Começou a trabalhar aos 14 anos a servir às mesas numa pastelaria, mas depressa a vontade de fazer novo e diferente se fez notar. Ainda chegou a estender massas de pizzas, mas há 12 anos abriu o restaurante homónimo na sua terra natal, o Algarve, onde emana toda a sua identidade e criatividade. É lá que reina o peixe fresco, os arrozes, a confeção simples e os temperos apurados, provas de uma cozinha tradicional, sem truques na manga.

Noélia Jerónimo tem 48 anos e é uma autodidata, tudo o que sabe sobre cozinha aprendeu nos livros, a viajar e a ver os outros fazer, tudo o resto é puro talento. Tem o entusiasmo nos olhos, a humildade na voz e diz ser perita na arte de bem receber. Apesar de colecionar elogios de críticos e chefs que a visitam, e depois se tornam amigos, continua insegura e com muito medo de falhar.

Diz ser cozinheira e não uma chef, rejeita rótulos redutores, inspira-se na Ria Formosa, mas também em todos os continentes, e defende a comida feita no fogo, aquela que não entra em sacos de vácuo. Deseja morrer de jaleca vestida e dentro do seu restaurante, mas antes disso quer escrever um livro.

Em 2015 Miguel Esteves Cardoso escreveu que o seu restaurante homónimo “é o melhor do mundo” e foi ele que a convidou a subir ao palco do Melting Gastronomy Summit, que se prolonga até hoje no Porto, para falar sobre a simplicidade na cozinha. Depois da sua intervenção, Noélia Jerónimo falou com o Observador.

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No Melting Gastronomy Summit, Noélia participou numa conversa moderada por Miguel Esteves Cardoso, onde também estiveram Filipa Pato, enóloga e produtora de vinho, a investigadora Maria Manuel Valagão e a empreendedora Shani Rosner.

Fale-me um pouco das suas origens, quem é a Noélia?
Nasci em Tavira, comecei a trabalhar aos 14 e apaixonei-me logo por aquilo que fazia. Os meus pais eram muito pobres e eu precisava de ganhar algum dinheiro, então pedi à minha mãe para ir trabalhar para uma pastelaria, que é o mesmo sítio onde hoje tenho o meu restaurante. Servi às mesas e nunca tinha tido contacto com uma cozinha até essa altura. Na minha vida as coisas sempre surgiram naturalmente, nada foi programado.

Foi lá que conheceu o seu marido?
Sim, começámos a namorar aos 14 anos, foi amor à primeira vista. Ao contrário de mim, que gosto de estar com pessoas, ele é tímido e recatado, não gosta de aparecer. Depois tivemos oportunidade de comprar a pizzaria ao lado, ainda fiz algumas pizzas, mas cansei-me daquilo, decidi fazer outras coisas e as pessoas aderiram.

Aprendeu a cozinhar sozinha?
Sim, observando. Leio muito sobre cozinha, costumo dizer que adormeço com um livro e acordo com outro. Agora também vou muito à Internet, ao YouTube, ver o que os meus colegas estão a fazer. Não tenho a técnica, gostava muito de ter passado por uma escola. Ainda vou a tempo, mas estudo todos os dias em casa.

Que livro tem agora na cabeceira?
“Entre Ventos e Fumos”, do chef Nuno Diniz. Foi ele que me levou pela primeira a Lisboa cozinhar.

Nunca pensou em escrever um livro?
Gostava, talvez aconteça em breve. Tinha que ser algo sobre a minha cozinha e a Ria Formosa, inspiro-me muito no que ela me dá.

Na sua família alguém tinha mão para a cozinha?
A minha avó cozinhava muito bem num forno a lenha, acho que hoje é importante termos de novo estes sabores e estas referências. Acho que cada vez mais os meus colegas estão a tentar voltar a apostar numa comida de fogo, de aconchego para o palato, mais pura. Hoje cozinha-se muito em sacos de vácuo, a cozinha deve ser o fogo, a brasa, o forno, os métodos centenários que nos permitam sentir os aromas e os verdadeiros sabores. No futuro as pessoas vão acabar por perceber e sentir isto.

Abre o Noélia em 2007, quais são as suas especialidades?
Neste momento tenho muitos crus, ceviches e tártaros, foram coisas que começaram a entrar na minha forma de trabalhar quando viajava, mas fundamentalmente sou uma mulher dos tachos, da comida tradicional, dos arrozes. As pessoas vão à minha casa para comer arroz. Arroz de limão com robalo e ameijoas, arroz de ostras, arroz de carabineiros, de lingueirão, de coentros com filetes de peixe de galo, as açordas. Ainda há uns dias esteve lá a apresentadora brasileira Ana Maria Braga para gravar um programa e foi pelo arroz de limão, que é um clássico que já estou farta de fazer, mas adorou uma açorda eu fiz.

Um clássico nunca sai da carta?
Às vezes tento, mas não consigo que ele saia. Apesar de ter alguns pratos fixos, mudo a minha carta todos os dias quando vou às compras, pois cozinho com aquilo que o mar me dá. Se o mar estiver mau estou desgraçada, porque o meu restaurante é praticamente peixe e tem muito pouca carne.

Ainda faz questão de fazer as compras todas?
Tem de ser, não uso peixe congelado. O meu dia começa às 8h, vou para o restaurante às 10h porque sou eu que faço todas as sobremesas. No verão deito-me às duas da manhã, só quando já tudo estiver limpo e arrumado. Tenho o mar e a Ria Formosa à minha frente, ela é extremamente rica. É um luxo ter ameijoas, choco e berbigão, tenho a sorte dos atuns passarem mesmo à nossa frente.

Que produto mais gosta de trabalhar?
Atum e ostras.

Tem algum prato favorito?
É uma pergunta difícil. Talvez o meu tártaro de atum com figos. Gostava de trabalhar mais o atum, é um produto nobre, cada vez mais escasso e muito saboroso.

Alguma coisa que não coma?
Couves de Bruxelas, mas como se tiver que comer, como.

Se tivesse o restaurante numa outra cidade do país, o que seria diferente?
Nada, seria tudo igual. Sou a mesma pessoa em qualquer parte do mundo. Claro que iria buscar outros produtos e fazer outros pratos, mas sou apaixonada pelo que faço e pelas pessoas com quem trabalho.

Mas já teve propostas para abrir noutros sítios?
Já, em Lisboa, no Porto, sempre em cidades grandes. Irei recusar sempre. Gosto muito da minha terra e de ter esta paz. Tenho a sorte de viver a 500 metros do meu local de trabalho, no meio das amendoeiras, num silêncio que me faz falta depois do verão. Nunca iria conseguir estar longe das minhas filhas.

Elas sabem cozinhar?
Sabem, observam muito o que eu faço. A Beatriz cozinha bem, a Vânia é vegetariana e faz a comida dela.

A sazonalidade no Algarve é uma vantagem ou desvantagem?
É mau. Normalmente fecho sempre dois meses, em dezembro e janeiro, este ano encerrei mais cedo porque estou a fazer obras na cozinha. Neste momento preciso de ter um fogão no meio, para cozinhar só de um lado, e mais espaço para empratar e para os frios.

Com quantas pessoas trabalha?
Atualmente tenho 12 pessoas fixas, mas é difícil no Algarve, e penso que no resto do país, conseguir gente com paixão por isto. As escolas formam alunos para irem para hotéis, para serem grandes estrelas e não para trabalharem em restaurantes normais. Toda a gente quer ser chef, ninguém quer ser cozinheiro. Eu tive miúdos que saíram da escola de hotelaria a trabalhar comigo que diziam que não queriam limpar um fogão.

Gosta de ensinar?
Gosto, mas estou cansada de ensinar todos os dias. É fundamental que as pessoas gostem daquilo que fazem.

A paixão pela cozinha nasce connosco ou aprende-se?
Acho que tem de nascer connosco.

Por que razão é importante conhecer quem faz o prato que nos chega à mesa?
É importante saber quem é a pessoa que nos faz a comida, mas também quem produz o vinho e quem planta as batatas. Se gostarmos realmente das pessoas, vendemos os produtos com muito mais facilidade.

O objetivo é apenas vender?
Só conseguimos vender aquilo que realmente conhecemos e temos algum carinho. O João, por exemplo, está comigo há 30 anos, é ele que me vende os tomates, as batatas e as cebolas. Também sinto que os clientes querem saber quem eu sou, essa proximidade existe e deixa-me feliz. Não há nada mais importante do que sermos felizes a fazer os outros felizes, mas isso nem sempre acontece.

Como lida quando isso não acontece?
Sinto-me mal, mas aprendo sempre qualquer coisa. Cresci mais com as coisas más do que com as coisas boas. Já me disseram muitas vezes que este prato não presta, aquilo não resulta, isto não funciona… eu não sabia fazer nada, aprendi tudo sozinha, fui à procura. Tenho ânsia em saber o que há lá fora, porque tenho noção que sou apenas um cantinho no nosso país.

Viaja muito?
Todos os anos. Este ano vou voltar a Macau com o chef José Júlio Vintém e depois vou aproveitar para conhecer a China. Trago muitas dessas influências.

De que forma acrescenta influências asiáticas à cozinha tradicional?
A minha cozinha é sabor, não tem que ser tradicional nem de fusão. Se no meu palato fizer sentido vai para o prato, claro que pergunto aos meus clientes o que acham.

Muitos dos seus clientes são chefes conhecidos. Como reage a esse interesse?
Dizem que sou a cozinheira dos chefes e tenho a sorte de ser amiga de todos eles, não há cá picardias ou rivalidades. O primeiro a ir ao meu restaurante foi o Leonel Pereira, o Hans Neuner, do Ocean, há pouco tempo comeu umas ovas de choco e disse: “Oh Noélia, isto era um prato que poderia estar na minha carta”. É tão bom ouvir isto e sentirmos que uma estrela, um homem que brilha em todos os lados do mundo, se identifica com um prato nosso. Ele nunca tinha provado e gostou muito. O reconhecimento não altera nada, sou a mesma pessoa que era há 20 anos.

Não teria feito nada de diferente?
Hoje talvez tivesse um espaço onde não pudessem entrar mais que 30 pessoas, para que tudo saísse das minhas mãos. Quanto maior é o barco, maior é a ondulação.

O que sentiu quando leu que para Miguel Esteves Cardoso o seu restaurante era “o melhor restaurante do mundo”?
O Miguel apaixonou-se por mim e pela minha comida, na verdade ele foi o grande boom da minha vida, que me puxou para cima. Antes já era visitada por chefs, mas depois dele tudo se transformou.

O Miguel é muito sincero, já alguma vez criticou algum prato seu?
Já, uma vez fiz uma canja com quinoa, que provei no Peru e achei maravilhosa, mas não sabia que era preciso lavar a quinoa. Ele avisou-me que estava amarga porque não a tinha lavado. Nunca mais me esqueci.

O sucesso, a curiosidade e a expectativa não trazem mais pressão, mais responsabilidade?
Sim, por isso é que estou a fazer obras na cozinha. Sinto que tenho responsabilidade de fazer mais e melhor todos os dias. Não posso falhar, tenho muito medo de falhar e sei que falho muito.

É insegura?
Sou, tanto com o meu trabalho como com as pessoas que tenho ao meu lado. Preciso de ter à minha volta pessoas que gostem tanto disto como eu. Em agosto tenho dias muito difíceis em que me deito atrás do balcão cinco minutos para descansar porque já não me consigo aguentar de pé.

Já pensou em desistir?
Sim, há dias em que me sinto tão triste e desmotivada que isso me passa pela cabeça. O verão é difícil, se chegarmos ao dia 18 de agosto sem andarmos todos à cacetada e aguentarmos a pressão toda com um sorriso na cara já me dou por satisfeita.

Consegue ver-se noutro papel?
Sinceramente não. Gostava de morrer dentro do restaurante com uma jaleca vestida. O meu sonho é esse. Se um dia tiver que fechar acho que me vou suicidar. Há uns anos estive três meses em casa e percebi que preciso de pessoas, de calor humano, de vida, de amar alguém através da cozinha. Cozinhar é realmente uma forma de amar, disso pode ter a certeza.