“É uma coisa que me perguntam muito: devemos pôr comida em casa ou não?“, começa por questionar Graça Freitas, para depois responder: “Não devemos chegar a este ponto. Quanto mais não seja, que se recorra à horta do amigo. Não açambarquem!”. A diretora geral da Saúde, ouvida esta terça-feira no Parlamento, tentou descansar os deputados lembrando até a “pandemia de 68” em que a sua família “ficou toda doente”. “Eu era uma miúda. Nem sabia que havia uma pandemia. Mas houve laços de vizinhança, de recorrer a quem tinha alguma coisa”, contou. Onde Graça Freitas queria chegar era aqui:

A última coisa que queremos é que vá toda a gente aos supermercados.”

Já vimos este cenário a acontecer durante a greve dos combustíveis. Por precaução ou por receio, as pessoas começaram uma corrida aos supermercados — e é exatamente este cenário que a diretora-geral da Saúde não quer ver agora, com o surto de coronavírus a chegar a Portugal. Nem em supermercados, nem em farmácias.

A Associação Portuguesa de Empresas e Distribuição (APED) confirma um “ligeiro aumento da procura”, mas garante que tudo se mantém em “total normalidade”. Ainda não são visíveis as longas filas de carrinhos e as prateleiras vazias — como já acontece noutros países —, mas a verdade é que o Observador visitou dois supermercados, esta terça-feira, e fez uma encomenda online e verificou que já existem algumas falhas.

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Por exemplo, nas compras feitas através do site do Continente pelo Observador, além da indisponibilidade de alguns produtos — como álcool etílico, gel desinfetante ou luvas descartáveis — também há menos opções de horários de entrega da encomenda. Além disso, ao contrário do que é habitual, as entregas não são feitas num máximo de 48 horas — na encomenda feita pelo Observador, o prazo mínimo era de cinco dias.

Alguns produtos que estão indisponíveis no site do Continente

Num Continente Bom dia, em Lisboa, vários funcionários movimentam-se pelos corredores a repor os artigos que, neste momento, estão a ter mais procura, como conservas, produtos de limpeza com lixívia, papel higiénico ou garrafas de água. Apesar de não estarem autorizados a dar informações relativas a stocks ou vendas, reconhecem que há uma “corrida” aos bens de primeira necessidade. Nada que a loja não previsse.

No armazém ainda temos várias paletes de leite, massas e enlatados. Mas quando essas reservas se esgotarem, não sei como é que vai ser”, admite um dos colaboradores.

A população mais idosa foi a primeira a precaver-se. Este fim-de-semana, foi a vez de as famílias esvaziarem algumas prateleiras, à imagem do que já acontece na capital espanhola, que, a partir de quarta-feira, encerra escolas, institutos e universidades até ao dia 26 de Março. Um cenário que, por cá, também já está em cima da mesa. E se avançar, o mais certo é que o fecho antecipado dos estabelecimentos de ensino leve a um “aumento exponencial da procura de produtos alimentares”, como admite Sónia Covita, jurista da Deco.

E se isso se vier a colocar, é provável que os hipers e supermercados acionem o racionamento de bens alimentares como “medida preventiva”, acrescenta ainda. A acontecer, será absolutamente legal porque terá como base o decreto lei 28/84 (artigo 28), que prevê o racionamento em caso de “notória escassez”. Só assim fica garantido o “acesso a bens essenciais e de primeira necessidade” a todos os que deles necessitam e não, necessariamente, aos que chegam mais cedo aos supermercados.

O que diz o Plano de Contingência da DGS de resposta ao coronavírus

Um cenário que Pedro Queiroz, diretor-geral da Federação das Indústrias Portuguesas Agro-Alimentares, não quer ainda comentar. Cauteloso, para não gerar qualquer tipo de pânico nos consumidores, confirma que as empresas do ramo alimentar estão a “trabalhar normalmente para dar resposta a todas as solicitações”. Confirma, no entanto, que há um aumento da procura mas não entra em especulações. São de evitar as comparações com a greve convocada pelos Sindicatos dos Motoristas de Matérias Perigosas, em Agosto, mas Pedro Queiroz quebra o discurso formal e admite que “as limitações, agora, até são menores”.

Racionamento? Para já, não. Há um “ligeiro aumento da procura”, mas “total normalidade”

Apesar de “ligeiro”, o aumento da procura é já evidente. É, pelo menos, o que diz a APED. No entanto, tudo decorre em “total normalidade” nos super e hipermercados associados e não há, para já, racionamento. O Observador contactou os grupos Sonae e Jerónimo Martins — ambos confirmaram que não estão a racionar produtos, mas remeteram quaisquer esclarecimentos para a APED.

Quer o consumo, quer o abastecimento de produtos nos espaços dos seus associados estão a decorrer com total normalidade, não existindo quaisquer limitações na aquisição de produtos”, informou a APED numa nota escrita enviada ao Observador.

Na nota, a APED garantiu que “continuará a acompanhar e a monitorizar a situação, em contacto direto com as entidades competentes, nomeadamente a Direção-Geral da Saúde”. E fez um pedido: que se “mantenha a tranquilidade e responsabilidade demonstradas pela população até agora”. A associação lembrou ainda que “as empresas têm implementados procedimentos e planos de contingência robustos e eficientes, tendo sido reforçadas as medidas de higienização e a formação de equipas, para que a experiência em loja continue a decorrer em segurança e com normalidade”.

A diretora-geral da Saúde pediu à população que evite a corrida aos supermercados

A APED assegurou que os seus associados estão “preparados para evitar perturbações no fornecimento de produtos e bens essenciais, nomeadamente por privilegiarem a produção nacional“. Para um super ou hipermercado poder racionar produtos tem de provar que há escassez daquele produto. E cada um cria as suas próprias regras de acordo com o stock disponível e para o gerir da melhor forma.

Mas quem recusar a venda de produtos aos clientes sem haver justificação para tal pode ser punido com pena de prisão ou multa, como prevê o artigo 28.º do Código Penal, conhecido como lei do açambarcamento. O mesmo está previsto para o consumidor: o açambarcamento por parte de quem compra também é proibido legalmente. “Quem, em situação de notória escassez ou com prejuízo do regular abastecimento do mercado, adquirir bens essenciais ou de primeira necessidade em quantidade manifestamente desproporcionada às suas necessidades de abastecimento ou de renovação normal das suas reservas será punido com prisão até seis meses ou multa de 50 a 100 dias“, lê-se no Código Penal.

Venda de máscaras cresceu quase 2000% em relação ao ano passado

A corrida às farmácias também é uma realidade: aqui, os consumidores procuram máscaras e desinfetantes. Face a este cenário, a Associação Nacional das Farmácias (ANF) garantiu que estão a ser desenvolvidas “todas as diligências comerciais” e que as farmácias estão “a trabalhar com os seus fornecedores” para “dar resposta ao crescimento da procura por este tipo de produtos”.

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A procura de máscaras e desinfetantes registou um aumento desde o início do ano. Se em janeiro o número total de embalagens de máscaras vendidas era de 92.528, em fevereiro quase quintuplicou: de acordo com dados da ANF, foram vendidas 419.539 embalagens de máscaras no segundo mês do ano. O mesmo se verificou com as embalagens de desinfetantes. Em janeiro foram vendidas 83.989 — em fevereiro, o número foi de 198.939.

Se de janeiro para fevereiro a subida é uma realidade, uma comparação da venda de máscaras e desinfetantes entre este ano e o ano passado torna-a ainda mais evidente. Entre fevereiro de 2019 e fevereiro de 2020, as máscaras registaram um aumento de 1829%, nas vendas. Já em janeiro deste ano registou-se um aumento significativo de 258% em relação a janeiro de 2019.

Em Portimão, onde há dois casos de infeções com o novo coronavírus, várias farmácias têm gel desinfetante, álcool etílico e máscaras esgotadas. Há até farmácias a produzir o seu próprio gel desinfetante com indicações de produção dadas pelo Infarmed. “Tentamos dar alguma acalmia às pessoas, nós não estamos a recomendar o uso de máscaras”, disse ao Observador Paulo Gouveia, diretor de uma farmácia de Portimão, adiantando ainda que tem reservas de máscaras. Além disso, os preços dispararam naquela zona. Uma máscara poderá custar atualmente cerca de 5 euros, quando antes uma caixa de cinco unidades custava cerca de 2,15 euros.

Farmácias de Portimão com gel desinfetante, álcool etílico e máscaras esgotadas

Para a jurista da DECO, Sónia Covita, a corrida quer às farmácias, quer aos supermercados — em geral, o pânico —, poderia resolver-se com bom senso. O que, em alturas críticas, parece “faltar”.