Não é a primeira vez que duas equipas do mesmo país se defrontam na final de uma competição europeia, assim como não é a primeira vez que um país tem representantes nas duas provas europeias. No entanto, a grande penalidade de Hazard que deu a sofrida passagem ao Chelsea frente ao Eintracht Frankfurt nas grandes penalidades acabou por confirmar algo que aconteceu pela primeira vez na história: uma só liga estar representada por duas equipas nas duas finais de competições da UEFA. Com mais ou menos contornos de milagre pelo meio, e enquanto o Brexit se vai adiando, a Premier League tomou conta da Europa.

A maneira como o Liverpool “apagou” o Barcelona na segunda mão, a forma como o Tottenham virou uma eliminatória em meia parte contra o Ajax ou o sofrimento do Chelsea mesmo jogando em Stamford Bridge com a grande surpresa germânica (no lado do Arsenal, o jogo e a vitória nunca estiveram em causa depois dos 15 minutos iniciais em Valência) foram quase uma conjugação cósmica que permitiu a qualificação de quatro equipas inglesas para as decisões na Liga dos Campeões e na Liga Europa. Mas representa muito mais do que isso, desde o sucesso da distribuição de verbas dos direitos televisivos à aposta com sucesso na formação nacional, passando pela influência de alguns técnicos estrangeiros e pela competitividade da Liga, Inglaterra trabalhou em várias frentes para um resultado final com os reflexos que agora se destacam.

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Os direitos televisivos que dão mais de 100 milhões ao último da Premier

Em março, o Telegraph teve um especial que fez soar alarmes em relação ao equilíbrio das receitas provenientes dos direitos televisivos: o novo vínculo que estaria a ser elaborado para o próximo triénio fazia modificações em relação ao dinheiro relativo à venda por parte da Premier League para o estrangeiro: em vez dos 47 milhões a que todos os clubes do primeiro escalão tinham direito, haveria um ligeiro desequilíbrio que iria dar aos Big Six (no estatuto e na classificação: Manchester City, Liverpool, Chelsea, Tottenham, Arsenal e Manchester United) cerca de 97 milhões a mais do que aos restantes. Quase num tom opinativo, a “conversa” começou… para evitar que tal avançasse. E tudo num bolo total de mais de 4,5 mil milhões de euros.

Se no plano interno houve um ligeiro decréscimo na receita total dos direitos, a venda para o estrangeiro aumentou cerca de 25%. E, de acordo com os dados oficiais do ano passado conhecidos em maio, os 20 clubes que disputaram a Premier League na temporada de 2017/18 receberam no total 2,7 mil milhões de euros, divididos entre cinco fatores: três iguais para todos, como os direitos internacionais, comerciais e da prova, e dois mediante objetivos entre mérito desportivo e jogos transmitidos. Contas feitas, o segundo classificado Manchester United recebeu mais 300 mil euros do que o campeão (171,3 milhões de euros) e todos ficaram acima da fasquia dos 100 milhões, incluindo o último classificado WBA (108,2 milhões). Seja na compra de atletas, seja nas condições oferecidas, é também isto que permite à Premier League ser catalogada como a melhor do mundo.

Comentadores à parte (neste caso, Gerrard e Lampard), a Premier League tornou-se o produto mais apetecível lá fora (Dan Istitene/Getty Images)

A evolução das academias para o desenvolvimento do futebol inglês

Durante alguns anos, e com reflexos na realidade portuguesa a nível de “grandes” mas não só, os clubes ingleses tiveram uma fase de aposta na formação com a contratação de jovens talentos estrangeiros para terem um último período de crescimento nas camadas jovens antes da subida ao principal escalão – em alguns casos com sucesso, noutros nem por isso. Depois, chegou a inversão do paradigma e a aposta no recrutamento interno em idades mais novas, tirando uma maior rentabilidade de todas as condições que foram evoluindo com o passar do tempo. Os resultados não foram imediatos mas estão a chegar.

As consequências não estão diretamente ligadas a todos os principais clubes. Equipas como o Arsenal ou o Chelsea, que esta quinta-feira garantiram o apuramento para a final da Liga Europa, apresentaram opções iniciais quase 100% estrangeiras. Mas se a base da seleção comandada por Gareth Southgate, que no último Mundial terminou no quarto lugar e conseguiu o apuramento para a Final Four da Liga das Nações, está “espalhada” entre Tottenham, Manchester City, Liverpool e Manchester United, é nas equipas de formação que Inglaterra teve a sua verdadeira revolução e com resultados à vista: os Sub-21 chegaram às meias-finais do Europeu; os Sub-20 sagraram-se campeões mundiais; os Sub-19 foram campeões europeus; e os Sub-17 tornaram-se vice-campeões europeus. Se a base da equipa A é forte, as novas gerações prometem não ficar em nada atrás.

Maitland-Niles ou Calvert-Lewin foram alguns dos destaques na equipa campeã mundial Sub-20 (KIM DOO-HO/AFP/Getty Images)

A importância dos treinadores estrangeiros entre a mentalidade tradicional

A ideia de que o futebol inglês passava muito pelo jogo direto (ou pontapé para a frente puro e duro em alguns casos) há muito que caiu da cabeça de quem acompanha a Premier League. Aliás, e no limite, até as equipas que apostam um pouco mais nesse estilo conseguem arrancar alguns elogios por ser algo assumido, uma identidade e não um recurso – como o Burnley, que já assegurou a permanência, entre outros. No entanto, se existe algo que define nesta altura o Campeonato inglês é a mistura de ideias de jogo diferentes com o mesmo objetivo ofensivo de marcar muitos golos. Influência, também, dos treinadores.

Do Manchester City de Pep Guardiola e uma espécie de versão 2.0 do tiki taka adaptado às características dos jogadores e do futebol inglês ao Liverpool de Jürgen Klopp que é nesta altura a equipa mais completa do mundo por estar montada para marcar e fazer disso a sua melhor defesa (isso, Alisson e Van Dijk, as contratações que completaram as duas lacunas que existiam ainda), passando pelo trabalho mais longo de Mauricio Pochettino no Tottenham ou mais curto de Unai Emery no Arsenal, há uma mistura das melhores escolas e influências que ajudam também a Premier League, que mantém em alguns casos a mentalidade tradicional, a evoluir com os grandes exemplos da atualidade – mesmo quando as experiências não correm tão bem como na teoria se poderia pensar, caso de Maurizio Sarri, antigo treinador do Nápoles, ao serviço do Chelsea.

Jürgen Klopp e Pep Guardiola: dois treinadores, dois estilos, duas influências positivas para a Premier League (Laurence Griffiths/Getty Images)

A competitividade de uma Liga que ajuda os melhores a serem melhores

Não se pode dizer que a Premier League seja uma espécie de NBA do futebol quando as outras ligas não passam de Euroliga (mantendo o exemplo do basquetebol), até por haver tantos jogos em Inglaterra como em Itália ou em Espanha. Nem se consegue encontrar um traço comum a nível físico entre as seis melhores equipas, porque tanto podemos encontrar conjuntos que não fazem tanta rotatividade e nem por isso têm muitas lesões muscular (como o Liverpool) como vemos equipas que mexem mais vezes nas opções iniciais e já chegaram a ter mais de dez jogadores no gabinete médico (como o Manchester United). Mas há na atualidade uma diferença que ajuda ao rendimento de sucesso dos britânicos: a competitividade das provas internas.

Atente-se no caso do Tottenham, o mais inesperado entre os quatro finalistas ingleses nas provas da UEFA na presente época, e na campanha que tem de fazer ao longo de nove meses de competição: só na Premier League, sabe que tem garantidos dez jogos grandes (Manchester City, Liverpool, Chelsea, Arsenal e Manchester United, casa e fora) e outros tantos em campos por tradição complicados de passar como Everton, Leicester ou Newcastle – além das equipas surpresa, como o Wolverhampton e o Watford. E ainda encontrou Arsenal e Chelsea, a duas mãos, na Taça da Liga. E ainda jogou com Barcelona, Inter, PSV, B. Dortmund, Manchester City e Ajax, na Liga dos Campeões. Aquilo que noutras épocas ameaçava tornar-se num problema virou solução para os britânicos que, melhorando e investindo nos métodos de preparação e recuperação física com alguns dos maiores especialistas nessas áreas específicas, mantiveram um nível suficientemente alto para lutarem por título/acesso à Champions sem descurar a campanha europeia, com o sucesso entretanto reconhecido por todos.

Tottenham perdeu na receção ao Wolverhampton em mais uma das muitas surpresas na Premier League (BEN STANSALL/AFP/Getty Images)