Ser português travou a ascensão de Joseph Barboza na máfia italiana nos Estados Unidos, mas foi em língua portuguesa o seu elogio fúnebre, após ser assassinado por denunciar mafiosos culpados e inocentes e expor a cumplicidade do FBI nas suas mentiras.

O primeiro diretor do Federal Bureau of Investigation (FBI), Edgar Hoover, classificou-o como “o indivíduo mais perigoso” que esta organização policial norte-americana conhecia, mas foi precisamente a ligação entre ambos que viria a abalar o sistema judicial dos Estados Unidos, após a detenção de vários líderes mafiosos.

A carreira de Joseph Barboza, conhecido por “Animal”, alcunha que ganhou à custa da violência com que “trabalhava” para a organização mafiosa La Cosa Nostra nos Estados Unidos, é contada pelo jornalista Casey Sherman num livro que revela “a história verídica do português que se tornou no assassino mais temido da máfia” e que a editora Desassossego acaba de publicar.

São quase 300 páginas com pormenores sobre os crimes com que a máfia italiana marcou as décadas de 1960 e 1970, nomeadamente em Boston, onde decorre a maior parte da ação, numa altura em que o país era confrontado com os desafios da guerra no Vietname e se travavam batalhas contra o crime organizado.

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“Segundo filho de pais luso-americanos de primeira geração, Joseph Barboza Jr. nasceu a 20 de setembro de 1932 em New Bedford, Massachusetts”, escreve o autor, recordando que a esse local aportaram muitos pescadores portugueses, principalmente dos Açores, que vinham “a imigrar em massa (…) desde os inícios do século XIX”.

O pai de “Animal” era “leiteiro e pugilista a tempo parcial [e] combatia sob o nome de Jackie Wolgast”, enquanto “a mãe, Palmeda Camille Barboza, trabalhava numa cantina hospitalar e ocasionalmente arranjava trabalho como costureira”.

Os alicerces da carreira criminal de Barboza foram construídos nas ruas de New Bedford, onde Joe, acabado de chegar à adolescência, reuniu um pequeno grupo de bandidos errantes e, no espírito de Oliver Twist, corria pela cidade roubando armazéns para ir vender os produtos dos roubos”, lê-se na obra.

Com 13 anos, Joe Barboza “deu por si pela primeira vez atrás das grades”, acusado de “roubo com arrombamento”. Pouco depois foi enviado para a Escola Lyman para Rapazes.

Barboza levou incontáveis sovas, incluindo uma punição particularmente violenta chamada ‘pé quente’, na qual um chefe de alojamento dava pancadas repetidas no arco do pé nu de uma criança”, escreveu o jornalista.

Mais tarde, “Animal” viria a afirmar “ter estado envolvido em mais de 300 rixas durante as três penas cumpridas em Lyman e gabou-se de as ter vencido a todas”.

Seguiram-se vários crimes e detenções, numa época marcada pela violência nas ruas de Boston e dos subúrbios em redor, com assassínios particularmente macabros, a maioria relacionados com álcool.

Joe Barboza “sempre estivera fascinado por La Cosa Nostra, mas Joe dera por si do lado de fora a olhar para dentro“.

“Afinal de contas, era português”, escreve o autor, recordando a condição de italiano para vingar na organização, relatando: “Há muito que se encontrava na frustrante agonia de inveja de classe, muito à semelhança de um estudante católico ou judeu de Harvard, proibido de aderir aos melhores clubes sociais e académicos”.

A fama de Barboza cresceu e ganhou a atenção do FBI que abraçara o combate ao crime organizado, com recurso a delatores.

Quando Joe se apercebe de que foi detido após ser traído pelos mafiosos em quem confiara e tem conhecimento de dois amigos e companheiros de crime, dá por si a jurar vingança, nomeadamente contra o “padrinho” de La Cosa Nostra, Raymond Patriarca.

“Os mandamentos de Barboza eram simples: nunca fazer mal a mulheres e crianças e nunca ‘chibar’ os amigos ou até os inimigos. Apesar da sua zanga com o Escritório [alegada “sede” da organização mafiosa], o inimigo natural de Joe sempre tinha sido as forças da lei. Qualquer ajuda prestada ao FBI iria violar todas as regras não escritas da selva do crime organizado”.

Ainda tenta um contacto com Raymond Patriarca, à qual este respondeu com uma sentença de morte. “O decreto de assassínio deixou-o sem alternativas. O ‘Animal’ tinha de se aliar totalmente ao FBI, o que fez, tentando destruir com a boca o que não conseguiu com os punhos nem as armas”.

Ao ser conhecida esta colaboração, Joe “ficara reduzido às lágrimas com a forma como fora caracterizado pelos jornais”, que o apelidava de canário, bufo e vira-casacas. “Para um assassino da máfia como Joe Barboza, aqueles eram os piores insultos que se podiam imaginar”.

Graças ao seu depoimento, o chefe da máfia e seu inimigo foi detido: “O veredicto de Patriarca foi um momento decisivo na guerra do governo federal contra o crime organizado. Pela primeira vez na história, uma figura proeminente da máfia tinha sido derrubada apenas pelo testemunho de um dos seus homens. O veredicto provou a teoria do FBI de que a única forma de derrotar La Casa Nostra era destruí-la por dentro”, escreve Casey Sherman.

Mas no rol das denúncias de Barboza contavam-se igualmente mentiras e o “Animal” não estava sozinho nesta farsa. Já no século seguinte, a justiça norte-americana determinou que “documentos secretos do FBI tinham demonstrado que a agência era responsável por incriminar por homicídio quatro homens inocentes”.

O grosso desses documentos consistia em memorandos que sugeriam que agentes e funcionários, incluindo Edgar Hoover, sabiam que a sua testemunha principal, Joe “the Animal” Barboza, mentira no testemunho que prestara”.

Os dois inocentes condenados e os parentes dos outros dois homens falsamente condenados “processaram o Departamento de Justiça dos Estados Unidos e foi-lhes concedida uma indemnização de 101,7 milhões de dólares, a maior compensação do seu tipo na história americana”.

“As compensações, embora elevadas, não são grosseiramente desproporcionais ao dano sofrido, por forma que choquem a nossa consciência coletiva ou despertem o espetro do erro judiciário”, afirmou o juiz principal Bruce M. Selya.

Traído por um suposto amigo, que ajudou o, na altura, chefe de La Cosa Nostra, Joe morreu após ser atingido por mais de 20 chumbos de caçadeira, no meio da rua, aos 43 anos.

Foram poucos os que acompanharam Barboza na derradeira viagem até um cemitério em Massachusetts, onde “o padre perguntou ao irmão se a família queria que ele fizesse o elogio fúnebre do irmão em inglês”.

“Não, padre. Faça-o em português, por favor”, pediu Donald. “O meu irmão era português”, lê-se no livro.