser imputada a Rui Pinto a divulgação de emails pessoais, sem aparente ligação ao tema, não só de responsáveis do Benfica, mas também de um dos advogados que representa o clube da Luz, depois de um ataque informático à sociedade de advocacia.
Onde estão agora?
Assange refugiou-se na embaixada do Equador em Londres, em 2012, para evitar que fosse cumprido o mandado de detenção europeu emitido pela Suécia, que solicitou que se entregasse por supostos crimes sexuais — que sempre negou, alegando que houve consentimento nas relações sexuais com a pessoa que apresentou queixa. O mandado foi retirado em maio do ano passado, depois de a procuradoria sueca ter anunciado o encerramento do processo, por impossibilidade de chegar ao ativista. Ainda assim, Assange continuou mais algum tempo na embaixada equatoriana por receio de ser detido pelas autoridades britânicas — o que aconteceu. Encontra-se, agora, detido. A alegada vítima já pediu às autoridades da Suécia que reabram a investigação.
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Já Chelsea Manning foi condenada a 35 anos de prisão, no dia 21 de agosto de 2013. Entrou na cadeia ainda como Bradley, mas a anunciar que pretendia mudar de sexo. Cumpriu uma pena de prisão de sete anos. A 17 de janeiro de 2017 — apenas três dias antes de Donald Trump ter tomado posse — foi beneficiada por um perdão presidencial de Barack Obama. Foi libertada a 17 de maio de 2017. Mas, em março deste ano, voltou a ser detida por recusar testemunhar num caso contra a WikiLeaks.
Ao contrário do que prevê a figura de whistleblower, Chelsea Manning não foi protegida pelo Estado. “Prevaleceram, no julgamento nos Estados Unidos, as questões de violação de segredo por oposição à divulgação de informação de interesse público”, disse o presidente da associação Transparência e Integridade, acrescentando:
Eu acho que tanto Chelsea Manning como o Edward Snowden merecem proteção, porque há um interesse público inegável naquilo que eles divulgaram”.
Rui Pinto está em prisão preventiva desde 22 de março, depois de ter sido extraditado da Hungria. É suspeito de ter tentado extorquir a Doyen, na sequência das informações que terá conseguido recolher sobre negócios da empresa. Tem alegado sempre que deve ser protegido, na qualidade de whistleblower, mas só agora as autoridades portuguesas vão começar a examinar todos os documentos digitais que lhe foram apreendidos ainda em Budapeste — que é o mesmo que dizer que só a partir de agora vão chegar a tudo o que, de facto, estava nas mãos do hacker, abrindo caminho para outros processos. Edward Snowden é o único que não está preso. Em 2013, o ex-agente da NSA recebeu asilo político na Rússia e, um ano mais tarde, obteve um visto de residência temporária. Não se sabe onde está ao certo.
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