Depois de deixar o Sporting, em 1986, Rui Jordão pendurou as botas mas elas não ficaram por lá muito tempo: não resistindo ao chamamento do melhor amigo Manuel Fernandes, que também tinha saído de Alvalade, ainda voltou aos relvados e fez duas temporadas pelo V. Setúbal no final da década de 80, tão boas ou tão más que teve o privilégio de voltar a ser chamado à Seleção Nacional. Em 1989, acabou de vez a carreira. Foi estudar, tirou uma licenciatura, frequentou outras graduações, tornou-se pintor e, ao longo de três décadas, nunca mais voltou a falar de futebol em termos públicos. O avançado era um jogador diferente. Morreu hoje, aos 67 anos.

Além de ter sido um dos melhores avançados portugueses de sempre, Rui Jordão, para alguns conhecidos pela “Gazela” pelo estilo elegante com que espalhava magia em velocidade no ataque, era descrito por companheiros e amigos como alguém educado, culto e amigo. Alguém que se diferenciava com a discrição de quem não o faz para ser diferente. E o exemplo supracitado de como arrumou o futebol no final da carreira com aparições pontuais em jogos ou uma campanha eleitoral valorizaram ainda mais esse saber estar que não passava ao lado.

Nascido em Benguela, Jordão começou por destacar-se no Sporting local já como avançado e despertou a cobiça dos rivais lisboetas pela sua contratação apesar de ter sofrido uma lesão com alguma gravidade numa prova de atletismo quando não tinha ainda idade sénior (também aí se destacava, tendo sido vice-campeão dos 80 metros). Em 1970, estreou-se nos juniores do Benfica, um ano depois saltou para o plantel principal e justificou em pleno a aposta num período áureo pelos encarnados onde ganhou quatro Campeonatos e uma Taça em cinco temporadas até 1976 ao lado de nomes como Simões, Toni, Vítor Batista, Nené, Humberto Coelho, Diamantino, Shéu, Bento ou o inevitável Eusébio, de quem ganhou a alcunha de “sucessor”.

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Em 1976, depois de uma época com Mário Wilson no comando em que as águias se sagraram campeãs nacionais e foram aos quartos da Taça dos Clubes Campeões Europeus, Jordão sagrou-se o melhor marcador nacional com 30 golos em 28 jogos no Campeonato (mais um do que Nené, com quem formou uma dupla temível) e fez com que os espanhóis do Saragoça investissem 9.000 contos na sua contratação. A ideia era boa, as expetativas eram grandes mas os 14 golos em 33 encontros não foram suficientes para assegurar uma melhor adaptação, decidindo voltar a Portugal logo no ano seguinte mas desta vez para o outro lado da Segunda Circular.

Ao longo de quase uma década, Jordão formou alguns dos ataques mais temíveis do Sporting depois da era dos Cinco Violinos, ao lado de Keita, do eterno amigo Manuel Fernandes e de António Oliveira, os dois últimos com quem formou o trio que conquistou o Campeonato de 1982, o último dos leões antes de um longo jejum que foi apenas interrompido em 2000 e com Inácio, também ele ex-companheiro de equipa, no comando. Barão, Laranjeira, Bastos, Artur Correia, Eurico, Virgílio, Ademar, Mário Jorge, Nogueira, Fraguito ou Carlos Xavier foram outros dos jogadores com quem partilhou mais anos balneário no antigo estádio José Alvalade.

Nos jantares entre amigos, alguns deles companheiros de equipa ou conhecidos durante os nove anos que passou em Alvalade, Jordão até podia falar de futebol se viesse à baila mas preferia discutir arte, o mundo, a política. Ainda assim, num desses encontros, admitiu que Salif Keita, avançado maliano que representou o Sporting três anos no final da década de 70, era uma das suas referências em termos de modelo. E explicou o porquê da ideia, recuando à altura em que o africano foi apresentado pelo então presidente João Rocha – quando estava para assinar, ficou combinado que não iria treinar num determinado dia da semana e que não faria estágios na véspera dos jogos em casa, quis ir ao balneário antes de rubricar o vínculo perguntar a todos os (futuros) companheiros se alguém via algum problema nisso e depois era dos primeiros a chegar e dos últimos a sair em todos os treinos. Jordão, acabado de chegar ao clube, viu naquela atitude um exemplo de comportamento, daqueles que sempre valorizou ao longo de uma vida onde deixou marca por onde passou.

Apesar das lesões graves que sofreu, em especial duas onde teve fratura de tíbia e perónio, Jordão marcou um total de 184 golos em 262 jogos, tendo conquistado dois Campeonatos (o primeiro em 1980, onde foi de novo o melhor marcador da prova com 31 golos), duas Taças de Portugal e uma Supertaça. Entre alguns dos jogos mais marcantes estiveram um dérbi com o Benfica onde apontou um hat-trick ou os cinco golos na receção ao Rio Ave na festa do título, ambos no decorrer da temporada de 1981/82. Deixou Alvalade em 1986, já com 34 anos, para terminar a carreira, algo que sofreu uma reviravolta depois do pedido do amigo Manuel Fernandes.

Depois de não ter feito nenhum jogo em 1986/87, formou ainda dupla com o antigo capitão do Sporting no clube sadino durante duas temporadas, o que lhe valeu o regresso em três jogos à Seleção Nacional onde era presença frequente desde que se começou a destacar no Benfica e que teve como ponto alto o Campeonato da Europa de 1984, quando apontou os dois golos de Portugal na meia-final perdida com a França de Michel Platini no prolongamento por 3-2. Somou um total de 43 internacionalizações com o conjunto das Quinas de 1971 a 1988, apontando um total de 15 golos numa geração marcada pelo pós-era Eusébio.

Arrumou de vez as chuteiras em 1989 e trocou a bola pelo pincel. As obras de arte estavam lá na mesma, mas em vez de serem pintadas no relvado surgiam em quadros – naquela que era a sua grande paixão, a arte. Depois de se ter licenciado em História de Arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e de ter feito o curso de Belas Artes em Pintura, Desenho e Modelagem na Sociedade Nacional de Belas Artes (a que acrescentou outros no mesmo local de ensino como os de Introdução à História da Arte, História da Arte do Século XX e Temas de Estéticas, e Teorias de Arte Contemporânea), foi fazendo inúmeras exposições em Angola e Portugal, estando hoje representado não só em coleções privadas mas também em galerias e museus, deixando um legado naquela que foi a sua “segunda vida”.

“[O futebol] é um mundo demasiado objetivo, material e ruidoso. Era impossível encontrar outras formas de expressão que não fossem dentro dos relvados. A bola é um objeto egoísta e centralizador. Foi por isso que desapareci do meio durante muitos anos. Só o silêncio seria capaz de permitir o reencontro com o meu outro eu. Não sei qual dos dois é mais verdadeiro, mas quando comecei a pintar descobri uma outra forma de comunicar com os outros. O futebol já não me condiciona, já não define a minha forma de compreender e estar na vida. Hoje, os meus dias decorrem sem esse centro”, disse em 2000, em entrevista ao jornal Record.

Do “futebolista especial e elegante” ao “homem bom, com valores e princípios”: as reações à morte de Jordão

Internado no hospital de Cascais por complicações cardíacas, Rui Jordão foi alvo de uma sentida homenagem no último encontro do Sporting em Alvalade frente ao LASK, para a Liga Europa, com tarjas e aplausos no minuto 11 do jogo em homenagem à camisola que costumava usar de verde e branco. “Dói muito, quando existe uma amizade de anos. Jogámos nove anos juntos, foi uma coisa histórica, estivemos lado a lado, conhecíamo-nos de olhos fechados, como jogadores e homens. Foi um orgulho ter jogado com ele. Foi um jogador fora de série. A homenagem foi um momento arrepiante, muito bonito”, comentou então Manuel Fernandes.