A cerimónia de inauguração tem “características de grande acontecimento”, informa o “Diário de Lisboa” no dia anterior e destaca a presença prevista de Américo Thomaz, Marcello Caetano e 1500 convidados portugueses e estrangeiros. Foi notícia de página inteira, com o título “O chefe do Estado preside amanhã à inauguração do Palácio Gulbenkian”.

No dia seguinte, porque o jornal era vespertino, o acontecimento já constava – e logo com página e meia no interior, além de generosa manchete: uma fotografia a quatro colunas do presidente da República e da filha, do presidente do Conselho de Ministros, do embaixador Pedro Theotónio Pereira e do presidente da administração da Gulbenkian, Azeredo Perdigão. Houve discursos, visita guiada e almoço, uma exaustiva solenidade com espírito da época. Foi há 50 anos, a 2 de Outubro de 1969, uma quinta-feira, com a abertura ao público a acontecer na semana seguinte.

O edifício hoje

O “Palácio Gulbenkian”, como lhe chamou o jornal, corresponde ao museu e ao edifício-sede da fundação com o mesmo nome, mais os espaços verdes envolventes que António Viana Barreto e Gonçalo Ribeiro Telles criaram. A construção iniciou-se em 1962, segundo desenho de uma equipa liderada pelos arquitetos Alberto Pessoa, Pedro Cid e Ruy Jervis d’Athouguia, vencedores de um concurso pro convites lançado em 1959 e em cujo caderno de encargos se pedia um “conjunto arquitetónico de grande unidade, sóbrio e digno”.

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Os três eram arquitetos da mesma geração e estavam “claramente apostados na afirmação de uma arquitetura referenciada à pureza dos conceitos seminais do Movimento Moderno”, como escreveu em 2006 a arquiteta e historiadora Ana Tostões.

[vídeo divulgado pela Fundação Gulbenkian em 2016 com imagens de antes e de depois das obras do edifício]

Naquele que foi o ano da Crise Académica de Coimbra e da publicação do mítico romance A Noite e o Riso, de Nuno Bragança, ano do início de “Conversas em Família” de Marcello Caetano na RTP, de Simone de Oliveira no Festival da Eurovisão e de um fortíssimo terramoto que sacudiu o país e atingiu 7,9 na escala de Richter, as artes e a cultura ganhavam uma instituição que se revelaria fundamental no panorama português, a ponto de muitos a referirem como o Ministério da Cultura que o Estado Novo não teve.

No total, 25 mil metros quadrados de área, junto à Avenida de Berna, numa zona então conhecida como Palhavã e que correspondia a um terço do antigo Parque de Santa Gertrudes, adquirido em 1957 a Vasco Maria Eugénio de Almeida, conde de Vilalva. José de Azeredo Perdigão descreveu-o à época como um “um excecional centro de atividades artísticas e culturais, cuja ação se deverá projetar para além das fronteiras do país”. Já Marcello Caetano, referindo-se ao bilionário de origem arménia que tinha tornado possível o projeto, afirmou que “vale a pena ser rico quando se tem sempre presente no pensamento a obrigação de tornar menos pobres os pobres.”

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Arquitetura administrativa e cultural, assim surge nos inventários da Direção-Geral do Património Cultural, com forma retangular de betão e granito, tem como um dos aspetos mais inovadores, escreveu Ana Tostões, “a procura de um novo conceito de monumentalidade”, com “uma exigência construtiva como não era hábito entre nós”. “O conjunto da sede e museu distribui-se por diversos pisos também subterrâneos numa área total de cerca de 64 mil metros quadrados, dos quais apenas pouco mais de um terço, cerca de 25 mil, são à superfície. Estes valores dão uma ideia da complexidade da obra”, acrescentou esta especialista, professora catedrática de arquitetura no Instituto Superior Técnico.

Quanto aos jardins, concluídos à época e mais tarde remodelados durante uma década, a partir de 2002, também aqui sob a liderança de Ribeiro Telles, representaram a “afirmação da arquitetura paisagista baseada num desenho naturalista contemporâneo adaptado ao conceito de estrutura ecológica da paisagem”, segundo Ana Tostões. Magnólias, lódãos, eucaliptos, choupos, carvalhos e bétulas são apenas algumas das espécies vegetais que ali se encontram.

Primeira página do “Diário de Lisboa” no dia da inauguração da Gulbenkian, a 2 de outubro de 1969

Washington foi uma hipótese

O projeto da Fundação Gulbenkian, e depois da sede e do museu, começou quase por acaso, quando Calouste Sarkis Gulbenkian (1869-1955), multimilionário naturalizado britânico que fez fortuna no petróleo e se tornou colecionador de arte, chegou a Lisboa vindo de França, no contexto da II Guerra Mundial. Foi em 1942. Rezam as crónicas que veio de Rolls Royce e decidiu instalar-se no mítico e já desaparecido Hotel Aviz, situado onde hoje é o Sheraton, junto à Avenida Fontes Pereira de Melo. Ele e a mulher, Nevarte Essayan, uma secretária, um cozinheiro e um massagista.

A versão oficial estabelece que em 1950, cinco anos antes de morrer, e numa altura em que os negócios petrolíferos lhe rendiam o equivalente atual a 200 milhões de euros por ano, Gulbenkian começou a redigir o testamento. Em 1953, fixou a versão final do documento e decidiu que uma boa parte dos seus bens reverteria para uma fundação em Lisboa – depois de ter desistido de a criar em Washington.

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Após a sua morte, e no contexto de desentendimentos entre os familiares designados administradores e o advogado português de Gulbenkian, Azeredo Perdigão, que se sentia apoiado pelo chefe do Governo, Oliveira Salazar, nasce finalmente a fundação – em 1956. O edifício-sede surge em 1969 e o Centro de Arte Moderna (hoje igualmente chamado Museu Gulbenkian) aparece em 1983, desenhado pelo britânico Leslie Martin.

Desde o início, a Gulbenkian procurou “compensar as faltas do Estado” e “durante três décadas, dos anos 50 aos anos 80, foi a entidade nacional mais importante a atribuir bolsas de estudo”, o que contribuiu para a “formação das primeiras elites científicas e culturais” em Portugal, refere o livro “Calouste Sarkis Gulbenkian: O Homem e a Sua Obra”, breve biografia do fundador publicada há nove anos pela instituição. “Quase todos os cientistas, artistas, universitários, investigadores e professores de renome em Portugal ou no plano internacional beneficiaram num ou noutro momento da Gulbenkian”, lê-se.

Gulbenkian numa famosa escultura de pedra e bronze assinada por Leopoldo de Almeida e visível no exterior do edifício

Mais tarde, com a democratização do país, e depois com a adesão à então Comunidade Económica Europeia, em 1986, a fundação foi “ultrapassada em algumas das suas ações” pelo Estado e “levada a redefinir-se”, diz o livro. “Em vez de se dispersar em todas as direções, passa a uma era de planificação a prazo” e além da educação e das artes começou também a virar-se para as ciências e para a área social.

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Escritórios, museu, biblioteca, galeria de exposições, grande auditório, salas de reuniões e jardins são hoje um conjunto marcante na arquitetura museológica, distinguido em 1975 com o Prémio Valmor de Arquitetura e classificado em 2010 como Monumento Nacional. Faz parte integrante da paisagem de Lisboa e dos hábitos de portugueses e turistas. No dizer de Ana Tostões, “o processo do edifício é o exemplo da maioridade atingida pela arquitetura moderna portuguesa a partir do final dos anos 50”, e, por isso memso, “símbolo da situação de contemporaneidade entretanto atingida”.