A 2 de agosto de 1929, fez esta sexta-feira 90 anos, nascia em Aveiro um dos mais revolucionários músicos e autores portugueses do século XX. José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos, assim era o nome de batismo de José Afonso — carinhosamente tratado por “Zeca” pelos amigos e discípulos —, viria a construir da década de 1960 em diante uma carreira musical ímpar, que andou sempre de mão dada com a intervenção cívica e política.
A frontalidade com que assumiu as suas posições políticas (canhotas) e a convicção com que as defendeu não deixaram de gerar anticorpos e opositores, mas o consenso e a construção de pontes não eram as principais preocupações de “Zeca”.
Apesar dos anticorpos que gerou em vida — irritou quase toda a gente, da PIDE a um PCP por quem nutria simpatia mas no qual nunca se filiou, para preservar independência crítica —, é hoje quase unanimemente considerado (até por críticos) um resistente corajoso a um regime autoritário e opressor — se não mesmo fascista — e o músico que se tornou no símbolo da Revolução de Abril, da liberdade e da canção de intervenção, transcendendo no entanto essas categorias. Na sua música, cantou do fado de Coimbra à canção lusitana de balanço africano, do grito de revolta contra a censura e autoritarismo à sátira festiva. Até cantou com Quim Barreiros. Para recordar os 90 anos do seu nascimento, escolhemos dez canções que atestam que, enquanto músico, José Afonso é simplesmente incontornável na história portuguesa.
“Estávamos todos no palco”: os últimos concertos de José Afonso
“Balada Aleixo”
Já tinha lançado várias canções avulso, já tinha dado vários concertos, revelado muitas canções e pequenos discos (EP, ou mini-álbuns), passado pelos fados de Coimbra, escrito uma tese sobre Sartre no final da licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas e percorrido o país para concertos em coletividades de trabalhadores e reuniões de jovens, quase sempre com o braço direito Rui Pato (foi músico, médico, antigo dirigente estudantil e grande parceiro de “Zeca”). Só ainda não se tinha mudado, por um período de perto de três anos, para Lourenço Marques. Em 1964, José Afonso estava em plena forma e decidiu comemorar isso mesmo com a sua primeira edição discográfica de maior relevo, o LP Baladas e Canções.
O disco arrancava com a bela “Canção Longe” (já revelada no ano anterior, no EP Baladas de Coimbra, à semelhança de outras canções que tinham já circulado em edições mais discretas). À terceira canção, esta “Balada Aleixo” — que aparecera dois anos antes em Coimbra Orfeon of Portugal — arrepiava em definitivo, com a voz a declamar, sobre uma instrumentação discreta, versos ainda razoavelmente simples para o que faria depois mas bem cantados: “Com os cegos me confundo / Amor desde que te vi / Nada mais vejo no mundo / Quando não te vejo a ti”.
“Já o Tempo se Habitua”
Uma geração melómana mais nova poderá conhecer esta canção sobretudo da versão que o compositor, músico e cantor B Fachada decidiu fazer e editar há cinco anos, no seu último álbum de originais (homónimo). Não surpreende a escolha, tal a qualidade da canção que foi incluída por José Afonso no seu LP Contos Velhos, Rumos Novos, de 1969 — o mesmo que incluía o tema “Era de Noite e Levaram”, que lançava farpas à ação da polícia política do regime. Esta “Já o Tempo se Habitua”, ainda mais codificada, será garantidamente uma das canções de José Afonso com letra mais deslumbrante. É quase impossível sair daqui sem mais coragem do que aquela com que se começa a ouvir: “Nem o voo do milhano ao vento leste / nem a rota da gaivota / ao vento norte / nem toda a força do pano todo o ano / quebra o proa do mais forte / nem a morte”.
“Maria Faia”
Incluída no disco Traz Outro Amigo Também, editado em 1970, esta “Maria Faia” foi gravada durante aquele que é para muitos o período áureo de José Afonso, que vai do início da segunda metade dos anos 1960 ao final da década de 1970. A instrumentação, ancorada na guitarra, é suficientemente simples para cativar à primeira escuta mas é suficientemente complexa para engrandecer a voz, como tantas vezes aqui com drama suficiente para deixar impressão forte. “O meu amor abalou, ó Maria Faia…”
“Coro da Primavera”
Para muitos, Cantigas do Maio, gravado em Paris no inverno de 1971, é o álbum mais conseguido de José Afonso. Foi produzido por um José Mário Branco, que tinha e tem toque de Midas na arte de arrancar a instrumentistas e cantores o seu melhor som de estúdio. O álbum tem temas como “Milho Verde”, “Cantar Alentejano”, “Maio Maduro Maio” e, é claro, essa inesquecível senha revolucionária que é “Grândola Vila Morena”. Qualquer tema merecia ser destaque, mas esta “Coro da Primavera”, pela instrumentação invulgar e sons inusitados e mais exploratórios, está entre as grandes surpresas do disco. “Cobre-te canalha / na mortalha / hoje o rei vai nu / os velhos tiranos / de há mil anos / morrem como tu”: não surpreende que o disco tenha sido proibido pela Censura da Emissora Nacional, exceção feita à canção que, ironia do destino, viria a dar o mote para a mudança de regime.
“No Comboio Descendente”
Ainda em vésperas de revolução, ainda em pleno fulgor criativo. “No Comboio Descendente” faz parte do disco Eu Vou Ser Como a Toupeira, o mesmo que arranca com “A morte saiu à rua”, um homenagem de José Afonso ao escultor (e funcionário do PCP) Dias Coelho, morto pela PIDE. Talvez não tão revolucionário como Cantigas do Maio, é mais um passo certeiro do músico. Esta “No Comboio Descendente” foi uma apropriação de José Afonso de um poema de Fernando Pessoa, que musicou e cantou.
“Venham Mais Cinco”
Em 1973, José Afonso era já uma espécie de herói musical nacional da oposição ao Estado Novo, conhecido de lés a lés de Portugal e, talvez por isso, em simultâneo mais temido pelo regime e mais provocador. Depois de uma prisão nesse ano — esteve detido em Caxias entre abril e maio —, rumou a Paris onde gravou (novamente com José Mário Branco) outro álbum portentoso. Este Venham Mais Cinco, editado escassos cinco meses antes do 25 de abril, foi obviamente proibido pela censura, mas será seguramente um dos discos mais marcantes da sua discografia. Além de incursões pelo surrealismo (como acontecia na segunda faixa, a belíssima “Era um Redondo Vocábulo”), existe este tema que deu nome ao disco e que permanece como uma das suas canções mais conhecidas e mobilizadoras: “A gente ajuda / Havemos de ser mais / Eu bem sei”.
“Tenho um Primo Convexo”
Recrutando Fausto para os arranjos, José Afonso começa a sua incursão pela inclusão de ritmos africanos e festa pan-africana com Coro dos Tribunais, editado em 1974. É o seu primeiro álbum em liberdade, é o álbum de “O Que Faz Falta”, é o álbum desta “Tenho um Primo Convexo”, espécie de surrealismo leve e subliminarmente político. É uma canção espantosamente arquitetada e é o início de uma fase musical especialmente profícua de José Afonso já com o Portugal democrático e o fim do colonialismo na mira.
“Os Índios da Meia Praia”
Se o seu descendente (musical) B Fachada fez uma belíssima versão de “Já o Tempo Se Habitua”, Benjamim (Luís Nunes) dedicou-se a reinterpretar este “Os Índios da Meia Praia”. É impressionante que não tenha fracassado, dado que conseguir manter o espírito da canção acrescentando-lhe cunho pessoal era tarefa árdua, tal a peculiaridade dos arranjos e a alma com que José Afonso a canta. Faz parte do disco Com as Minhas Tamanquinhas, outro dos seus marcos dos anos 1970 (mais festivo nos arranjos do que Cantigas do Maio, com farpas de algum desalento face aos “fantoches de Kissinger” que já via em Portugal e até com Quim Barreiros a contribuir) e talvez o seu álbum que conjuga mais apelo popular com inovação e originalidade musical. Isto é maturidade, é um hino musical e é seguramente uma das melhores canções feitas em Portugal (ou em qualquer lado, na verdade) na segunda metade do século XX.
“Ali Está o Rio”
Alguns fãs de José Afonso dividem-se entre os que preferem a sua fase musical pré-Revolução e aqueles que têm como período de eleição do compositor a sua fase pós-25 de abril. Esta “Ali Está o Rio” é mais um contributo forte para as convicções dos segundos. É, ao mesmo tempo, um belíssimo e tristíssimo manifesto sobre a descrença na “concertação social”, como agora é chamada. “Só um venceu a valer / Perdeu o outro a saúde / Mas nada ganhou p’ra viver / Quem diz nós saiba ver bem / Se diz a verdade ou não / Ambos vencemos o rio / A mim quem me vence é o patrão”
“De Sal de Linguagem Feita”
Gradualmente mais enigmático, sempre a procurar terrenos desertos ainda por explorar (mas com consciência social e ética, que explorações selvagens é para patrões capitalistas), José Afonso foi prosseguindo na carreira e, em 1979, editou um álbum razoavelmente desconcertante mas nem por isso menos certeiro: Fura-Fura. O álbum incluía esta “De Sal de Linguagem Feita”, uma canção surrealista que é mais um argumento para confundir quem o reduz a apenas cantor de intervenção política. Seriam editados ainda outros três discos de originais (um deles José Afonso já não conseguiu completar) e dois álbuns ao vivo — um dos quais gravado na universidade de Hamburgo —, estavam por acontecer concertos míticos nos Coliseus de Lisboa e Porto, o músico daria nova prova de convicções fortes ao recusar receber a Ordem da Liberdade. Mas só este tema já permite ficar com uma impressão forte: a de que 90 anos depois do nascimento e 32 anos depois da morte resultante da doença esclerose lateral amiotrófica, talvez ainda seja preciso acrescentar algo à compreensão geral de José Afonso como (mero) cantor-ativista.