Pela segunda vez na história, um Presidente dos Estados Unidos fez o aguardado discurso anual do Estado da União a meio de um processo de impeachment. Bill Clinton já o havia feito em 1999, mas optou por deixar o assunto de fora do discurso. Este ano, a expectativa era a de que Donald Trump — que só devido aos conselhos dos seus advogados é que não se apresentou pessoalmente no Senado para se defender durante o julgamento — aproveitasse o discurso perante os congressistas que o acusaram e os senadores que o estão a julgar para apresentar uma defesa da sua Presidência face às acusações de abuso de poder que é alvo.
Mas não. Em vez disso, Trump usou o discurso, que é um dos momentos políticos com maior audiência televisiva em todo o ano, para fazer o que sabe fazer melhor: um reality-show.
Durante uma hora e quinze minutos, houve de tudo. Desde momentos ao estilo de Oprah Winfrey, como quando Trump atribuiu uma bolsa escolar a uma jovem presente na galeria do Congresso e promoveu um reencontro familiar entre um militar regressado do Médio Oriente e a sua mulher e filhos, à condecoração surpresa do comentador político Rush Limbaugh, o Presidente dos EUA pontilhou o discurso, em que falou de assuntos tão variados como os empregos, a economia, a saúde, a educação, as armas, o Irão, a China ou a fronteira com o México, com momentos pensados exclusivamente para o ecrã da televisão.
O drama da noite seria, porém, protagonizado pela presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, que presidiu à sessão. Foi ela que, no ano passado, anunciou o processo de impeachment contra Trump. Esta terça-feira, depois de cumprir a formalidade de anunciar a entrada do Presidente na sala do plenário onde iria discursar, estendeu-lhe a mão, mas Trump recusou cumprimentá-la. No final do discurso, Pelosi respondeu com o gesto que marcou a noite: quando Trump ainda estava no púlpito a ouvir os aplausos dos republicanos, a líder da Câmara dos Representantes rasgou a cópia do discurso que Trump lhe tinha entregado no início da sessão e atirou os pedaços de papel para a secretária.
Pelosi tore up Trump’s #SOTU speech as soon as it ended ???? pic.twitter.com/acwkeKuZRM
— NowThis Impact (@nowthisimpact) February 5, 2020
Ainda antes de arrancar, o discurso de Trump já estava carregado de factos políticos, a começar pelas presenças e pelas ausências. Longe do Congresso, esta terça-feira, estiveram pelo menos dez congressistas democratas, entre os quais Alexandria Ocasio-Cortez, que anunciou não querer “legitimizar a conduta ilegal e a subversão da Constituição de Trump“. Ao longo da noite, seriam vários os congressistas democratas a abandonar a sala. Nas galerias, esteve o líder do Partido do Brexit, Nigel Farage, o líder da oposição venezuelana, Juan Guaidó, e o vice-diretor da polícia fronteiriça norte-americana, Raul Ortiz. Na fila da frente, os congressistas democratas que representam a acusação no julgamento de impeachment de Trump eram o centro das atenções na sessão de cumprimentos que antecedeu o discurso.
Cinco anos depois de popularizar o Make America Great Again, Donald Trump continua a trazer slogans aos americanos: o discurso do Estado da União deste ano, que foi na verdade mais um comício de campanha em ano eleitoral, teve como mote The Great American Comeback, ou “a grande recuperação americana“.
Foi nesse contexto que Trump dedicou grande parte do seu discurso, logo desde o início, a elogiar os feitos da sua própria administração, por entre aplausos e gritos de “Four More Years!“, que adensavam a sensação de que o Presidente dos EUA estava, na verdade, num comício de campanha, e não no mais que formal discurso do Estado da União.
“O nosso país prospera e é altamente respeitado novamente”, afirmou Trump no arranque, antes de disparar dados sobre o emprego. Sete milhões de novos empregos, taxa de desemprego mais baixa dos últimos cinquenta anos, mínimo histórico da taxa de desemprego entre os afro-americanos e os hispânicos, número recorde de jovens americanos com empregos. A cada número, um longo aplauso. Durante os primeiros minutos do discurso, os republicanos presentes na sala praticamente não se sentaram.
Depois de levar metade do Congresso ao êxtase com a economia, Trump voltou-se para a política internacional e para a guerra comercial com a China. “Impusemos tarifas para acabar com o roubo de empregos pela China. A nossa estratégia resultou!“, referiu o Presidente dos EUA, sublinhando que está a “reconstruir” o país e a “restaurar a liderança americana” no mundo.
Voltando-se para a galeria onde estava Juan Guaidó, o líder da oposição venezuelana e autoproclamado líder do país, Trump considerou-o o “verdadeiro e legítimo Presidente da Venezuela”, acusando Nicolás Maduro de ser um “líder ilegítimo” e um “tirano” que será “esmagado”.
“Por favor, leve esta mensagem de volta: todos os americanos estão unidos ao povo venezuelano na sua luta justa pela liberdade. Muito obrigado, senhor Presidente. O socialismo destrói as nações. Mas lembre-se sempre: a liberdade une a alma. Para garantir a liberdade americana, investimos um valor recorde de 2,2 biliões de dólares nas forças armadas dos EUA”, continuou Trump, mudando rapidamente de assunto para a recém-criada Força Espacial.
Uma condecoração, uma bolsa escolar e um reencontro familiar
O grande ataque da noite contra os democratas foi a propósito da reforma da saúde. “Há quem vos queira tirar os vossos cuidados de saúde, o vosso médico, e abolir completamente os seguros privados. 132 congressistas nesta sala apoiaram legislação destinada a impor um controlo socialista ao nosso sistema de saúde, acabando com os seguros privados de saúde de 180 milhões de americanos contentes. A todos aqueles que estão a ver em casa esta noite, quero que saibam: nunca vamos deixar o socialismo destruir o sistema de saúde americano.”
Trump referia-se concretamente aos democratas, incluindo ao candidato presidencial Bernie Sanders, que defendem a criação de um sistema nacional de saúde gerido pelo Estado nos EUA.
Foi a partir do tema das questões de saúde que Donald Trump anunciou uma das surpresas da noite: a atribuição da medalha presidencial da liberdade, a mais alta condecoração atribuída pelos EUA a um civil, ao comentador político conservador Rush Limbaugh, considerado uma das principais vozes na defesa de Trump.
Limbaugh anunciou na segunda-feira que está a combater um cancro do pulmão em fase avançada. “Quase todas as famílias americanas conhecem a dor de saber que um ente querido foi diagnosticado com uma doença grave. Esta noite está aqui um homem especial, amado por milhões de americanos, que recebeu um diagnóstico de cancro avançado. Isto não é uma boa notícia, mas o que é uma boa notícia é que ele é o maior lutador e vencedor que alguma vez vão conhecer”, disse Trump, antes de pedir à primeira-dama, Melania Trump, que entregasse na galeria a medalha a Rush Limbaugh.
Minutos antes, Donald Trump havia elogiado as políticas educativas do seu governo, nomeadamente a atribuição de bolsas escolares destinadas a apoiar alunos que queiram estudar em escolas melhores, e anunciado outra surpresa: Janiyah Davis, uma estudante presente na galeria do Congresso, iria receber uma destas bolsas para estudar na escola que quisesse. Trump pediu depois aos congressistas que aprovassem o financiamento de mais um milhão de bolsas como aquela.
O momento televisivo da noite ainda estava, contudo, para chegar.
Apostado em “acabar com a guerra mais longa dos EUA” e retirar as tropas do Afeganistão para as levar de novo para casa, Donald Trump marcou a noite com um reencontro familiar em plena galeria do congresso, onde estava Amy Williams, mulher do sargento Townsend Williams, até agora destacado no Afeganistão.
“Esta noite tenho uma surpresa especial. Estou emocionado por informá-la de que o seu marido está de volta do destacamento”, afirmou Trump, voltado para a galeria, segundos antes de a porta atrás da mulher se abrir e o militar entrar no Congresso, para abraçar a mulher e os filhos, de 3 e 6 anos, numa cena digna de Hollywood. “Bem vindo a casa, sargento Williams. Muito obrigado“, rematou Trump.
Durante o discurso, houve também lugar para um dos temas mais controversos da Presidência de Donald Trump: a imigração.
Após gastar vários minutos a dar exemplos de crimes cometidos por imigrantes ilegais que foram protegidos pelas cidades-santuário, Donald Trump anunciou mais uma vez a sua intenção de acabar com esta proteção dada aos imigrantes por algumas cidades norte-americanas.
“Tragicamente, há muitas cidades na América que políticos radicais decidiram transformar em santuários para estes estrangeiros ilegais criminosos. Os EUA deviam ser um santuário para americanos que obedecem à lei, não para criminosos estrangeiros ilegais”, disse Trump, antes de voltar a sublinhar que continuam os esforços de construção do muro na fronteira com o México.
Se já tinha perdido uma parte da audiência democrata com os ataques ao plano de criação de um serviço nacional de saúde totalmente público, Donald Trump enfureceu mais alguns congressistas do Partido Democrático quando apresentou mais uma das convidadas da galeria — uma criança que nasceu prematura — como pretexto para criticar duramente o aborto e destacar que vai pedir que seja abolida a possibilidade de aborto em fases mais avançadas da gravidez.
“Sejamos republicanos, democratas ou independentes, certamente concordamos que cada vida humana é um dom sagrado de Deus“, argumentou Donald Trump.
Também na galeria do Congresso estavam os pais de Kayla Mueller, uma mulher norte-americana morta na Síria após ter sido escravizada pelo Estado Islâmico — pretexto usado por Trump para lembrar a vitória norte-americana sobre aquele grupo terrorista e para se focar no atual problema no Médio Oriente, o Irão, e para justificar a morte do general iraniano Qassim Soleimani.
“Soleimani era o carniceiro mais impiedoso do regime iraniano, um monstro que assassinou e feriu milhares de tropas americanas no Iraque. No mês passado, sob a minha direção, as forças armadas dos EUA executaram um ataque de precisão perfeito que matou Soleimani e acabou para sempre com o seu reinado de terror para sempre”, afirmou Trump, arrancando um forte aplauso no Congresso, antes da prometer a “justiça americana: se atacam cidadãos americanos, perdem a vossa vida”.
Ao fim de mais de uma hora, Trump concluiu o discurso assinalando que “a América é uma terra de heróis” e que “o melhor ainda está para chegar“. Ainda duravam os aplausos quando Nancy Pelosi, a presidente da Câmara dos Representantes, rasgou a sua cópia do discurso de Trump em pleno enquadramento da câmara televisiva que filmava o Presidente, num momento que ofuscou por completo a intervenção da governadora do Michigan, Gretchen Whitmer, que deveria ser a resposta oficial dos democratas ao discurso de Trump — e que se focou essencialmente na questões do serviço nacional de saúde.
À Fox News, Nancy Pelosi justificou porque é que rasgou o discurso de Trump. “Estava a tentar encontrar uma página que tivesse a verdade. Não consegui.”
No final, nem uma palavra sobre o impeachment. Trump falou no Congresso ao fim de um dia em que os senadores de ambos os partidos estiveram, no mesmo edifício, a justificar as suas intenções de voto na sessão desta quarta-feira, momento em que, ao que tudo indica, o Presidente dos EUA deverá ser formalmente absolvido das acusações que pendem sobre ele.