Vai ser leiloado esta quinta-feira, em Lisboa, um novo lote com obras, manuscritos e dactiloscritos que pertenceram a Fernando Pessoa. O leilão é o segundo realizado este ano pela José F. Vicente Leilões com parte da biblioteca particular do poeta, que está a ser vendida pela família. Além desta, serão também colocados à venda livros que pertenceram ao sobrinho de Pessoa, Luís Miguel Rosa, irmão de Manuela Nogueira, que morreu em agosto passado.
Entre o conjunto que pertenceu à biblioteca privada de Pessoa, destacam-se, por exemplo, Political Theories of the Middle Age, de Dr. Otto Gierke, com a assinatura do poeta na folha de guarda, um exemplar de 1928 da Antologia de Poemas Portugueses Modernos, organizada por Fernando Pessoa e António Botto e concluída por este último já depois da morte do amigo, em 1944, e uma cópia de Lusitânia, de Mário Beirão, que pertenceu a Gomes Leal (inclui uma dedicatória para o poeta) e que se julga ter sido emprestada por este a Pessoa, daí encontrar-se na sua biblioteca na data da sua morte, em 1935.
Três livros da biblioteca particular de Fernando Pessoa foram a leilão e ninguém sabia que existiam
O volume de Gierke e a antologia co-organizada com Botto são os únicos livros do catálogo do leilão desta quinta-feira que surgem referidos em Biblioteca Particular de Fernando Pessoa, que deveria reunir todos os volumes que Pessoa tinha em casa, segundo a informação recolhida pela José F. Vicente. Esta situação já tinha ocorrido em junho deste ano, quando foi colocada à venda uma outra parte da biblioteca particular de Fernando Pessoa. Contactada na altura pelo Observador, a Casa Fernando Pessoa não soube explicar por que existem livros da biblioteca de Pessoa que deveriam ter sido identificados durante a catalogação, levada a cabo entre 2008 e 2010 por um grupo de especialistas, e que não o foram.
“A catalogação foi liderada por uma equipa de investigadores, com o apoio e em articulação com a Casa [Fernando Pessoa], e abrangeu os livros depositados na casa e na posse da família. Não estamos em condições de responder por livros que então não foram localizados”, declarou o organismo no início de julho.
Leilão vai incluir uma carta enviada do “Manicómio Bombarda Rilhafoles” e uma biografia de Mário de Sá-Carneiro escrita por Pessoa
Mas o mais interessante do lote que vai a leilão esta quinta-feira é, talvez, os manuscritos e dactiloscritos que estavam com Pessoa e que passaram depois da sua morte para a posse dos herdeiros. Entre estes conta-se uma extensa carta escrita à mão por Ângelo de Lima, que participou no número 2 de Orpheu. Lima passou grande parte da sua vida internado em hospitais psiquiátricos, primeiro no Hospital Conde de Ferreira, no Porto, e depois no Hospital de Rilhafoles (depois conhecido como Miguel Bombarda), em Lisboa, onde permaneceu até à data da sua morte, em agosto de 1921. E é precisamente do “Manicómio Bombarda Rilhafoles” que foi enviada a missiva, dirigida à redação do Orpheu e datada de 8 de abril de 1915, ano em que saíram os dois únicos números da revista literária.
De acordo com a informação disponibilizada pela José F. Vicente Leilões, a carta, que ocupa duas folhas e que foi enviada dentro de um envelope com o logótipo do Manicómio Bombarda, diz o seguinte:
“Exmos Senhores. Luís de Montalvôr, Mário de Sá Carneiro, Ronald de Carvalho, Fernando Pessoa, Alfredo Pedro Guisado, José de Almada Negreiros, Cortes Rodrigues, e Álvaro de Campos…
Acabo de receber e apresso-me a agradecer depois de ter lido, o remesso número 1 de Orpheu.
Fernando Pessoa refere em vários dos seus escritos a doença fundamental do homem moderno. Em cada homem moderno há um neurasténico que tem de trabalhar. Ângelo de Lima é certamente o caso mais trágico da ‘literatura de manicómio astral’ de Orpheu, porque nele a loucura se apoderou do homem e não apenas da obra e do trabalho de criação.”
O preço estimado pela leiloeira para o documento, que surge reproduzido no volume Sensacionismo e Outros Ismos, da edição crítica de Pessoa da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, é de 1.000 a 2.000 euros.
O lote inclui também um dactiloscrito de Raul Leal, escritor conhecido pela participação no número 2 do Orpheu e pelo envolvimento na polémica da chamada “Literatura de Sodoma”, que começou com António Botto. Intitulado “L’home aux favoris noirs”, o texto tem correções e anotações que terão sido feitas pelo próprio Fernando Pessoa, que o tinha em sua posse. Segundo a leiloeira, este fala sobre o reencontro de Leal com o poeta e dramaturgo italiano Gabriele d’Annunzio durante o período que o artista passou em Paris e, embora o título seja em francês foi escrito em português. Apesar de se referir a um acontecimento de 1914, terá sido composto mais tarde, depois de 1920 e antes de 1935 porque, no último parágrafo, Leal faz referência ao envio do seu livro Antéchrist et la Gloire du Saint Esprit, a d’Annunzio. A obra foi publicada em 1920.
Uma parte significativa do espólio de Leal, que durante muitos anos permaneceu em parte incerta, faz parte do espólio do arquiteto Fernando Távora, importante colecionador portuense, hoje à guarda da Fundação Instituto Arquitecto José Marques da Silva (FIMS), no Porto.
Fernando Távora, o arquiteto que encontrou Fernando Pessoa antes do tempo
Outro dactiloscrito é o da biografia de Mário Sá-Carneiro elaborada por Fernando Pessoa, que irá a leilão por um preço estimado de 50 a 100 euros, muito inferior ao documento de Raul Leal (250 a 500 euros). Sá-Carneiro suicidou-se em Paris, em abril de 1916.
Da coleção que pertencia a Luís Miguel Rosa, sobrinho de Pessoa, destacam-se um cartão assinado por António Botto, datado de 7 de fevereiro de 1942, e uma assinatura, emoldurada, de José de Almada Negreiros, que fez parte da exposição que marcou o primeiro centenário do nascimento do artista. Rosa, filho da irmã de Fernando Pessoa, Henriqueta Madalena Nogueira Dias, morreu em agosto passado, aos 88 anos. Licenciado em Medicina, era ainda escritor, tradutor e pintor, tendo sido responsável pela primeira edição das cartas de Fernando Pessoa e Aleister Crowley, Encontro Magick.
O leilão desta quinta-feira vai realizar-se pelas 21h, no Palácio da Independência, perto do Rossio, em Lisboa.