Depois de afirmar que as aldeias afetadas pelas cheias do Mondego nos dias anteriores “vão ter de ir pensando em mudar de sítio”, o ministro do Ambiente e Ação Climática veio explicar melhor o alcance da declaração.

Em declarações feitas esta sexta-feira aos jornalistas, João Matos Fernandes, garantiu que “não há nenhum plano”, “modelo” ou prazo para deslocalizar as aldeias mais afetadas. No entanto, manteve a tese de que “uma boa parte” daquelas aldeias “estão numa zona de risco de inundação”, acrescentando que foi um “desafio” que lançou às pessoas para “refletirem isso elas próprias”.

Não há aqui nenhum plano ou modelo. (…) Mas a probabilidade de ocorrência de fenómenos extremos como este [cheias] vai aumentar, devido às alterações climáticas — entre 2001 e 2019, tivemos três cheias centenárias, daquelas que só deveriam acontecer uma vez por século segundo os livros. Aconteceram três em menos de 20 anos”

Explicando que também não há “comparação com os aglomerados do litoral” que têm mesmo uma deslocalização anunciada — porque aí “o avanço do mar é inexorável e as cheias, embora mais frequentes [do que antigamente], não têm uma frequência tão continuada” —, Matos Fernandes quis no entanto sublinhar que “não faz sentido ser tabu, não ser discutida em democracia” a possibilidade de mudança dos territórios que mais são afetados pelas cheias.

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Este é, apontou o ministro do Ambiente e da Ação Climática, “um desafio para pensar, que merece ser pensado e discutido. Os instrumentos de gestão territorial são desenhados à escala municipal e podemos ter aqui um processo de planeamento adequado, discutido e alargado sem nenhum calendário e sem nenhum projeto” em cima da mesa.

Entre os territórios mais afetados pelo mau tempo na região centro que se intensificou no final da última semana e no fim-de-semana, estão aldeias cujos moradores “estão muito habituados a conviver com estas cheias, não que as considerem naturais mas fazem parte da sua própria história de vida”.

Ordem dos engenheiros responde ao ministro: “há comentários desnecessários”

Numa conferência de imprensa dada em Coimbra, a Ordem dos Engenheiros defendeu a construção de mais barragens como forma de mitigação dos fenómenos extremos provenientes das alterações climáticas.

Barragem cancelada pelo governo em 2016 poderia impedir cheias no Mondego

O especialista em hidráulica e recursos hídricos, Alfeu Sá Marques, disse haver “comentários desnecessários” e evocou o caso da Holanda como exemplificativo de que é possível controlar o nível das águas.

“Eu se pensasse dessa maneira não teria visitado a Holanda e os holandeses já teriam migrados para as Ardennes. Ter cidade abaixo no nível do mar tem sempre um certo risco, mas eu preferia estar com o PIB per capita holandês do que com o português”, ironizou o também professor da Universidade de Coimbra.

Apesar de Portugal não contribuir “quase nada para as alterações climáticas – temos apenas 1,15% das emissões de CO2 mundiais -, é um dos países do mundo que mais as vai sentir” lembra o presidente da secção regional do Centro da Ordem dos Engenheiros, Armando Silva Afonso. E como “no ano passado foi o Leslie, estes fenómenos vão ocorrendo a um ritmo impensável no passado”.

No caso da zona centro e do rio Mondego, a comissão de especialistas em hidráulica e recursos hídricos considera imprescindível a construção da barragem de Girabolhos, iniciada mas travada pelo governo no início do mandato, em 2016.

Esta segunda-feira, João Pedro Matos Fernandes tinha defendido em entrevista ao Jornal 2 que “paulatinamente aquelas aldeias vão ter de ir pensando em mudar de sítio”. O ministro do Ambiente e da Ação Climática referiu ainda que “a natureza tem sempre razão” e lembrou que “o sítio onde houve a primeira rutura, que é a rutura de maior dimensão, foi o rio a ir à procura do seu leito natural”.

Cheias. Matos Fernandes avisa que “aldeias vão ter de ir pensando em mudar de sítio”

Após as declarações de Matos Fernandes — agora descritas pelo próprio como um “desafio” para reflexão —, o presidente socialista da câmara de Montemor-o-Velho (território especialmente afetado pelas cheias), Emílio Torrão, referiu à Rádio Observador que a ideia encontraria muita resistência nas populações:

Mesmo na iminência de uma catástrofe, de levar com uma onda de água gigante, as pessoas não saem de casa; mesmo que eu lhes peça e suplique, mesmo que a GNR lhes ordene para saírem de casa, elas não saem”. Se convencer os moradores a sair temporariamente é uma missão espinhosa, “muito mais difícil será elas abandonarem de vez as suas habitações”, notou o autarca de Montemor-o-Velho.

A longo prazo, porém, o autarca não descartou essa possibilidade. “Se se justificar vai ter de acontecer um dia”, admitiu, em declarações à rádio Observador. Emílio Torrão considera que o ministro “não deixa de ter razão” na proposta que faz, “mas não é uma solução que se consiga implementar de imediato.”

Pista do Montijo elevada 5 metros para evitar inundações

Quanto às possibilidades de gestão do rio Mondego, o ministro referiu que “não conseguiremos nunca garantir que aquele leito de rio artificializado tenha capacidade para escoar um caudal superior a dois mil metros cúbicos por segundo. Este ano quase conseguiu chegar aos 2.200 metros cúbicos por segundo, porque foram investidos oito milhões de euros na manutenção, mas não conseguimos ultrapassar esse valor e não devemos sequer ultrapassar”.

Já questionado sobre se essa mesma reflexão não devia também ser feita pelo Governo sobre o novo aeroporto do Montijo, perante o risco de inundações, Matos Fernandes afirmou que, apesar de se saber que a costa portuguesa está sujeita ao aumento do nível médio das águas do mar, o sítio e o projeto do aeroporto têm características que o protegem.

Estamos a falar de uma infraestrutura na outra ponta do estuário, que tem uma pista que nunca inundou, uma pista vai ser sobrelevada em cinco metros, estamos a falar de uma coisa completamente diferente do ponto de vista do risco”, considerou.