O Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) está a investigar os dois contratos assinados entre o filho do ex-secretário de Estado da Proteção Civil e a Universidade do Porto em 2018 e em 2019. Os contratos, que foram revelados em exclusivo pelo Observador em julho, estiveram na origem de uma primeira polémica com Artur Neves por alegada violação da lei das incompatibilidades e levaram António Costa a segurá-lo no governo.

Estão em causa dois contratos de empreitadas de reabilitação avaliadas num montante total de cerca de 736 mil euros ganhos pela Zerca. Esta construtora tem Nuno Neves, de 28 anos e engenheiro como o pai, Artur Neves, como sócio minoritário com cerca de 30% do capital social, estando o remanescente nas mãos do banqueiro luso-angolano Fernando Teles e de um familiar deste último. Ao que o Observador apurou, o DCIAP quer perceber se se verificou algum favorecimento à empresa do filho do secretário de Estado demissionário.

Recorde-se que António Costa revelou, em entrevista ao Expresso, que telefonou ao reitor da Universidade do Porto para saber se Artur Neves tinha tido alguma intervenção na contratação da Zerca. O reitor terá garantido ao primeiro-ministro que “não só o secretário de Estado não tinha tido qualquer intervenção como ele próprio nem sabia que aquela empresa tinha aquela composição societária”. “Não sei se os senhores fizeram o trabalho de casa, mas eu fiz”, disse o primeiro-ministro aos jornalistas do Expresso.

A polémica com Artur Neves, mas também com outros familiares de membros do Governo que também tiveram contratos com o Estado, levou António Costa a pedir um parecer ao conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República. O parecer chegou esta quinta-feira ao gabinete do primeiro-ministro mas o seu conteúdo ainda não é conhecido.

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Ligação ao banqueiro Fernando Teles sob investigação

Além disso, estão ainda sob escrutínio pelas autoridades as relações de Artur Neves e do seu filho com o banqueiro Fernando Teles. Fundador do grupo bancário BIC — hoje EuroBic em Portugal —, Teles é natural da freguesia de Alvarenga, concelho de Arouca, tendo emigrado jovem para Angola.  Artur Neves, por seu lado, foi presidente da Junta de Freguesia de Alvarenga entre 1993 e 2001, tendo subido a presidente da Câmara de Arouca em 2005, onde ficou até 2011.

Filho do secretário de Estado da Proteção Civil fez contratos com o Estado. Lei prevê demissão

Foi durante este período de gestão autárquica de Artur Neves que Fernando Teles decidiu aumentar o investimento na sua terra natal, tendo adquirido imobiliário e patrocinado o clube de futebol local, então na I Liga mas hoje com dificuldades financeiras, através do banco BIC.

O inquérito do DCIAP tem, para já, dois arguidos: Artur Neves e o tenente-general Mourato Nunes, presidente da Autoridade Nacional da Proteção Civil.

OLAF já está a par das suspeitas e Bruxelas pediu explicações

No centro do inquérito, tal como a Procuradoria-Geral da República anunciou, está o crime de fraude na obtenção de subsídio, além de suspeitas de alegados crimes de participação económica em negócio e de corrupção. Ou seja, estão em causa alegadas ilegalidades na obtenção de fundos estruturais europeus (nomeadamente o Fundo de Coesão) para os programas “Aldeia Segura”, “Pessoas Seguras” e “Rede Automática de Avisos à População”. Daí que o inquérito do DCIAP seja liderado pela procuradora Ana Mendes de Almeida, a maior especialista daquele departamento em fraudes relacionadas com os fundos comunitários.

Além disso, o Organismo Anti-Fraude (OLAF) da Comissão Europeia já estará a par da informação que está a ser investigada pelo DCIAP — uma comunicação normal desde que o principal departamento do Ministério Público passou a ter uma equipa liderada por Ana Mendes de Almeida. Aliás, a Comissão Europeia já pediu esclarecimentos ao Governo de António Costa sobre os procedimentos de contratação pública adotados pela Autoridade Nacional de Proteção Civil. “As entidades competentes já responderam a todas as solicitações recebidas, incluindo as que foram apresentadas pelos serviços da Comissão Europeia, de acordo com os procedimentos aplicáveis”, revelou fonte oficial do Ministério do Planeamento ao jornal Eco.

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Isto porque o montante total de financiamento europeu (Fundo de Coesão) dos programas governamentais que estão sob investigação criminal é significativo: cerca de 1,6 milhões de euros. Se se vier a comprovar que a Autoridade Nacional de Proteção Civil não respeitou as regras da contratação pública, Portugal pode ser obrigado a devolver a Bruxelas os montantes financiados pelo Fundo de Coesão.

Contratos sob investigação atingem os 3,2 milhões de euros mas podem subir

Ao que o Observador apurou, estão em causa contratos que totalizam cerca de 3,2 milhões de euros — e não de apenas cerca de dois milhões, como tem sido noticiado. Isto porque, além dos contratos das golas de proteção (102 mil euros), do kit de autoproteção (163 mil euros), de guias de apoios (10.900 euros), de sinalética para caminhos de fuga (330 mil euros), do desenvolvimento do sistema nacional de alertas para envio dos SMS em massa (74 mil euros), há outros contratos que foram apreendidos na Autoridade Nacional de Proteção Civil e no gabinete do secretário de Estado Artur Neves que também estão a ser analisados.

Vários desses contratos deverão estar relacionados com o fornecimento de refeições às unidades de combate aos fogos florestais. De acordo com um relatório da Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) revelado pelo Público em fevereiro, foi detetada uma fraude generalizada no fornecimento de refeições aos bombeiros que combateram os incêndios em Mação entre 23 e 27 de julho de 2017.

Por exemplo, a 24 de julho de 2017, quando o teatro de operações era composto por 743 bombeiros, foram faturados 2.755 pequenos-almoços. No dia seguinte, foram apresentadas 1.184 faturas de jantares quando os operacionais no terreno eram apenas 509. De acordo com o Público, a IGAI considerou que existiam “contornos criminais” e com “prejuízo para o Estado”, tendo a auditoria sido remetida pelo Ministério da Administração Interna para a Procuradoria-Geral da República. Estando em causa crimes públicos, o Ministério Público abriu automaticamente um inquérito.

A investigação do dossiê das refeições, contudo, não está circunscrita ao incêndio de Mação. Tendo em conta que o relatório da IGAI assinalava que poderíamos estar perante um “comportamento padronizado em todas as ocorrências de incêndios florestais”, a investigação do DCIAP deve alargar-se a outros incêndios. Poderá estar em causa só neste dossiê uma alegada fraude de cerca de dois milhões de euros.