Mais um dia na Câmara dos Comuns, mais uma derrota para o Governo de Boris Johnson. Desta vez os responsáveis pela decisão desfavorável ao Executivo britânico não foram os deputados, mas sim o presidente da Câmara, o speaker John Bercow. Boris pretendia que o acordo para o Brexit que alcançou em Bruxelas fosse votado esta segunda-feira — depois de ter sido adiado no sábado passado após a aprovação da emenda Letwin —, mas Bercow considerou não estarem reunidas as condições para isso.
O speaker argumentou que não houve qualquer alteração de substância ou de circunstâncias que justifiquem que a votação passe a ocorrer esta segunda-feira. “A minha decisão é que a moção não será debatida hoje [segunda-feira], já que fazê-lo seria repetitivo e desordeiro”, afirmou.
Derrotado, Boris cede sem ceder: pede adiamento “forçado”, mas avisa que não o quer
Em causa está o conteúdo da emenda Letwin, que determina que o acordo final só seja votado depois de aprovada na Câmara a legislação prévia relativa ao Brexit, algo que ainda não aconteceu — mas poderá ocorrer esta terça-feira.
A Câmara votou pela emenda de Sir Oliver Letwin que afirma que ‘esta Câmara considera o tema, mas espera pela aprovação até ser aprovada toda a legislação referente ao tema’”, resumiu Bercow.
Assim sendo e como, na opinião do presidente da Câmara, a substância dos documentos propostos a votação (Acordo de Saída, declaração política sobre a relação futura entre o Reino Unido e a União Europeia e o documento sobre o mecanismo específico para a Irlanda do Norte) é exatamente a mesma, não há razão para se votar novamente. Foi esta a decisão que tomou em março deste ano, quando obrigou a primeira-ministra Theresa May a conseguir ligeiras alterações no acordo em Bruxelas antes de permitir que este fosse novamente votado nos Comuns.
A exceção, explicou que Bercow, surgiria caso as circunstâncias externas em torno do acordo se tivesse alterado. “O Governo pode argumentar que a mudança de circunstâncias é o pedido do primeiro-ministro de uma extensão do Artigo 50 na noite de sábado”, reconheceu o speaker, referindo-se ao pedido de adiamento do Brexit feito na noite de sábado. “Isto não é persuasivo”, considera, porque “o pedido é parte de um processo e não um evento significativo por si só”, afirmou. Ou seja, para Bercow seria necessário ter a resposta a esse pedido para se poder considerar que as circunstâncias se tinham alterado radicalmente.
"I haven't got off the top of my head a count of the number of times I have granted urgent questions and emergency debates to people of a Eurosceptic disposition."
Speaker John Bercow hits back at questions of his impartiality
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— Sky News (@SkyNews) October 21, 2019
A reação de alguns deputados foi intensa. Bernard Jenkin, conhecido conservador eurocético, acusou Bercow de parcialidade — uma acusação já várias vezes repetida por muitos deputados tory, tendo em conta que é conhecida a sua posição face ao Brexit (Bercow admitiu que votou para ficar na UE). “Começa a tornar-se incrível quão frequentemente o senhor agrada a um dos lados e não ao outro”, afirmou o deputado. A resposta do speaker não se fez esperar, apontando para situações semelhantes em que deu a palavra a deputados eurocéticos contra a vontade do Governo, antes de o Brexit ser votado: “Não me recordo de o senhor deputado se ter queixado de que lhe estava a dar demasiado tempo para apresentar os seus argumentos”, ripostou.
O conservador David Davies (não confundir com o antigo ministro para o Brexit e também eurocético David Davis) acusou igualmente Bercow de ser parcial, dizendo que o presidente da Câmara “parece favorecer sempre um dos lados”. O speaker justificou-se perante os deputados, dizendo que se aconselhou junto de muito gente e que ninguém terá dito que a sua decisão era errada. “É uma decisão que em termos de procedimentos está correta”, garantiu.
Corbyn provoca Boris Johnson: “Apesar da sua promessa, não conseguimos encontrar o PM em nenhuma valeta”
Após a intervenção de John Bercow, o debate prossegiu com questões urgentes colocadas pelo líder da oposição, Jeremy Corbyn, ao Governo. Quem esteve presente para responder foi o ministro para o Brexit, Stephen Barclay, algo notado pelo próprio líder dos trabalhistas: “O primeiro-ministro não nos agraciou com a sua presença hoje, mas, apesar da sua promessa, não o conseguimos encontrar em nenhuma valeta”, disse, referindo-se à declaração feita por Boris Johnson do que preferia estar “morto numa valeta” a pedir um adiamento para o Brexit.
O Governo britânico enviou três cartas ao presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, este sábado. Numa delas, o embaixador britânico na UE pedia um adiamento do prazo para concretizar o Brexit, cumprindo assim a lei Benn, aprovada pela Câmara dos Comuns, que obrigava a um pedido de adiamento em caso de falta de acordo até 19 de outubro. Noutra, Boris pede que esse adiamento não seja concedido, por considerar que a “aprovação de uma extensão prejudicará os interesses do Reino Unido e dos nossos parceiros europeus”.
“Apesar de ter repetidamente dito que não o faria, a carta foi enviada”, acrescentou Corbyn sobre a carta que pede a extensão do prazo, congratulando-se por ter sido essa a atitude tomada “Isto dá a esta Câmara a oportunidade de escrutinar o acordo do primeiro-ministro”, sentenciou.
Também o líder parlamentar dos nacionalistas-escoceses do SNP, Ian Blackford, criticou o facto de o primeiro-ministro não ter ido à sessão nos Comuns desta segunda-feira. “O seu comportamento não tem dignidade, é um comportamento sem respeito, não é digno de um primeiro-ministro”, acusou Blackford.
Stephen Barclay reagiu de forma combativa, mostrando-se confiante de que este acordo será aprovado pela Câmara dos Comuns e de que o Brexit pode ocorrer a 31 de outubro: “Também diziam que o primeiro-ministro não ia conseguir voltar a negociar com a UE e conseguiu. Também diziam que não ia conseguir acabar com backstop e conseguiu. Agora vai conseguir aprovar este acordo”, afirmou.