Leopoldo Calhau, 43 anos, chef e proprietário da Taberna do Calhau

O que fazia: Era arquiteto freelancer, com mais de 100 projetos assinados, a maioria no Alentejo, nos concelhos de Mértola e Serpa.

O que faz hoje: É chef e proprietário da Taberna do Calhau, em Lisboa, a sua terceira experiência à frente de uma cozinha, depois de Sociedade e Café Garrett.

O chef Leopoldo Calhau na sua taberna. © Gonçalo F. Santos

Talvez não exista lisboeta mais alentejano do que Leopoldo Calhau. Toda a sua família é do Baixo Alentejo e foi entre os municípios de Mértola e Serpa que passou boa parte da sua carreira de arquiteto. Foi também ao Alentejo, a Beja, que foi buscar o recheio da taberna que hoje é a sua, a do Calhau. Mais: o prato que o fez perceber que a carreira de cozinheiro não era apenas um desvio temporário da arquitetura foi uma homenagem a um dos produtos mais apreciados na região: as cabeças de borrego.

Uma vez tive de fazer um almoço com menu de degustação, para um grupo de clientes que provam vinhos. Para o último prato, resolvi fazer um que já tinha há muito tempo na cabeça: um ensopado de borrego feito com cabeça de borrego e tinha uma tosta barrada com a marinada. Esse prato marca a viragem. É um prato que não gosto de dizer que é de autor, mas que nasce aqui: é uma homenagem à terra do meu pai e às pessoas que comem cabeças de borrego todos os dias da semana. Em 12 pessoas, dez adoraram, teceram os maiores elogios, os outros dois não comiam borrego. E eu, de tão feliz que fiquei, apanhei uma bebedeira nesse dia.”

O gosto pela cozinha e por cozinhar vinha dos tempos de estudante. Fazia-o por carolice e, também, para não ter de lavar a loiça, um argumento tão válido como outro qualquer. Durante o ano de Erasmus, em Milão, chegou a cozinhar para 80 pessoas numa cozinha doméstica. E gostou. Ainda assim, a frase “um dia vou ter um restaurante” não passou, durante muito tempo, de uma ideia utópica que não planeava, de todo, pôr em prática.

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Só se tornou realidade quando volto do Alentejo, em 2009. Voltei porque quando faço os meus maiores projetos, começo a cansar-me um pouco da arquitetura. Licenciamentos, burocracias, pagamentos… Resolvi fazer outra coisa. Quando venho, 90% dos meus clientes eram do Alentejo. Portanto, já sabia o que é que ia acontecer: havia um buraco para fazer outra coisa que me apetecesse experimentar. E eu lembro-me de, na altura dos 14 anos, testes psicotécnicos, uma senhor me ter dito: ‘você pode fazer mais coisas na vida, portanto m dia que queira, experimente.”

Mesa posta na Taberna do Calhau. © Frederico Van Zeller

Experimentou. Inscreveu-se em dois cursos da Escola de Hotelaria do Estoril: Gastronomia e Produção Alimentar. Estagiou no Belcanto, de José Avillez, mas foi na petiscaria Rubro, no Campo Pequeno, que testou a estaleca para a vida de empresário da restauração: ao segundo dia já estava a fazer gestão de stocks e encomendas. Lançou-se em nome próprio em 2014, no Sociedade, restaurante da Sociedade Musical União Paredense. Depois da música, o teatro: no Café Garrett, no foyer do Teatro D. Maria II, deu-se a conhecer ao público lisboeta. Terminadas essas duas experiências, ambas em formato concessão, em 2019 abriu, pela primeira vez, um restaurante verdadeiramente seu: a Taberna do Calhau. E em tudo o que fez e faz continua a exibir um certo espírito arquitetónico.

Há logo uma expressão que me vem à cabeça, que é o ‘less is more‘ do Mies Van Der Rohr. Era uma das coisas que eu praticava e pratico. Outra: faço as coisas para as pessoas, não faço para mim, não faço para a revista, não faço para a fotografia. Faço para elas, para as pessoas desfrutrem. Não me importo de abdicar de uma coisa que me parece melhor, se o meu cliente ficar mais satisfeito. Aqui na taberna acontece-me o mesmo. O nosso foco, e é uma coisa que eu repito muito à equipa que tenho, é ‘isto não é para nós, isto é para quem está ali.’ O nosso trabalho é secundário, as pessoas têm de se divertir e nós somos um complemento e estamos a contribuir para que eles se divirtam.”

Daniel Rocha e Silva, 30 anos, chefe de sala e sommelier do Essencial

O que fazia: Estava a terminar um doutoramento de quatro anos em relações internacionais.

O que faz hoje: É o chefe de sala e responsável de vinhos do restaurante Essencial, em Lisboa.

Daniel Rocha e Silva a escolher o vinho no restaurante Essencial. © Gonçalo F. Santos

Devia ser um entrevistado fácil, apaixonado, de soundbite na ponta da língua. Afinal, estamos perante um homem que abandonou um doutoramento em Relações Internacionais na Universidade de Warwick, uma das mais reputadas do Reino Unido, e a forte perspetiva de uma carreira académica para se dedicar à componente da restauração que mais dores de cabeça provoca aos empresários da área: o serviço de sala. Um homem que, em menos de um ano, fez mais de 30 refeições no mesmo restaurante, o Prado, em Lisboa, antes de se propor juntar à equipa que até então o servia. Um homem que tem tatuado o logótipo de outro restaurante, o Euskalduna, onde também quis trabalhar – e trabalhou – durante duas semanas. Haverá alguém com mais provas de amor dadas à gastronomia?

Sempre me interessei por comida. Não tanto por influência da família, mas por gosto pessoal. A partir dos 19/20 anos, comecei a comer mais em restaurantes. Comecei por ir sobretudo a sítios mais tradicionais. Depois, sempre que viajava, pesquisava imenso sobre produtos locais — tudo o que poderia comer num sítio que só poderia comer nesse mesmo sítio. Começou tudo a partir daí.”

Só que Daniel Rocha e Silva não é um entrevistado fácil. Parte deve-se a uma evidente timidez, parte à naturalidade indelével com que encara a mudança de rumo que a sua vida tomou. Não parece ter havido grandes dramas ou indecisões no processo e as possibilidades de arrependimento afiguram-se praticamente nulas. Tal como as hipóteses de um dia vir
a concluir a tese de doutoramento sobre as relações entre os Estados Unidos e a China, tema que contribuiu para a descoberta da vocação. Porque lhe permitiu viajar, e viajar permitiu-lhe comer e beber um pouco por todo o mundo. O verbo “beber” não está aqui por acaso: foram também essas viagens que o despertaram para as harmonizações, parte fundamental da sua função.

Quando estive nos Estados Unidos, visitei imensas fábricas de cerveja. Nessa altura também já me interessava por vinhos. Por um lado, eram produtos importantes que faziam parte da identidade das zonas que visitava. Ao mesmo tempo, eram dos poucos produtos em que, não sendo necessariamente possíveis de comparar, existia algo comum entre os vários que provava.”

© Gonçalo F. Santos

A vida académica foi, gradualmente, perdendo terreno para a vida gastronómica. A ideia de trabalhar num restaurante começou a ganhar forma a partir do segundo ano de doutoramento. Mas o foco nos estudos e nas viagens não lhe permitia realizá-la. No quarto e último ano regressou a Portugal com ideia de se concentrar, apenas e só, na escrita da tese. Só que a vida – e essa paixão paralela – trocou-lhe as voltas.

Foi nessa altura que arranjei, por um lado, tempo livre e mais disponibilidade; por outro, mais certezas de onde estava. Investi muito na minha formação, mas mais valia cortar naquela altura do que passado uns anos. Depois de já estar a trabalhar no Prado, ainda estive a trabalhar no doutoramento. Mas chegou a uma altura em que ou estava 100% numa coisa ou 100% noutra. Pus de parte o doutoramento.”

Era o cliente mais fiel do Prado. Somava mais de 30 refeições no restaurante de António Galapito, quando se propôs passar para o outro lado durante dois meses. Em full-time, para tomar contacto com tudo o que engloba trabalhar num restaurante e, assim, perceber se valia a pena mudar de vida e carreira. A família percebeu, nessa altura, que a mudança de rumo estava prestes a tornar-se definitiva. Mas ninguém se opôs.

Foi um processo gradual, também. A família já conhecia o meu interesse nesta área há algum tempo. Quando fui trabalhar dois meses no Prado, sabiam que fiz isso já a pensar numa carreira, de um ponto de vista realista. E pronto, depois aceitaram. Não houve problemas.

O restaurante Essencial. © Tiago de Paula Carvalho

Como é que um cliente tão frequente de restaurantes se vê, de repente, do outro lado? Que surpresas encontra? A transição foi mais natural do que se poderia pensar. Ajudou o facto de ter sido sempre um cliente compreensível.

Nunca fui um cliente difícil. Se calhar passei a ser mais crítico em determinadas questões, mas para mim mesmo. Olho para certas coisas ao pormenor porque estou a reparar nelas no meu próprio trabalho, portanto também reparo quando vou a um restaurante. Ao mesmo tempo, tenho perfeita noção de todos os condicionantes. Mas como já conhecia muitas pessoas na área e tínhamos várias conversas, não houve nada que me surpreendesse muito: houve coisas que compreendi melhor de um lado, coisas que compreendi melhor do outro.”

A formação foi feita on the job. Mas Daniel não sente, propriamente, falta de escola. Pelo menos no contexto deste tipo de restaurantes em que trabalhou até hoje. Compensa com uma preparação diária feita à base de muita leitura, provas e conversas com colegas mais experientes.

Preparo-me lendo e, no caso dos vinhos, provando. Também tento aproveitar as experiências que tenho com outras pessoas que têm conhecimento de prova e de serviço e procuro sugar ao máximo a informação que elas têm. Acho que se estivesse noutro tipo de restaurante, sentiria mais falta de formação para determinados formalismos que são necessários quando se trabalha em fine dining.”

Hoje, menos de um ano após essa primeira experiência, é chefe de sala e sommelier
do restaurante Essencial, do chef André Lança Cordeiro. Chef esse que, confessa, se sente aliviado quando o tem por perto. Melhor elogio seria difícil. A barba longa, bem cuidada, ajuda a impor respeito e confiança nas sugestões. E a timidez não é obstáculo, pelo contrário.

Acho que há diferentes níveis de timidez e diferentes níveis de serviço, empatia com o cliente e expressividade. Gosto imenso da relação com os clientes. Se calhar porque sinto muito prazer em oferecer algo que as pessoas gostem. Gostar de fazer com que as pessoas se sintam bem sobrepõe-se à timidez.”

Artigo publicado originalmente na revista Observador Lifestyle nº 5 – Especial Comida (setembro de 2019).