Cinco e meia da tarde de terça-feira, 29 de outubro. Cai um balde de água fria sobre as expectativas de centenas de escritores. É anunciado que o Prémio LeYa 2019, o maior galardão lusófono para um romance inédito, correspondente a 100 mil euros e a um contrato de publicação num grupo editorial de grande escala, não tem, afinal, qualquer vencedor. “As obras concorrentes não correspondem aos parâmetros de qualidade literária exigidos”, decide o júri “por unanimidade”. Àquela hora, chega por e-mail às redações um comunicado oficial assinado em primeiro lugar pelo presidente do júri, o poeta Manuel Alegre, que, com os outros seis jurados, ainda se encontra nas instalações do grupo LeYa, em Alfragide, nos arredores de Lisboa. A reunião tinha começado às três da tarde. Em pouco mais de duas horas, surgia o veredicto. O Prémio LeYa ficava pendente pela terceira vez, depois de situações idênticas em 2010 e 2016.
A concurso estavam 409 originais provenientes de 14 países, mas só três chegaram à final e nem esses convenceram. Faltam predicados aos novos escritores? Não há um único autor consagrado a concurso que mereça os 100 mil euros? Ou será precisamente o valor do prémio que torna a decisão mais cautelosa?
O meio literário comenta em voz baixa que a LeYa não teria interesse em distinguir um autor de fraco potencial comercial, mesmo que o romance deste fosse muito bom, porque a empresa tem de pensar no retorno dos 100 mil euros. De resto, o montante é visto até pela LeYa como um adiantamento ao romancista vencedor, que depois vê o seu livro publicado e só recebe direitos de autor ao fim de 85 mil exemplares vendidos, patamar que raramente se atinge.
Esta semana, ao Observador, antigos vencedores do Prémio LeYa foram unânimes em reconhecer que é normal haver incertezas, porque os concorrentes e o grande público não têm acesso aos originais a concurso para poderem avaliar a respetiva qualidade. Por isso, estes antigos vencedores, que aceitaram falar sob anonimato, destacaram que tudo se joga ao nível da credibilidade e da confiança que o júri oferece. Neste particular, segundo eles, não há suspeita possível. Fonte ligada à empresa, apontou no mesmo sentido: “O júri deste prémio não é um clube de amigos, as pessoas conhecem-se, mas têm total independência”. Apesar disso, as dúvidas também se referem a uma fase em que o júri nem entrou em cena.
As sete pessoas de que se fala foram nomeadas pelo grupo LeYa. A saber: Manuel Alegre, Lourenço do Rosário (antigo reitor da Universidade Politécnica de Maputo), José Carlos Seabra Pereira (professor de literatura portuguesa na Universidade de Coimbra), Nuno Júdice (académico e escritor português), Ana Paula Tavares (académica e escritora angolana), Isabel Lucas (jornalista e crítica portuguesa) e Paulo Werneck (escritor e jornalista brasileiro). Alegre é um dos principais autores da Dom Quixote, editora integrada no grupo LeYa, enquanto os restantes são externos à empresa.
O regulamento do prémio diz que o júri “delibera com total independência e em plena liberdade de critério, por maioria dos votos dos seus membros”, sendo a decisão “definitiva e não suscetível de apelo”. O mesmo documento prevê que, “se as obras concorrentes não apresentarem a qualidade exigida, o júri poderá deliberar não atribuir o prémio”. Foi esse o fundamento das decisões de 2010, 2016 e 2019.
“A possibilidade de não atribuição é, em si mesma, um instrumento fundamental para proteger o prestígio do prémio e salvaguardar o valor dos livros e dos autores premiados anteriormente e dos que futuramente hão de ser premiados”, declarou Manuel Alegre ao Observador, depois de conhecida a decisão deste ano.
“Atribuir o prémio a uma obra sem qualidade não contribuiria certamente para o prestígio do concurso”, sublinhou. De forma resumida, explicou que os critérios de qualidade tidos em conta na análise dos originais a concurso são “a história, a estrutura da narrativa, a densidade das personagens e a qualidade da escrita”.
A LeYa não faz comentários oficiais e remete para o júri. Questionado sobre se faltam bons ficcionistas em português, Manuel Alegre respondeu que “não sabemos” e acrescentou: “Sabemos, sim, que esses bons ficcionistas ou não concorreram a esta edição do prémio ou apresentaram obras sem qualidades suficientes para serem galardoadas.”
“Um pouco embaraçoso”
O Prémio LeYa foi instituído em 2008 pelo grupo editorial do mesmo nome. Na descrição dos promotores, trata-se do “maior prémio literário para romances inéditos de todo o mundo de língua portuguesa”.
“Monetariamente, é o maior prémio literário da lusofonia, sendo inteiramente suportado pela LeYa, sem qualquer apoio público”, destacou Manuel Alegre ao Observador.
Já o grupo LeYa, foi fundado em 2007 pelo ex-patrão da TVI Miguel Pais do Amaral e hoje é detido pelos administradores Isaías Gomes Teixeira, Tiago de Morais Sarmento e Pedro Marques Guedes, além do fundo português de investimento Atena. É um dos maiores grupo editoriais português, a par com a Porto Editora, com presença em Portugal, no Brasil, em Angola e Moçambique. Detém chancelas influentes, como a ASA, a Caminho, a Dom Quixote, a Oficina do Livro ou a Texto Editora e publica nomes como os de Lídia Jorge, Mário Cláudio ou António Lobo Antunes.
Em 2010, na primeira vez que o Prémio LeYa ficou por atribuir, os próprios responsáveis do grupo ficaram surpreendidos. “Ninguém tinha pensado que uma situação destas poderia acontecer”, contou uma fonte que assistiu de perto. “Hoje já não surpreende, mas é um pouco embaraçoso.”
Ao criar um prémio para distinguir um romance inédito, escrito por qualquer autor de qualquer país, desde que em língua portuguesa, a LeYa passou a ter ao mesmo tempo uma iniciativa que a prestigia e uma fonte quase inesgotável de originais. Mesmo os romances que ficam pelo caminho no processo de seleção do prémio, podem sempre ser publicados mais tarde. Se o texto vencedor tem de ser dado à estampa tal como está, salvo gralhas, qualquer preterido pode depois ser trabalhado pelos autores, com a ajuda dos editores do grupo, e resultar num romance publicável.
Um possível termo de comparação é o Prémio Planeta, atribuído em Espanha desde 1952 pela Editorial Planeta, da Catalunha, e hoje aberto a escritores de qualquer nacionalidade, desde que apresentem romances inéditos escritos em espanhol. O montante deste ano foi de 601 mil euros, quase comparável aos 836 mil do Nobel da Literatura 2019. Todos os vencedores até hoje eram espanhóis ou de países hispânicos. Em quase 70 anos de existência, nunca o Planeta ficou por atribuir.
Vencedor é selecionado a partir de shortlist. Júri não lê todas as obras a concurso
Os membros do júri do prémio LeYa não leem cada um dos romances concorrentes; a decisão que tomam é baseada numa shortlist que lhes é enviada. A cada ano, diz o regulamento, uma “comissão formada por editores do grupo” LeYa “realizará a leitura de todas as obras admitidas a concurso”. Depois, “elaborará um relatório sobre cada uma dessas obras e selecionará as que considerar melhores, até um máximo de dez”. Com esta comissão trabalha o secretário do Prémio LeYa, João Amaral, ex-presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) e ex-diretor de edições gerais da LeYa.
Fonte ligada à empresa garante que pelo menos 20 editores do grupo são responsáveis pela leitura dos originais e rejeitou o boato de que por vezes seriam estagiários e outros funcionários da casa a fazê-lo. Nem sempre os editores leem as propostas de fio a pavio. Sendo pessoas experimentadas, podem rejeitá-lo após apreciarem negativamente apenas alguns capítulos. Na dúvida, mandam o romance para o júri, acrescentou a mesma fonte.
A seguir, os textos finalistas seguem para João Amaral, já com relatórios de leitura dos editores, e são então distribuídos aos jurados. Para a decisão final, só há duas reuniões na sede da LeYa. A primeira costuma acontecer na véspera da cerimónia de entrega do prémio, num dia de outubro, das 15h às 19h. A segunda é no dia da cerimónia, às 9 da manhã, caso tenha havido vencedor.
Desta vez, acharam-se apenas três finalistas, com os curiosos pseudónimos Carlos Cavalieri, Marco Gregorio e Diana Pena. Dificilmente se saberá algum dia a que pessoas correspondem.
Os romances candidatos têm de ter pelo menos 200 mil caracteres. São remetidos à LeYa até 30 de abril, em duas cópias em papel e uma em formato digital, mas sob pseudónimo. Com eles, é obrigatório seguir um envelope fechado onde constam documentos com dados pessoais que permitirão conhecer mais tarde a identidade do autor.
O regulamento é omisso sobre o momento em que esse envelope será aberto: se durante a pré-seleção, se apenas depois da decisão do júri. No entanto, fonte da empresa garantiu que a interpretação vigente não possibilita enganos: como se trata de um prémio para obra inédita e original sob pseudónimo do autor, decorre daí que o envelope só pode ser aberto no fim da primeira reunião do júri.
Será que a prova é mesmo cega?
Seria virtualmente impossível que nenhum escritor lusófono consagrado tivesse alguma vez concorrido em 12 edições do Prémio LeYa. E, no entanto, pessoas com anos de carreira e reconhecidas qualidades de ficcionistas nunca ganharam até agora. Todos os distinguidos foram escritores mais ou menos iniciantes, ou assim percecionados pelo grande público. Por exemplo, Murilo Carvalho (2008), Nuno Camarneiro (2012), Gabriela Ruivo Trindade (2013), Afonso Reis Cabral (2014) ou Itamar Vieira Júnior (2018).
Um famoso caso referido no meio literário, e agora confirmado pelo Observador, é o do ficcionista Mário de Carvalho, que concorreu a uma das primeiras edições do Prémio LeYa, sob pseudónimo, e não foi sequer escolhido para a shortlist. Mário de Carvalho já então pertencia ao catálogo da LeYa (através da Caminho), mas em 2012 mudou-se para a Porto Editora.
O episódio pode ser interpretado como uma prova de ligeireza dos critérios de seleção do prémio, pois a falta de qualidade não é coisa que à partida se possa apontar a um autor como este, cujo famoso Um Deus Passeando Pela Brisa da Tarde, de 1994, foi reconhecido com o Grande Prémio de Romance, Conto e Teatro da Associação Portuguesa de Escritores.
“Já nem me lembrava disso”, comentou agora Mário de Carvalho, a pedido do Observador. “Devo ter concorrido, já nem sei com quê, no ano de abertura. Vez única. Era então novidade. Se alguém mencionou o nome é porque, na altura, foi indevidamente aberto certo sobrescrito. Estranha coisa.” De resto, acrescentou que “os nomes do júri que têm vindo a lume são inatacáveis”.
A LeYa tem afirmado desde sempre que o prémio resulta de uma prova cega para os jurados e para os editores que pré-selecionam. O romance de um consagrado pode ser mau, por isso não leva o prémio, mas também pode ser bom e não o recebe na mesma, por concorrer num ano em que um autor emergente tem melhor proposta, sustentou fonte da empresa. Alegadamente, há mesmo autores consagrados que se coíbem de concorrer por recearem entrar nesta dinâmica, preferindo apresentar-se a outros prémios literários em que os nomes aparecem no manuscrito ou no livro já publicado, porque isso reduz o risco de serem preteridos, dado o peso da assinatura.
Autores contactados pelo Observador verbalizaram dúvidas e assumiram que se auto-excluem do Prémio LeYa. Estão convencidos de que se sabe a meio do processo o nome verdadeiro dos concorrentes e acreditam que não interessa à LeYa premiar escritores pouco comerciais ou ligados a editoras concorrentes.
“Independentemente do valor do prémio, nenhum júri deseja consagrar um livro que não corresponda aos seus padrões de qualidade”, resumiu Manuel Alegre, descartando teorias da conspiração. “Em todos estes anos houve edições com vencedor e finalistas publicados, outras com vencedor e sem finalistas publicados e outros, ainda, sem vencedor e com finalistas publicados: ter qualidade para ser publicado não significa ter qualidade para ganhar o Prémio LeYa.”